Em algum lugar...
O cheiro do mofo já fazia parte de mim. A umidade daquelas paredes era minha única certeza na vida. O tempo passava, mas sempre igual. Eu não sabia se era dia ou noite, só sabia que meu mundo era um quartinho apertado com uma janela tão pequena que nem um passarinho passaria por ela.
Meu nome é Samanta. Ou pelo menos foi assim que me chamaram desde que me entendo por gente. Não sei de onde vim, não sei quem sou. Só sei que vivi como um passarinho preso numa gaiola, sem nem saber o que existia do lado de fora. Mas naquele dia, minha vida mudou.
— Samanta, pega suas coisas e se prepara. Disse dona Cotinha, a cozinheira do cativeiro, com a voz tremendo.
Eu ri. Não porque era engraçado, mas porque... bem, eu não tinha "coisas" pra pegar. Meu único tesouro era uma pedrinha em forma de coração que achei uma vez no chão.
— Pegar o quê, dona Cotinha? O cheiro de mofo? Esse colchão duro que parece um pedaço de tijolo?
Ela olhou para os lados, nervosa, e se aproximou.
— Escuta, menina. Você tem que fugir. Agora!
Eu arregalei os olhos. Fugir? Como assim fugir? Aonde eu iria?
— Mas pra onde eu vô? Nem sei o que tem lá fora!
— Qualquer lugar é melhor que aqui, Samanta! A voz dela era um sussurro desesperado. — Eles... eles vão te vender.
O chão sumiu dos meus pés. Eu sabia que aquelas pessoas eram ruins, mas vender? Como se eu fosse um saco de batatas?
Meu coração começou a bater tão forte que parecia que ia pular pra fora do peito.
— E-eu num quero ser vendida, não, dona Cotinha! Eu nem sei quanto vale uma pessoa!
— Nem eu, minha filha. Mas esses desgraçados sabem, e você não quer descobrir.
Ela abriu um armário e pegou um vestido simples, me entregando junto com um par de sandálias. Eu nunca tinha usado sandália na vida. Meus pés eram acostumados com o chão frio do cativeiro.
— Vista isso, vá até o fundo do corredor e saia pela porta da cozinha. Atrás da casa tem um matagal, siga reto até ver a estrada. Depois disso... corra.
Minhas mãos tremiam. Meu peito tava uma bagunça. Medo, ansiedade, esperança... Eu nem sabia o que esperar lá fora.
— Caramba, se alguém me pegar...
— Não pense nisso. Só corra.
E foi isso que eu fiz.
Correr nunca foi tão assustador e tão bom ao mesmo tempo. Meus pés batiam no chão de terra dura, enquanto meus olhos tentavam absorver tudo de uma vez. O céu! As árvores! O vento! Tudo tão grande, tão livre, tão... diferente.
Se aquilo era o mundo, por que me prenderam tanto tempo?
O problema é que eu não sabia como ele funcionava. Nunca aprendi a ler, nunca vi dinheiro na vida, nunca nem experimentei comida que não fosse o feijão aguado do cativeiro.
Depois de um tempo correndo, o mato foi ficando mais baixo e, de repente, pá! Dei de cara com uma estrada.
— E agora?
Fiquei ali, parada, sem saber o que fazer. Os carros passavam rápido, e eu nunca tinha visto um de perto. Parecia que eram bichos grandes de ferro correndo sem parar.
— Ô, minha fia, tu tá bem?
Virei e vi uma mulher me encarando. Ela tinha um lenço colorido na cabeça e carregava um monte de sacolas.
— Eu tô... tô livre! Soltei sem pensar.
Ela franziu a testa.
— Livre? Livre de quê, menina?
E foi aí que eu percebi que não podia sair falando pra todo mundo que fugi de um cativeiro.
— Livre... do... do vento! É! Hoje é um dia bonito, né? Tô aqui, ó, aproveitando!
Ela me olhou desconfiada.
— Tu tá fugindo de casa, é?
— Depende. Se você chamar de casa um quartinho pequeno com um colchão fedendo, então sim, tô fugindo.
— Menina, tu é doida?
— Num sei. Nunca vi um doido pra comparar.
Ela soltou uma risada.
— E tu vai pra onde?
Eita. Boa pergunta.
— Pra frente.
— E tu tem dinheiro?
— Dinheiro?
Ela suspirou e olhou pras sacolas.
— Vem cá, pelo menos come alguma coisa antes de seguir pra... sei lá pra onde.
