Aurora
Eu dirijo trinta minutos todos os dias para chegar ao apartamento da minha mãe. É muito menor do que a casa onde cresci, mas, por mais estranho que pareça, esse espaço apertado me faz muito mais feliz do que aquela mansão silenciosa que eu costumava chamar de lar.
O principal motivo é simples: meu pai não está mais aqui.
— Oi — digo, ao empurrar a porta e largar meus livros sobre a mesa da cozinha. Uma das pernas da mesa balança, mas já me acostumei. m*l percebo.
Mamãe está curvada sobre o fogão, mexendo algo com um cheiro indecifrável. — Como foi a escola?
— Foi boa, como sempre. Tenho uma tonelada de leitura pra fazer... Mas você foi quem insistiu que eu fosse pra Yale, lembra?
Faço uma careta provocativa enquanto me aproximo. Ela sorri de lado e me puxa para um abraço apertado.
— Já te disse hoje o quanto eu me orgulho de você?
— Todos os dias — respondo, sorrindo contra o ombro dela.
— Então deixa eu repetir. Eu estou muito orgulhosa de você, querida — diz, antes de me dar um beijo no topo da cabeça e voltar a mexer a panela.
— O que está fazendo?
— Ensopado de cenoura.
Nós nos encaramos por um segundo. Depois, caímos na gargalhada.
— Isso é horrível — ela admite, rindo. — Mas eu estou tentando.
Mamãe nunca foi muito boa na cozinha. Quando eu era criança, tínhamos um chef pago pelo meu pai. Ela nunca precisou aprender.
Depois que o deixamos, não tínhamos nada. Tivemos que recomeçar do zero. As duas.
— Vou ser a juíza disso — digo, pegando uma colher de p*u e mergulhando-a no ensopado. Levo uma pequena porção à boca... e quase cuspo de volta. — Não. Você tem razão. Isso está... horrível.
Ela ri alto e desliga o fogão.
— Vamos pedir comida.
— Podemos pagar?
Recebo uma bolsa de estudos para estudar em Yale, mas também estou mergulhada em empréstimos estudantis. Cada centavo importa.
Ela hesita. O sorriso some um pouco do rosto.
— Talvez um jantar congelado? Podemos dar conta disso.
— Tudo bem. Parece ótimo — digo, pegando sua mão antes que ela se afaste. — Mãe, você está fazendo o melhor que pode.
— Tenho tentado nos últimos anos, sabe? Mas parece que nunca é suficiente. Às vezes esqueço que não vivemos mais aquele estilo de vida.
— Só porque a gente não tem mais dinheiro, não significa que nosso estilo de vida seja r**m. Na verdade... acho que está muito melhor agora.
Melhor agora que meu pai não a machuca mais. Agora que ele não grita comigo por coisas pequenas, ou por absolutamente nada. Ele tinha dinheiro, sim, mas nenhum valor real. Viver naquela casa era sufocante. E, no fim das contas, há coisas mais importantes do que luxo.
Ela aperta minha mão com delicadeza, como se dissesse obrigada sem palavras.
— Você é doce.
— Você me criou assim.
— Vamos. Vamos ao mercado pegar algo gostoso — ela diz, pegando as chaves com um sorriso pequeno, mas verdadeiro.
E nós vamos. Porque agora somos só nós duas. E está tudo bem assim.
****
Na fila do caixa, recebo uma mensagem do Anthony perguntando se podemos nos encontrar. Respondo perguntando o motivo, e ele devolve com um simples: — Só quero te ver.
— Não entendi — murmuro, franzindo a testa para a tela.
Mamãe, espiando por cima do meu ombro, solta uma risadinha.
— Querida, ele está a fim de você. Já te falei isso faz tempo.
— Não tá não. Anthony e eu somos só amigos — respondo, meio automática.
Ela prende uma mecha do meu cabelo atrás da orelha com carinho.
— Às vezes, você consegue ser tão inocente. Nunca perca isso.
— Mãe, sério. Somos só amigos.
— Então por que ele vive te chamando pra tomar café?
— Porque amigos tomam café juntos — argumento, pegando uma barra de chocolate da prateleira do caixa. Vejo o preço: cinco dólares. Solto um suspiro e coloco de volta. Cada centavo importa agora.
— Sabe, você nunca namora. Eu entendi quando morávamos com seu pai. Ele nunca deixou. Mas agora, você é adulta, Aurora. Estamos livres. Você pode namorar. Pode viver. Pode se divertir.
— Eu não quero namorar o Anthony porque ele é meu amigo. Eu não o vejo assim.
Ela me cutuca de leve com o cotovelo.
— E tem alguém que você vê — assim ?
Balanço a cabeça. A verdade é... não é que eu nunca tenha sentido curiosidade ou interesse. É que meu pai me assustava tanto que matou qualquer vontade. Ele gritava comigo, me chamava de vagabunda só por olhar para um homem na televisão. E aquilo ficava marcado, sabe? Gravado na pele, mesmo sem nenhum toque.
Mesmo agora, livre dele, as palavras ainda ecoam. Uma vez li um artigo que dizia que a gente tende a se atrair por pessoas que nos lembram nossos pais. Aquilo me congelou. A ideia de estar com alguém que, de alguma forma, pudesse ser como ele... me deu pavor. Então decidi: não agora. Talvez nunca.
Por enquanto, quero só estudar. Estar com a minha mãe. Viver em paz.
— Eu só não quero que você fique sozinha pra sempre — diz ela, com suavidade.
— Mãe, eu tenho dezenove anos. Tenho tempo.
— É verdade, é verdade. Eu não devia ficar insistindo. Eu só...
— Só o quê?
A fila anda. Nos aproximamos do caixa. Coloco os jantares congelados na esteira — frango à parmegiana com uma cobertura que parece apetitosa na embalagem, mas que provavelmente vai sair do micro-ondas encharcada e sem gosto.
— Só quero ter certeza de que você vai estar bem cuidada. Caso... alguma coisa aconteça comigo.
Meu coração dá uma pequena batida fora do ritmo.
— O que aconteceria com você?
Ela sorri, aquele sorriso radiante que ela sempre usa pra esconder qualquer coisa.
— Nada. Só pensando no futuro, só isso.
Sei que ela está mentindo. Mas não insisto. Nosso relacionamento é assim. Como meu pai nunca respeitou nenhum limite, minha mãe e eu passamos a vida tentando respeitar todos. E isso, às vezes, significa evitar certas verdades.
Pagamos pelas refeições congeladas e saímos do mercado. Nenhuma de nós retoma o assunto.
Mas ele fica ali, pairando entre nós.