Capítulo 4: Arrependimento

1986 Words
A chuva tinha dado uma trégua naquela manhã, mas a previsão dizia que a tarde seria chuvosa e acompanhada de alguns relâmpagos. Ao chegar, Kiera notou tudo normal. Ninguém olhava de outra forma, nada além do habitual, e não fora chamada por ninguém. Ela respirou aliviada quando viu Davin passar no saguão com o mesmo ar de arrogância e cinismo de sempre, sem nem sequer olhá-la. Ela começava a montar uma estratégia para atrair a atenção do grande chefe. Apesar de m*l ter consciência sobre sua própria beleza, ela sabia que o vestido certo poderia chamar a atenção de qualquer um. E ela tinha a impressão de que o tinha em seu guarda roupa, ainda do tempo em que ela podia se esbanjar em lojas francesas. E como mantivera o corpo e o peso, certamente ainda caberia. Kiera subiu alguns andares, para varrer e passar pano em um andar que quase não funcionava, mas era regularmente limpo. Julian estava no elevador, pensando, se retraindo, evitando pensar e desejar, quando as portas se abriram para um homem entrar e ele a viu. Ela estava de costas, utilizando uma espécie de esfregão no chão. Nem em mil anos, ele poderia imaginar aquilo. Quando soube do que acontecera, pensou que Kiera, bem estudada, poderia conseguir um bom emprego em alguma agência de turismo ou até de moda, mas aquilo? Ele sabia que não devia dar ouvidos a seu coração, que poderia se arrepender. Mas se arrependera por muito pelo que fez. E sabia que ás vezes era melhor do que se arrepender por não fazer. Ele segurou a porta e saiu. Kiera nem notou sua presença, até ouvir o som de passos, a respiração irregular, o cheiro de colônia masculina familiar. E o olhar. Era difícil não saber quando alguém estava olhando-a. Seu medo era que esse alguém fosse ele. — Kiera. Sua voz estava um pouco mais grave, ela notou, mas reconheceu-a de imediato. Lentamente, ela se virou, com o olhar determinado e o coração batendo forte. — Perdeu algo aqui? Ela continuava impaciente e de língua afiada, ele pensou. Desejou sorrir, pela lembrança, mas se conteve. — Perdi. E nós dois sabemos o que foi. — Não se perde o que nunca teve. Se estiver falando de coragem. Ele abaixou a cabeça, por um segundo, antes de encará-la profundamente. — Eu não queria... — Me magoar? Ora essa, tivesse sido homem o suficiente e terminado comigo! E não me deixado sem respostas por dias e de repente, aparecer postando foto em tudo que é lugar com outra mulher! — Me desculpa... — Você foi um covarde e traidor, Julian. Primeiro quando não quis enfrentar seu pai. Ele te mandou pra longe e você sabe o porquê! Ele não nos queria juntos e conseguiu. O coração de Julian se apertava a cada segundo que a olhava. Que via em seus olhos a dor e o sofrimento que causou a ela, e por tudo que já lhe acontecera. Ele não era culpado pelas perdas, mas teria feito muita diferença sua presença na vida dela, e sabia disso. — Eu fui um t**o completo, o pior dos homens, eu sei, mas... — Mas o quê? O que você quer? Por que não me deixa trabalhar em paz? A última coisa da qual preciso agora é ser demitida. — Lhe garanto que isso não vai acontecer. — Ah, você garante. Como me garantiu que voltaria pra ficarmos juntos? Que viajaríamos o mundo e construiríamos nossa família? Julian, é essa garantia que me dá? As lágrimas silenciosas e mortais começavam a surgir nos olhos de Kiera. Se passou tanto tempo, e ainda conseguia sentir tudo aquilo de novo, como se pudesse arrebentá-la. Julian balançou a cabeça. Ele não tinha muito o que dizer. Na verdade, nem sabia porque havia ido falar com ela. Mas queria ouvir sua voz. O que ela teria para dizer. Era claro que só havia restado magoa e dor. — Eu admito, fui covarde, i****a, babaca, mas