Kiera ficou em silêncio, ainda sentindo o frio passear pelo corpo molhado. Com a chuva ainda mais forte, ela não sabia se teria sido uma boa ideia ter ou não pego aquela carona. Mas pelo menos por um tempo, ele não disse e nem fez nada além de dirigir e lhe perguntar o caminho para sua casa, a fim de saber qual o ônibus que ela pegaria e o trajeto.
— Você trabalha há muito tempo na empresa?
Por que ele queria saber? pensou ela. A pergunta lhe deixou inquieta por dentro. Ela quase lhe disse o que estava em seus pensamentos, como de costume, mas milagrosamente, resolveu não dizer.
— Pouco mais de um ano.
— É só o que sabe fazer?
— Por que isso seria da sua conta?
Ela virou a cabeça para olhá-lo. Nathan deu um risinho.
— Uou, calma. Não quis ofendê-la. É só que você é muito bonita e parece ser inteligente. Difícil acreditar que não tenha estudos sabe.
— Nada disso significa sucesso.
— Às vezes só precisa de um empurrãozinho.
— O que está insinuando?
— Que com a ajuda certa... Quem sabe o que poderia se tornar?
A mão de Nathan foi parar em sua coxa molhada. Ele deu um olhar significativo para ela.
Mas é claro. Como se deixou ser tão tola? Acreditar que algo bom poderia vir de um Bishop. Suas intenções claramente eram outras, e agora ela sentia-se uma verdadeira i****a por ter aceitado a carona.
— Para esse carro.
— O quê?
— Para esse carro agora! Eu quero descer!
— Mas por quê?
— Pare!
Ele encostou o carro. O ponto de ônibus estava bem perto, ela podia ver. Agradeceu aos céus, tirou o cinto e o encarou. Uma fúria reluzindo em seus olhos verdes.
— Se ousar encostar em mim de novo sem minha permissão, eu vou quebrar cada um dos seus dedos.
Ela saiu do carro, e fechou a porta com força.
Nathan praguejou e saiu do carro. Agiu novamente como o babaca que era. Por que tinha que ser assim? Por que não podia ser diferente? Não era à toa que as únicas mulheres que o queriam eram as interesseiras.
— Espera! Por favor.
Ela andou o mais rápido que pôde. O ponto estava deserto, mas pelo horário, o ônibus não deveria demorar.
— Me deixa em paz!
— Me desculpa, eu sou um i****a.
— Acho que não tem culpa, está no seu sangue.
Disse sobre o ombro, chegando ao ponto, que tinha cobertura e bancos secos. Ela agradeceu internamente.
— Como assim?
Ele parou há uma distância segura, que ela não sentisse que ele era uma ameaça. Apesar de saber que o fato de ainda estar ali já lhe dava essa impressão.
— Esqueça.
— Eu não sei o que aconteceu entre você e o meu irmão, mas eu não sou ele.
— Acabou de provar o contrário. Por favor, me deixe em paz. Apenas quero voltar pra casa sozinha. Como faço todos os dias.
Nathan não iria insistir mais. Não devia. Nem a conhecia direito. Não entendia essa necessidade estranha de ajudá-la. Talvez tivesse a ver com o desejo reprimido. E que certamente aumentara com a rejeição dela. Mas tinha de manter alguma dignidade.
— Tudo bem. Vou deixá-la em paz. Mas...
Ele tirou o sobretudo, e depois o paletó, um pouco menos molhado, e lhe cobriu os ombros, trêmulos. Kiera encarou-o, sem compreender, nem a insistência e nem o gesto. Mas aceitou o paletó de bom grado. Este um pouco mais quente do que suas roupas quase coladas a pele.
— Vou devolvê-lo amanhã.
— Não é necessário.
— Eu insisto.
— Tudo bem.
E assim Nathan voltou ao carro. A observou antes de entrar. Depois respirou fundo, já no veículo.
Qual era o problema dele? Desejo? Ou ter o que um dia fora de seu irmão? Ambas as coisas?
Não importava. Não iria perturbá-la mais. Se sofreu com Julian, que era infinitamente melhor que ele, com certeza não poderia fazer melhor. Duvidava, mas no fundo sabia.
Kiera pegou seu ônibus alguns minutos depois. No caminho, ela observava a janela, pensando na vida, no futuro, no dia seguinte. E de repente, o cheiro forte de perfume e whisky lhe subiu as narinas. Era do paletó. Familiar ao irmão, mas infinitamente diferente. O cheiro era mais forte, menos suave do que o de Julian. E o gosto da bebida quase podia ser sentido. Se ela torcesse o paletó, tinha quase certeza que o líquido sairia com o gosto de whisky.
O dia seguinte era o tão esperado dia da festa. E Kiera ainda não sabia como devolver o paletó. Deveria guardar para outro dia comum. Não seria nada bom ter a atenção de todos quando entregasse o paletó ao dono. Como se ele tivesse o esquecido em sua cama. Não lhe parecia uma boa ideia. Não mesmo.
Para esse dia, ela escolheu um de seus melhores vestidos. Fez um penteado diferente, passou maquiagem, colocou saltos. Era uma mulher diferente da que ia trabalhar. Muito diferente. Quase irreconhecível. E era isso que precisava. Ficar a mais bela possível, para atrair o olhar de Davin Bishop.
O problema seria cuidar dos outros dois.
Julian não estava muito animado com a festa. Mas Dayse insistira bastante e seu pai praticamente lhe ordenara que ele comparecesse. Preferia mil vezes ficar enfurnado na biblioteca. Mas não tinha muita escolha. Como de costume.
