Capítulo 3: Um reencontro fatal

1983 Words
Os olhos de Kiera se arregalaram, e por suas mãos escorregou o pano e a vasilha de álcool que usava, indo direto para o chão. Julian prendeu a respiração, enquanto a olhava. Não podia acreditar que era ela. m*l conseguia respirar de excitação e choque puro. Ela mudara a cor do cabelo, e estava mais velha, obviamente, mas ainda tinha o mesmo rosto de personalidade forte e jeito gentil. No entanto, ele via dor, uma dor profunda e cortante em seus olhos verdes. Kiera não podia ficar mais nem um segundo ali, no mesmo espaço que ele, o encarando, como se pudesse assistir ao passado glorioso que um dia teve. Ela recolheu rapidamente o material e saiu praticamente correndo. — Kiera... Kiera! Ele queria ir atrás dela, lhe explicar o que houve, implorar perdão, mas não fora capaz de mover um dedo, como o covarde que era. Nathan assistiu a cena sem nada entender. — O que foi isso? Julian piscou, rapidamente. Não queria explicar a ninguém sua covardia e o sentimento que ainda brilhava em seu peito, escondido e amassado pelas escolhas do destino. — Nada. Nada demais. E seguiu para o elevador. Nathan olhou para a direção onde a jovem seguira. A bela jovem que ele e os colegas de trabalho as vezes faziam brincadeiras. Mas no fundo, para ele, era apenas desejo reprimido. Pelo menos, com ela. Kiera entrou em um banheiro e se trancou em um box. Ela fora forte, durante aqueles anos, fez de tudo para ser o mais forte possível, mas a verdade era que ser abandonada, covardemente pelo homem que ela amava, ainda lhe doía. Mas com o tempo e os acontecimentos, ganhou uma nova dor, que era capaz de dilacerar tudo por dentro. Ela quase sucumbiu na época. Mas vê-lo ali, tão perto, tão bem, tão belo e forte como ela se lembrava, não apenas reativou velhas lembranças como trouxe à tona toda a intensidade daquele sentimento avassalador e destruidor que possuía seu coração. Kiera se viu refém mais uma vez de uma dor que não devia ser dela. De um sentimento guardado e trancado a sete chaves. Não pensou que o veria de novo, mas sabia que se um dia isso tivesse de acontecer, seria ali. Era o local mais óbvio. O filho pródigo retornou... Era tudo que Davin tentou evitar durante muito tempo. Por que agora? E por que ele não aparecera ainda? A volta de Julian tinha algum significado maior? Ela não sabia, e naquele momento, não queria. Só precisava se recompor. Prender, assim como fazia todos os dias, aquele sentimento de dor, abandono e rejeição. Que infelizmente, se ligava aos acontecimentos dos anos seguintes... E era aí, que ela não aguentava. Chorava mesmo. Quase silenciosamente, mas chorava, até sentir a cabeça latejar e o coração em frangalhos. Um mix de sensações se iniciava. A culpa, o medo, a perda, a dor, tudo junto. Ela trazia dores ainda mais antigas. Acessava memórias quase esquecidas. Apenas para sentir ainda mais dor. Se torturar, derramar mais lágrimas e quase desfalecer. Kiera era forte. Resistia as piadas sem respondê-las apropriadamente, engolia as ofensas de sua tia de mau humor, sorria para quem desejava matar, mas havia um limite, uma linha que quando cruzada, partia sua alma em pedaços. E levava um tempo até ela se recuperar totalmente. Até conseguir levantar, lavar o rosto e sair para o mundo à fora. Em um tempo recorde, ela saiu do box do banheiro só uma hora depois. Não podia ficar mais ali, mesmo desejando morrer sentada sobre o vaso e jamais ser lembrada por outro alguém. Mas seu futuro dependia daquele trabalho. A justiça tinha que ser feita e se não seria pelos métodos naturais, seria por ela. Quando terminou de lavar o rosto, Elena entrou. — Graças a Deus! Você está aqui. Te procurei por horas. Kiera nada disse, apenas pegou uma toalha para secar o rosto