eu não sou assim. Eu tive medo... Medo do meu pai, do que ele faria se eu não seguisse suas ordens. Ele me pediu pra me afastar, pra arranjar alguém, porque eu não voltaria e você seria infeliz. A distância iria te deixar muito m*l e você não iria querer terminar por pena de mim ou por achar que ainda havia uma esperança de eu voltar. Eu achei melhor... — Obedecer seu papai e tomar a decisão por nós dois. Que belo homem que você é, não? Aposto que voltou a pedido dele também. Kiera estava chegando ao seu limite, segurando as lágrimas como se segurasse sua própria dignidade. — Sim, porque... Bem, ele pediu e eu não podia dizer não. Você sabe que depois da mamãe, só sobrou nós três. — Bom, pelo menos vocês são três, não é? E mais os milhões, e os amigos falsos que cultivam. Acha que vou ter alguma pena de você? Depois do que me fez? Depois de tudo que passei? — Eu lamento muito. De verdade, Kiera, eu queria muito ter vindo falar com você, mas... — Deixa eu adivinhar, seu pai não deixou? Onde está a surpresa nisso? Engula sua falsa lamentação e me deixe em paz. — Eu não posso... Não consigo. Ele deu mais um passo, se proibindo e ao mesmo tempo, necessitando. Kiera não poderia permitir que ele se aproximasse nem mais um pouco. — Pois dê seu jeito. Não ache que depois de tudo o que aconteceu, com suas desculpas esfarrapadas e palavras medíocres irei me jogar ao seus braços. Isso não é um romance dos livros, Julian. Ele deu um suspiro profundo. Tinha total consciência daquilo, mas ainda sim, era tão tentador. E ela estava tão perto, logo ali, ao alcance de suas mãos. Os lábios tão saborosos e implorando por um toque. Ele não pôde deixar de notá-los, ainda mais apetitosos do que antes. — Não precisa ser. Desde que você... O celular dele tocou, enquanto avançava o próximo passo. Kiera pronta para recuar, o observou atender o telefonema rapidamente. Quando desligou, ele praguejou, baixinho, e ergueu o olhar para ela. — Me desculpe, eu preciso ir. Mas essa conversa ainda não acabou. — Acabou há quase 6 anos, Julian. Só você que não percebeu. Ele voltou ao elevador, e ela a sua faxina. Com o pensamento inquieto, Kiera não conseguia saber se realmente teria resistido a ele. A uma aproximação maior. Ao cheiro, ao toque, ao gosto... Será que ele ainda tinha gosto de whisky e cereja? O perfume era de livros velhos misturado com fragrância amadeirada masculina? O toque ainda era suave, quente e intenso? Ela respirou fundo, quando se pegou tendo aqueles pensamentos. O melhor era manter sempre uma distância segura entre eles. Não sabia como ainda era capaz de ainda existir tal atração depois de tanto tempo e com a distância. Como algo assim sobrevive as barreiras do tempo? E transcende os limites da dor e da tristeza? Aquilo não devia ser possível. Ela tinha de resistir. Faria o possível e o impossível para manter-se o mais longe de Julian, de modo que não pudesse cair em nenhuma de suas desprezíveis desculpas. O problema, era que seu plano de aproximar-se do seu pai, naturalmente, o envolvia. Afinal, ele estaria perto do pai. E ela não sabia o que ele poderia dizer ou fazer para afastá-la do homem. Com sorte, ele nem perceberia até que Davin estivesse comendo na palma da sua mão. E com mais sorte ainda, isso não tardaria a acontecer. *** Julian estava preocupado com o que quase fez naquele corredor vazio e tentador. Ele iria, com certeza, beijá-la, se não tivesse recebido aquela ligação. Não podia resistir a tentação, por mais precipitado e insano que fosse. Por que ela tinha de ser assim? Por que causava aquilo nele depois de anos? Por que? Ainda convencido de que fosse um pouco de carência, planejou uma noite agradável ao lado de sua noiva. Enquanto o mundo desabava