Nathan ainda pensava bastante no dia anterior, se castigando por ter sido um babaca completo. Não conseguia se aquietar nem um segundo? Qual era o problema dele?
Com um suspiro, ele terminou de ajeitar a gravata borboleta preta e se convenceu de que aquilo era apenas carência. Que assim que conseguisse uma mulher para se divertir, esqueceria da faxineira. Era apenas desejo e falta de atenção, nada além disso.
E assim, todos seguiram rumo à festa.
Nathan usava um smoking vermelho vinho, com uma cinta de cetim e a gravata borboleta preta.
Davin escolheu seu elegante smoking branco, de cinta e gravata preta.
Julian preferira o tradicional terno inglês azul de tweed, levemente ajustado ao corpo, ombros ligeiramente mais estreitos e com uma cava mais alta. Com duas fendas, as aberturas na parte de trás do paletó, calças ligeiramente mais alta com duas ou mais pregas e as barras mais tradicionais.
Dayse usava um vestido vermelho tomara que caia, abaixo dos joelhos, bem justo ao corpo. Seu cabelo preto não era muito grande, um corte Chanel, totalmente liso, combinando com seus olhos azuis escuros. Uma maquiagem básica de tempo mínimo de duas horas, um batom vinho e estava pronta.
A festa começou por volta das 14 horas.
Os anfitriões chegaram pouco depois. Aplaudidos, entraram no salão. Julian não era nem um pouco chegado a toda aquela falsa demonstração de afeto, carinho e respeito. Já Nathan, sorria abertamente, recebendo cada palma com glória.
Julian começou a percorrer seus olhos entre os convidados e funcionários, em busca dela, mas não a encontrava. Com Dayse apoiada em seu braço, ele perscrutava o salão de festas, queria vê-la, precisava, mas também não sabia como iria se controlar caso a achasse.
Kiera desceu do táxi. O tempo fechado, ainda sem chuva. Cada passo fazia seu coração acelerar e o corpo estremecer. Mas usava cada faísca de controle existente para se manter de pé. Havia um tempo que ela não usava salto, mas era como andar de bicicleta, jamais se esquecera.
Elena havia chegado pouco depois dos chefes, e inquieta, olhava a todo instante para a entrada do salão. Kiera lhe dissera que precisava entrar sozinha e não a esperasse. Teria uma pequena surpresa.
E quando ela olhou mais uma vez, viu de imediato o brilho reluzir.
Com um vestido cinza, de pequenas pedras brilhantes, Kiera entrava no salão. Abaixo do joelho, com um decote generoso, o vestido tinha apenas a alça direita postada em seu ombro. De seda, a roupa continha pedras verdadeiras de diamante, um dos raros vestidos que ela guardara. Era seu preferido. Sua mãe lhe dera no seu aniversário. E foi uma das únicas coisas caras que ela não tivera coragem de vender.
O cabelo platinado estava preso em um coque, com uma mecha solta de cabelo em cada lado. A maquiagem afinava um pouco mais seu rosto e realçava seus olhos verdes, e o batom vermelho não passava despercebido. O salto alto preto lhe dava alguns centímetros e uma postura pouco vista antes.
Elena sorriu, realmente surpresa e estonteante em ver sua amiga tão bem. Seu único receio era o que ela pretendia com aquele visual.
Conforme caminhava, muito homens e mulheres a encaravam. Uns babavam, outros admiravam, outros invejavam.
Julian foi um desses homens, o único que misturava os três. Ele não só a reconhecia, como podia ver uma nova mulher. Uma pessoa diferente. Com uma postura diferente. Alguém que ele não vira antes. Não dessa forma. Seus lábios secaram, sua garganta nada passava, e seus olhos continuaram vidrados.
Nathan sorria com uma piada contada por uma mulher, quando avistou-a. Seu coração acelerou e o desejo reprimido se tornou em uma insana vontade de tê-la. Os lábios pareciam tão apetitosos, o corpo escultural pedindo pelo seu toque. Ou seria seu toque que implorava a pele coberta pelo tecido de seda?
— O que achou, Elen?
— Kiera Wast? É você mesma? Eu não te reconheço! Nossa senhora, que mulherão! Por que escondeu essa mulher o tempo todo?
— Eu estava guardando para uma ocasião especial.
— Parece que ela chegou então. O que vai fazer?
Elena perguntou, olhando discretamente para os homens. Davin ainda não a tinha visto.
— Eu ainda não sei. Mas hoje é o dia. Davin Bishop vai precisar de muita força para resistir.
— Já pensou se o Julian resolver falar? Ou intervir?
Só então, Kiera resolveu olhar para eles. Nathan tinha uma mulher nos braços, como de costume, mas olhava diretamente em sua direção, assim como Julian. Este, também acompanhado de uma mulher. Essa, ela não reconhecia de nenhuma outra festa e nem dos funcionários. Mas... Havia algo de familiar nela. Seria...?
— Quem é aquela com o Julian?
— Você não soube?
— Soube do que?
Kiera olhou para Elena, que abaixou o olhar.
— Ele está noivo. Dayse Booth é aquela mulher, a noiva de Julian.
Kiera olhou mais uma vez, com profundidade, agora reconhecendo-a como a mulher que vira na foto com Julian há anos. A mulher que ele escolheu para expor para o mundo sua covardia e falta de honestidade. E Kiera m*l conseguiu se sustentar no salto pela primeira vez em anos.