e as mãos. — O que aconteceu? Você está bem? Kiera fungou, levantou o queixo e encarou-a. — Essas toalhas precisam ser trocadas. Advertiu e foi saindo. Elena lhe segurou pelo braço. — Kiera... O que está havendo? — Ele voltou, Elen. Ele voltou. Elas saíram do banheiro em silêncio. Elena podia imaginar do que se tratava, mas preferiu não questionar. — Eu estava terminando de limpar o elevador quando ele chegou. Tão bonito, formal, elegante... Não parece nem um pouco com o Julian que conheci. — As pessoas mudam. Você também mudou. — É, ninguém permanece o mesmo para sempre. — Por que você acha que ele veio agora? Será que sabe de você? — Não, ele ficou surpreso em me ver aqui. O motivo de sua volta é outro. Mas não me importa. Só preciso manter distância. Ele é covarde demais para me procurar. — Tem certeza disso? Ele mudou. Pode não ser mais tão covarde. — Ele nem se moveu quando me viu. Podia ter vindo atrás, mas não veio. Pra mim é suficiente. Elena deu de ombros, convencida de que sua amiga provavelmente estava certa, porém torcendo para que não. Ela sabia que se Julian ainda mexia tanto com o emocional de Kiera, isso significava alguma coisa. Talvez ainda houvesse uma chance para os dois, afinal. Quando o assunto era amor, ela sempre mantinha uma chama acesa de esperança. Kiera voltou ao trabalho, tentando se manter longe do pensamento de que ela e Julian não só estavam sobre o mesmo solo nacional, como no mesmo teto, pisando no mesmo chão. Ela respirou fundo, mantendo o foco no trabalho. Na hora do almoço, os assuntos mais comentados era a volta de Julian e a festa que aconteceria dentro de dois dias, para todos os funcionários. Kiera enxergou ali uma grande oportunidade de se aproximar de Davin. Ela ainda não sabia exatamente o que faria e até onde iria caso atraísse a atenção do chefe, mas tinha de arriscar. Talvez fosse sua melhor chance. E ela não poderia desperdiçá-la. *** Julian estava inquieto na reunião, com o coração batendo forte e os pensamentos longe. Ela podia não estar em um elegante vestido como ele costumava ver, e nem com o natural cabelo castanho e aparência jovial, mas Kiera continuava tão bela e elegante quanto antes. E seus olhos... Tão sofridos. Sua boca, tão fina e doce... Seu corpo... Ainda mais escultural que antes. Caramba, ela era uma grande mulher. Ele não pensava no que perdeu, pensava na família que teriam construído se ele tivesse ficado. Em tudo que teria a ganhar, sendo duro e firme e vivendo ao lado de quem realmente amava. A sorte dele, era que a reunião era de assuntos triviais, apenas formalidade e não durou nem uma hora. E ele poderia se atualizar em breve. — Espero que esteja pensando na festa e não na loira que esbarramos. Seu irmão parecia não saber e nem se lembrar quem ela era. Isso lhe dava a impressão de que era importante continuar assim. — Na festa, claro. E em papai. Ele vai? — Sim, não quer comentários de que ele possa estar doente. Afinal, ele não perde uma festa. — Mas ele está doente. — É, mas ninguém sabe. Não se esqueça. Julian bufou, se levantando. — Acho essa história absurda. Principalmente de não nos contar o que ele tem. — Concordo plenamente. Isso me preocupa, mas não posso fazer nada se ele quer assim. Aí, vai me dizer quem era aquela mulher que encontramos? Julian ponderou se deveria ou não revelar a verdade. Havia alguma coincidência naquela situação? Ou Kiera fora trabalhar ali com alguma intenção? Se fosse, qual seria? Ele não seria tão egocêntrico em pensar que era por ele. Afinal, ela saiu correndo quando o viu. Mas então, por quê? Por fim, apenas concluiu que se ela quisesse que mais alguém soubesse, ela mesmo teria contado. Havia algum motivo por trás daquilo. Quem sabe era apenas vergonha por ter de trabalhar para