de chuva em Liverpool, Dayse desceu do jatinho direto para os braços do noivo. — Que saudades meu amor! — Oi, querida. Ele respondeu, quando ela já tinha pulado em cima dele e agarrado-o pela cintura. Dayse o encheu de beijos, e Julian precisou se concentrar pra não chamá-la de Kiera, quando a imagem da mulher veio a sua mente. Ele fechou os olhos e abraçou Dayse com força. Tinha de se certificar que era ela. — Como foi de viagem? — Muito bem. Resolvi tudo. Meus pais devem chegar no próximo mês. Acho que mais alguns meses e podemos casar. O que acha? Agora estavam lado a lado no carro, com um enorme espaço entre eles no banco, que nem parecia que ela lhe agarrara loucamente instantes antes. Julian já não tinha mais certeza de seus sentimentos, naquele instante, mas mesmo assim, respondeu-lhe como ele sabia que ela gostaria. — É claro, meu bem. Como quiser. A chuva começou a cair apenas no final da tarde. Para a infelicidade de Kiera, seu guarda chuva quebrara e ela não poderia esperar o tempo passar. Todos sabiam que não passaria. Ela caminhou segurando sua bolsa firmemente até o ponto de ônibus. No caminho, Nathan estava dirigindo, já que seu irmão levara a limusine pra buscar a noiva, quando avistou a loira reluzente caminhando na chuva. Ele franziu a testa, encostando o carro e abaixando o vidro. — Ei! Enlouqueceu? Cadê seu guarda chuva? — Por acaso é cego? Não viu que não estou usando? Por que será? Nathan pensou em deixá-la ali. Sofrer o castigo por sua língua. Mas não valia a pena tamanha maldade. — Deixe-me levá-la até o ponto mais próximo. — Não é necessário! E ela voltou a caminhar, enfrentando a chuva e o vento forte. — Deixe de orgulho! Uma carona não vai matá-la. Mas não aceitá-la... — Eu passo. Obrigada. Nathan suspirou, pensando em realmente deixá-la ali. Mas de alguma forma, ele não conseguia ir. Pensou logo, e se fosse mamãe? Afinal, o tempo jamais mudou ao longo dos anos. Não que usasse muito essa lógica para a maioria das coisas erradas que fizera, mas uma vez na vida, gostaria de fazer algo legal. Ele estacionou, saiu do carro e correu até ela. — O que pensa que está fazendo? — Se Maomé não vai a montanha, a montanha vai a Maomé. — Vai fazer o quê? Me acompanhar até lá? — Se necessário, sim. — Por que? Ele parou de andar, com sua pergunta. As gotas severas de chuva deixando-os encharcados, mas nenhum dos dois parecia se importar muito. E de certa forma, ele também não fazia ideia do porquê estava ali, mas sentia que devia, de alguma forma. — Não poderia deixar uma mulher andar nessa chuva sem proteção se posso ajudá-la. Minha mãe me ensinou assim. Kiera sabia que a mãe deles havia falecido há muitos anos. Diziam que ela era uma mulher respeitosa, educada e gentil com todos. Certamente criara os filhos bem, até onde o tempo lhe permitiu. Com um suspiro, sabendo que não ganharia essa, ela deixou-se vencer, pelo menos uma vez. Kiera caminhou até o carro dele em silêncio. Nathan sorriu e também caminhou. Logo entraram. Parecia mais aquecido ali dentro. — Não tente nenhuma gracinha ou piadinha de mau gosto, que pode ter certeza que não vai gostar do que lhe acontecerá. Nathan levantou as mãos em sinal de rendição, depois riu e ligou o carro. Estava convencido de que ela faria qualquer coisa para se defender. E não a tirava da razão de forma alguma. Mas de um jeito estranho, não sentia a necessidade de fazer qualquer idiotice, ainda. Muito pelo contrário, queria lhe mostrar seu lado do bem, queria que ela ficasse agradecida de verdade, não superficialmente. De uma forma muito incomum, Nathan queria que ela gostasse dele, e não o visse como o babaca egocêntrico que ele costumava ser.
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