Capítulo 1
Aurora
Acordei dentro de uma gaiola.
O metal frio pressiona minha pele, fazendo o pouco calor do meu corpo parecer ainda mais escasso diante da temperatura mordaz da sala. m*l há espaço para esticar as pernas ou me sentar ereta. O ar é denso, pesado como se estivesse carregado de promessas não ditas — ou castigos à espreita.
Solto um suspiro trêmulo e tento olhar ao redor, mas a escuridão é completa. Não vejo nada, só sinto. Formas se movem dentro dela, sombras que dançam e criam monstros inexistentes — ou talvez não tão inexistentes assim.
Agarro as barras da gaiola por um instante, mas as solto de imediato. Estão congelantes. O frio corta minha pele, queimando-a como fogo. As palmas das minhas mãos ardem em carne viva.
Por que estou aqui? O que aconteceu?
Meu coração dispara com força dentro do peito. A dor se espalha, pulsa nas costelas, sobe pela garganta. Dói tanto que penso, por um segundo, que posso morrer. Pressiono as mãos contra o peito numa tentativa inútil de conter a Avalanche que cresce dentro de mim. Estou morrendo de medo. E nada pode mudar isso.
— Olá? — sussurro na escuridão, a voz quase inaudível.
Torno-me estranhamente consciente do meu vestido. Do tecido encostando na parte superior das minhas coxas, como se aquilo pudesse de alguma forma me proteger. É uma lembrança absurda, mas eu me vejo de novo na faculdade — assistindo às aulas, mantendo a cabeça baixa. Sempre de cabeça baixa... para que ele não me visse.
Mas ele me viu mesmo assim.
E agora estou aqui.
As memórias começam a emergir, devagar, como cacos de vidro surgindo da água. Mas eu as empurro para longe. Não quero lembrar. Não ainda. Dói demais. Uma traição tão profunda que me corta até o âmago, como se rasgasse o que restava de mim.
— Alô? — tento de novo, a voz mais desesperada desta vez. — Alguém pode me ouvir? Alguém pode me ajudar?
De repente, uma luz se acende.
Por um momento, fico cega. A claridade me golpeia com violência. Piscar não adianta. Meus olhos lutam para se adaptar, e então... vejo.
Um homem entra na sala.
Não o conheço. Seus cabelos estão penteados para trás com gel, e ele veste um terno que parece um número maior do que o necessário. Exala arrogância. Tem o rosto cínico, como um vendedor de carros usados que tenta esconder o cheiro de mofo dos estofados com perfume barato.
— Você está acordada — ele diz com um sorriso entediado. — Ótimo. Hora de começar o leilão.
— Leilão? — repito, sem compreender. Minha voz sai falha, arranhada, quase engasgada.
— Por que eu estou aqui? — pergunto, mesmo já sabendo a resposta. Mas preciso ouvir. Preciso confirmar. Preciso saber que não é só mais um dos pesadelos que me assombram desde que me tornei adulta.
Ele inclina levemente a cabeça, como se estivesse surpreso com a pergunta. Depois sorri com crueldade.
— Seu pai te trouxe até aqui. Ele precisa do dinheiro.
E então tudo desaba.
Meu pai me sequestrou.
A verdade me atinge com uma força devastadora. O chão desaparece. Meus joelhos cedem, e me deixo cair de volta contra o metal frio da gaiola. Queima minha pele, mas não ligo. Nada mais importa.
Meu pai me sequestrou... para me vender.
Como se eu fosse mercadoria.
Vinte horas mais cedo
— A história clássica da Bela e a Fera diz muito sobre amor, altruísmo e compaixão — diz a professora Williams ao microfone, de pé atrás do pódio. Atrás dela, o PowerPoint exibe uma imagem perturbadora da fera feia perseguindo uma bela donzela assustada.
Anoto o que posso enquanto escuto a palestra. Uma das minhas partes favoritas da faculdade é poder escolher as disciplinas que quero cursar. Escolhi — Literatura de Contos de Fadas — porque esses contos sempre foram especiais — para mim e para minha mãe. Ela lia para mim, uma história diferente todas as noites antes de dormir. Tenho quase certeza de que ainda leria, se eu não fosse — velha demais — para isso agora.
Puxo discretamente a barra do meu vestido para baixo. É um vestido branco de verão, simples, com pequenas flores amarelas. Um dos meus favoritos. Mas encolheu um pouco na última lavagem. Ainda serve, só que agora está curto demais para o meu gosto, especialmente sentada aqui numa sala cheia de gente.
Assim que a aula termina, pego meus livros e meu bloco de anotações. A maioria dos alunos usa notebook, mas eu gosto mesmo é de um bom e velho caderno de papel. Gosto da sensação da caneta deslizando nas páginas. Me faz sentir mais conectada com o conteúdo. Mais presente.
Por causa do meu pai, eu não tive acesso à educação por boa parte da infância. Então, agora que estou livre dele, faço questão de absorver o máximo que puder. Cada aula é um pequeno ato de liberdade.
— Oi, Aurora — uma voz masculina soa atrás de mim.
Viro o rosto e dou um sorriso para Anthony.
— Oi.
Anthony é bonito. Cabelos loiros e lisos, traços marcantes, um ar calmo. A cor do cabelo dele é parecida com a minha, o que faz com que muita gente no campus ache que somos irmãos. Mas não somos. Somos apenas amigos. Ele se apresentou logo no início do semestre, e eu me senti estranhamente segura perto dele.
Segurança não é uma sensação comum quando estou perto de homens. Nunca foi.
— Posso carregar seus livros?
— Ah, claro — respondo, entregando-os. Anthony sempre oferece, e eu sempre deixo. É gentil da parte dele.
Caminhamos juntos pelo campus. O outono está chegando. As folhas começam a tingir as árvores de vermelho e amarelo. Ainda está quente o suficiente para justificar o vestido leve, e eu queria usá-lo uma última vez antes que o frio tomasse conta de vez. Os invernos em New Haven são cruéis.
— Quer tomar um café? — ele pergunta.
— Tenho que ir pra minha próxima aula... Mas talvez mais tarde?
— Você sempre tem que ir pra sua próxima aula — ele responde com um tom que me faz franzir o cenho. É estranho. Amargo, até.
— Eu lutei muito pra entrar em Yale. Não vou estragar isso por nada.
— Eu entendo — diz ele, e toca meu braço de leve.
Não gosto muito disso. Pequenos toques sempre me deixam em alerta, mesmo quando vêm de alguém como Anthony.
— A gente pode tomar esse café mais tarde — completa, com um sorriso que tenta ser leve.
Aceno para os livros que ele carrega.
— Posso pegar meus livros de volta?
Ele hesita, só por um segundo. Mas então os entrega.
— Até mais, Anthony.
Viro as costas e sigo em frente, sem esperar a resposta dele.
Algo no jeito como ele falou... ficou na minha cabeça.