o ex-sócio do pai depois de tudo que aconteceu. É, ele se convenceu que era isso, por hora. — Uma ex... Só isso. — Hum. Então não tem problema se eu quiser ficar com ela, por acaso? O sangue de Julian ferveu. — Como assim? — Bom, ela é gostosa e muito atraente. Quem sabe na festa, se ela aparecer... Bem, eu vou investir, com certeza. E você tem a Dayse, então não vai se importar. Nathan lhe deu dois tapas no ombro e sorriu, saindo da sala em seguida. Julian ficou parado, por alguns instantes. Depois passou a mão pelo cabelo e respirou fundo. Ele tinha de reconhecer que aquilo não seria nada fácil. Aquela situação era absurdamente insuportável. Ele não devia sentir mais nada por Kiera. Devia ter se esquecido completamente dela. Do rosto, do cheiro, do gosto. Mas ainda se pegava lembrando de cada momento, desejando repeti-los, ansiando pelo simples toque... Mas era errado! Absurdo e completamente inadequado! Ele era noivo de uma mulher belíssima que muito em breve chegaria para acertar mais detalhes do casamento. Ele não podia, de forma alguma, estar desejando Kiera Wast. Como um sentimento poderia sobreviver a quase 10 anos? A distância? A sua covardia e falta de honestidade? Não era possível. Aquilo devia ser outra coisa. Desejo reprimido, carência, culpa... É, era tudo isso que ele sentia, menos amor. Naquele dia, quando chegou em casa, Kiera estava arrasada e ainda mais cansada do que de costume. Ela ficou uma hora a mais no trabalho para compensar o tempo no banheiro, e quando chegou sua tia já havia aprontado o jantar. — Espero que não tenha... — Não, tia, hoje não, por favor. Ela desabou no sofá de dois lugares. Jasmine encarou-a. Alguma coisa tinha acontecido dessa vez. Kiera não recusava uma pequena discussão. — O que aconteceu? Descobriram você? — Ainda não. — Como assim ainda não? — Acontece que o outro filho do Davin retornou. Ela ajeitou-se, olhando fixamente para a tv, sem olhar de fato para o que passava. Jasmine arregalou os olhos, temendo que seu raciocínio estivesse correto. — Está falando... do Julian? — O próprio. — Oh, céus. Ele a viu? — Ah, sim, com certeza. E reconheceu. — Jesus, Maria e José. E agora? — Agora nada. Vou continuar trabalhando normalmente. — Kiera! É arriscado demais! Você sabe o que Davin pode fazer se descobrir você lá... Kiera olhou para sua tia. A clara preocupação estampada em seu rosto não a afetava nem um pouco. Não tinha mais nada a perder. Aliás, tinha... — Eu conheço os riscos, titia. Mas não posso parar agora. Sinto uma oportunidade surgindo e não vai ser o retorno dele que acabará com meus planos. — Ele vai contar ao pai! Mesmo que não seja conivente com as ações dele, inocentemente, vai revelar quem você é. Davin logo vai sacar a sua e não medirá esforços para acabar com você! — É possível, muito na verdade, mas por algum motivo o Davin não foi trabalhar hoje. E ele raramente falta. A volta do Julian significa alguma mudança. Algo está acontecendo e se existe a remota chance do Julian não revelar nada, seja por covardia ou vergonha, eu não irei desperdiçá-la! Jasmine com certeza a pegaria pelos cabelos se pudesse. Mas apenas balançou a cabeça, transtornada com a falta de bom senso e juízo em sua sobrinha. — Não seja tola Kiera, desisti enquanto ainda tem tempo. Por favor! Se não por você, por mim! — Desculpe tia, mas não posso fazer isso. Se a senhora não me quiser mais aqui, por achar que ofereço risco a sua vida, eu vou entender, mas não posso parar. Não mais. Kiera deu um beijo na testa de sua tia e foi para seu quarto. Exausta e ainda ouvindo o som da chuva, ela apenas tomou um banho e dormiu até o dia seguinte. Quando acordou, tinha certeza de que o dia lhe aguardava muitas surpresas.
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