Meu estômago roncou antes que eu pudesse responder. E foi assim que me sentei no meio-fio da estrada com uma desconhecida, comendo pão com mortadela e me perguntando o que mais o mundo tinha pra me mostrar.
Eu não sabia o que vinha pela frente. Mas uma coisa eu sabia: eu nunca mais seria prisioneira de ninguém.
A cada mordida no pão com mortadela, eu sentia como se estivesse descobrindo um pedacinho do mundo. O gosto era forte, salgado, meio azedo, mas uma delícia. Melhor que o mingau aguado do cativeiro.
— Isso aqui é coisa de rico, né? Perguntei, de boca cheia.
A mulher arregalou os olhos e soltou uma gargalhada.
— Rica? Eu? Menina, isso aqui é comida de quem tá apertado!
— Pois então eu quero ser apertada todo dia!
Ela riu de novo e sacudiu a cabeça.
— Tu é engraçada, viu? Mas me conta, menina, qual teu nome?
Engoli rápido o pedaço de pão e me limpei com a mão.
— Samanta.
— Samanta, e o sobrenome?
Pisquei, confusa.
— Sobrenome?
— É, ué! Todo mundo tem!
— Ah, então eu devo ter um também... Só num sei qual é.
Ela me olhou como quem tentava juntar as peças do quebra-cabeça.
— E tua família?
Senti um aperto no peito.
— Num sei onde eles tão... Nem sei se tão.
A mulher ficou em silêncio por um tempo e suspirou.
— Bom, Samanta Sem Sobrenome, e agora? O que tu vai fazer da vida?
A pergunta me pegou de jeito. Eu nunca tinha pensado nisso. Sempre achei que minha vida seria aquele cativeiro pra sempre. Agora que eu estava livre, o que eu faria?
— Num sei. Mas acho que... vou descobrir.
Ela sorriu.
— Pois então, que comece a tua aventura!
E, com o último pedaço de pão na boca, eu soube: minha vida finalmente tinha começado.
A mulher, que disse se chamar Dona Jandira, terminou de comer e se levantou.
— Vou te ajudar, menina. Vou conseguir uma carona pra tu sair daqui.
Antes que eu pudesse perguntar pra onde, ela já estava abanando os braços pra um caminhão velho que vinha na estrada. O motorista parou, e Jandira trocou umas palavras com ele antes de me chamar.
— Vai com ele. Vai te deixar num lugar seguro.
Entrei na carroceria do caminhão sem nem saber direito o que estava fazendo. A estrada balançava, o vento batia no meu rosto, e meu coração pulsava de um jeito diferente. Eu tava indo pra algum lugar, e isso era novidade.
Depois de um tempo, o caminhão parou bruscamente na beira da estrada. O motorista olhou pra mim com cara de quem já tinha feito um favor grande demais.
— Desce aqui, menina. É o máximo que posso te levar.
— Mas aqui tem nada! Reclamei, olhando ao redor. Só mato, estrada e mais mato.
— Melhor que nada, né? Agora segue teu rumo.
Não tive escolha. Pulei da carroceria e senti o chão quente sob meus pés. O caminhão arrancou, me deixando ali, sozinha, sem ideia de pra onde ir.
Suspirei e comecei a andar. Meus pés doíam, mas eu não podia parar. Depois de um tempo, avistei algo estranho no meio daquele nada: muros altos, cercados de arame farpado.
Franzi a testa. Que lugar era aquele? Não parecia uma cidade, nem uma casa normal. Era grande, silencioso, meio assustador.
Aproximei-me devagar, sentindo um arrepio na espinha.
— O que será que tem aí dentro? Murmurei para mim mesma.
Fiquei olhando aquele murão alto, cruzando os braços. Mas que isso? Nunca vi casa com cerca parecendo prisão. Quem morava ali? Um rei? Um bandido? Um rei bandido?
Cocei a cabeça.
— Num é coisa boa, num...
Fiquei tentada a dar uma espiadinha, mas e se me pegassem? E se tivesse cachorro? Daqueles brabo, que corre atrás da gente?
Arrepiei só de imaginar. Melhor num arriscar.
Foi aí que vi uma árvore gigante do lado do murão. Linda, cheia de folhas verdinha, com uma sombra que parecia me chamar.
— Você tá mais simpática que esse muro, né? Fui até ela e me joguei no chão, suspirando. — E agora, Samanta? Tu é livre, mas livre pra ir pra onde? Dei um tapinha na testa. — Era mais fácil ser prisioneira... pelo menos num tinha que pensar!
Mas agora eu tinha. E precisava decidir rápido.