Helena trocou rapidamente as roupas do dia anterior, pegando a muda de roupa reserva que sempre mantinha em seu armário no posto. Precisava apagar os traços daquela noite agitada, mas, enquanto vestia a blusa limpa, as imagens do estranho ferido ainda a rondavam, como se ele ainda estivesse ali, respirando pesado ao seu lado.
Respirou fundo, ajeitou o cabelo e foi até a recepção. Ligou as luzes e organizou o ambiente como sempre fazia, na esperança de que o dia seguisse o fluxo tranquilo de qualquer outro. O som da porta ao se abrir ecoou no posto vazio, e ela se acomodou, esperando que seus colegas chegassem.
Mas, a cada minuto que passava, Helena se pegava olhando para a janela quebrada, ainda sentindo a adrenalina da noite anterior. Ela balançou a cabeça, tentando afastar o pensamento de que aquele homem pudesse voltar. Enquanto organizava os materiais no posto, algo chamou sua atenção. Perto da maca onde o homem havia estado, um pequeno objeto brilhava no chão. Ela se aproximou e, ao pegá-lo, viu que era um chaveiro simples, com um pingente em forma de caveira, meio enferrujado, mas ainda intacto.
Helena franziu a testa. Aquilo não era de ninguém do posto, e a imagem da caveira a fez lembrar dos boatos que ouvira sobre certos símbolos usados por pessoas envolvidas no tráfico. Sentiu um frio na espinha ao perceber que talvez o homem que ela havia socorrido na noite passada fosse alguém muito mais importante do que imaginara.
Com o chaveiro ainda na mão, Helena lançou um olhar pela janela, lá fora, para o morro que parecia tão silencioso naquela manhã. Algo dentro dela dizia que o reencontro com o estranho ferido não seria por acaso — e que ele poderia aparecer de novo quando ela menos esperasse.
O assunto do dia não podia ser outro: os tiros que ecoaram pelo morro na noite anterior. Pacientes e colegas de trabalho falavam sobre o caos que tinha se espalhado pelas ruas. Helena ouvia as conversas enquanto fazia seu trabalho, tentando não demonstrar a inquietação que sentia por dentro.
— Parece que um grupo rival tentou invadir o morro, — disse uma paciente idosa, baixando o tom de voz como se houvesse perigo até em repetir as palavras. — Vieram armados até os dentes, mas foram recebidos a bala pelos donos daqui.
Helena escutava com atenção, sentindo um frio na barriga ao perceber que o homem que ajudara na noite anterior provavelmente estava no meio daquele conflito. Mais vozes se misturaram, confirmando o que todos pareciam saber: houve uma troca de tiros intensa, e algumas pessoas acabaram mortas. A tensão ainda estava no ar, como se o perigo pudesse voltar a qualquer momento.
Tentando manter o foco, Helena sentiu-se ainda mais envolvida naquele mistério. O desconhecido que ela tratara estava no coração de algo muito maior do que ela imaginara, e uma dúvida começou a crescer em sua mente: quem exatamente era ele naquela guerra silenciosa que dominava o morro?
Naquela tarde, Helena finalmente saiu no horário certo, aliviada por encerrar o dia sem imprevistos. Caminhava pelas vielas do morro, desviando de poças e buracos deixados pela chuva, quando o som de uma moto parando ao seu lado a fez congelar.
O rapaz que a encarava era alto, magro, com tatuagens espalhadas pelo peito e pelo braço. Ele a olhou com uma expressão séria, que não deixava espaço para discussão.
— Sobe aí, doutora. — disse, com um aceno firme para a garupa.
Helena sentiu as pernas fraquejarem e o coração acelerar. Tentou dizer alguma coisa, mas ele cortou o silêncio sem paciência:
— Sobe logo, p***a. São ordens do patrão.
Ela não precisava perguntar quem era o "patrão". Cada detalhe naquela situação deixava claro que estava ligada, de alguma forma, ao homem misterioso que socorrera no posto. Engolindo em seco, Helena respirou fundo e subiu na garupa, o medo misturando-se com uma estranha curiosidade sobre o que a aguardava.
A moto parou em frente a uma casa na parte alta do morro, bem diferente das construções ao redor. Helena m*l teve tempo de observar os detalhes da fachada, pois o rapaz ao seu lado a puxou pelo braço, guiando-a para dentro com pressa. Ao entrar, ela notou a decoração bem cuidada e organizada, com móveis de madeira escura e detalhes de bom gosto, algo inesperado para quem conhece as áreas mais modestas do morro.
No centro da sala, deitado em um sofá largo e de couro preto, estava o homem que ela havia socorrido na noite anterior. Ele parecia mais pálido e abatido, com o rosto marcado pelo cansaço. A camiseta aberta revelava o curativo improvisado no abdômen, agora sujo de sangue seco. Ao seu redor, quatro homens armados faziam a guarda, cada um com uma postura alerta e o olhar fixo nela. O ambiente estava silencioso, mas a tensão era quase palpável.
Helena sentiu o coração acelerar, mas tentou disfarçar o nervosismo. Sentia o peso dos olhares que a avaliavam com cautela, especialmente o olhar do homem ferido. Ele a observava com uma expressão séria, que parecia medir cada movimento dela.
— Trouxe você aqui pra cuidar disso — ele disse, indicando o próprio curativo com um gesto mínimo e um suspiro. A voz saiu rouca, com um tom de autoridade que não deixava dúvidas sobre quem comandava ali. — Aquele remendo de ontem não deu conta.
Ela tentou disfarçar o susto e a surpresa, ajeitando a bolsa com os poucos materiais de que dispunha. Sabia que ele era alguém importante no morro, alguém envolvido com o tráfico, mas não imaginava que estaria diante de um verdadeiro "dono" daquele território.
— Você... você está com febre, — murmurou, sentindo as palavras saírem mais fracas do que esperava. — Precisa tomar antibióticos.
Ele soltou uma risada seca, interrompida por uma careta de dor.
— Só cuida disso, doutora, — disse, trincando os dentes. — Não tenho tempo pra ficar de cama.
— Não sou doutora, sou apenas enfermeira.
— Tudo a mesma p***a.
Ela assentiu, tentando manter o foco. Limpou as mãos com o álcool que trazia consigo e se aproximou, sentindo a tensão crescer a cada passo. A proximidade o tornava ainda mais intimidador: cada detalhe da expressão dele revelava uma vida marcada por cicatrizes, escolhas e riscos que ela sequer imaginava. Ele observava cada movimento dela, como se tentasse entender o que se passava em sua mente.
Helena retirou o curativo com cuidado, revelando o ferimento inflamado. Enquanto trabalhava, o silêncio foi preenchido apenas pelo som da respiração pesada dele e dos guardas que se mantinham ao redor.
Quando terminou de trocar o curativo, ela pegou uma gaze limpa e limpou o suor da testa dele. Ele a observou de perto, e por um momento Helena sentiu como se estivesse diante de alguém diferente, quase vulnerável.
— Vai ficar uma cicatriz, — disse ela baixinho, tentando quebrar o silêncio.
Ele fechou os olhos, como se fosse indiferente ao aviso, e deu um breve sorriso amargo.
— Tenho outras, — respondeu ele. — Mais uma não vai fazer diferença.
Helena se afastou, tentando recuperar a postura. Por mais que estivesse ali contra sua vontade, uma curiosidade estranha a dominava. Ela queria entender quem ele era e como havia chegado até ali. Mas sabia que perguntas naquele lugar podiam ser perigosas, então guardou para si as dúvidas que insistiam em aparecer.