Capítulo 01 - O Retorno.
Gabriel Montenegro
O ronco do motor cessou assim que estacionei na rua estreita, iluminada por postes antigos e descuidados. Era curioso como a cidade parecia menor do que eu lembrava, como se o tempo tivesse encolhido as casas, as ruas e as pessoas que um dia fizeram parte da minha vida. Mas talvez fosse eu quem tivesse crescido demais. Ou mudado demais.
Fiquei no carro por alguns segundos, encarando a fachada do bar que costumava frequentar na juventude. A pintura estava desbotada, e as letras do letreiro pareciam prestes a desabar. Sorri de canto – mais por hábito do que por qualquer outro motivo. Não era nostalgia. Eu sabia que não pertencia mais a esse lugar.
Quando meu telefone vibrou no console, voltei à realidade. O nome de Camila, minha assistente, piscava na tela. Respirei fundo antes de atender.
— Diga, Camila.
— Você já chegou?
— Acabei de estacionar.
— Ótimo. Preciso te atualizar sobre a reunião com o conselho. Eles estão pressionando para agilizar o projeto da holding na cidade. Estão preocupados com a resistência local.
— Vou lidar com isso. Não se preocupe.
Fechei o telefone antes que ela pudesse insistir. Era sempre assim: problemas, pressões, expectativas. Era o preço que eu pagava por estar no topo. Não havia espaço para hesitação, muito menos para erros. Mas desta vez, o problema não era apenas profissional.
Saí do carro, sentindo o frio da manhã cortar minha pele. Era dezembro, e o vento carregava o cheiro de maresia, misturado ao perfume amargo de memórias antigas. Caminhei pela calçada com passos firmes, mas a verdade é que eu estava adiando o inevitável.
Quando alcancei a praça central, o velho relógio no topo da igreja bateu onze vezes. Olhei para cima, como se aquele som pudesse trazer respostas. Não trouxe. A igreja parecia exatamente como eu a deixara anos atrás – imóvel, inalterada, indiferente ao tempo e às pessoas.
Eu também tinha mudado. Aprendi a ser frio, calculista, um homem de negócios que não vacila. Mas ali, parado naquela praça, senti algo diferente. Talvez fosse a sombra do passado me espreitando, lembrando que, por mais que eu tentasse, nunca conseguiria enterrar completamente minhas raízes.
Do outro lado da praça, vi a livraria. Pequena, aconchegante, com uma vitrine cheia de livros desorganizados e um letreiro que já perdera a cor original. Meu peito se apertou involuntariamente. Era impossível não pensar nela. Helena.
Eu sabia que ela ainda estava aqui. Camila me informara disso antes mesmo de eu decidir vir. E mesmo assim, ver a livraria ainda funcionando era... estranho. Parte de mim esperava encontrá-la vazia, abandonada, como se isso tornasse mais fácil lidar com o que eu estava sentindo.
Sem perceber, meus pés começaram a me levar na direção do lugar. Não era a hora certa, mas quando foi a última vez que algo na minha vida aconteceu na hora certa?
No meio do caminho, uma voz me parou.
— Gabriel Montenegro?
Virei-me, encontrando um rosto conhecido, mas difícil de identificar no momento. Era um senhor, cabelos brancos e rugas profundas, segurando uma sacola de pão. Reconheci depois de alguns segundos. Seu Alfredo, o padeiro que costumava me dar pães frescos quando eu era criança.
— Sim. Sou eu.
— Não acredito... Voltou para cá depois de tanto tempo? Pensei que nunca mais ia pisar aqui.
Ele não soou amargo, mas havia algo naquelas palavras que me fez sentir culpado.
— Estou resolvendo algumas coisas. Não vou ficar muito tempo.
— Você é importante agora, né? Grande empresário. Ouvi dizer que sua empresa está comprando metade da cidade.
Aquele comentário era casual, mas bateu como um soco. Dei um sorriso forçado.
— Só fazendo negócios, Alfredo. Nada pessoal.
Ele assentiu, mas seus olhos diziam outra coisa. Algo que eu preferia ignorar. Quando ele se despediu e seguiu seu caminho, fiquei parado ali por um momento, observando a livraria.
Ela não me viu. Não ainda. Mas eu sabia que a hora estava chegando. Helena Duarte estava prestes a reaparecer na minha vida, e, pela primeira vez em anos, eu não tinha ideia do que fazer a respeito.
Continuei parado ali, observando a fachada da livraria. O letreiro antigo, as janelas com pequenas manchas de poeira... Era como se o tempo tivesse parado para aquele lugar. Mas, ao mesmo tempo, havia algo de novo, uma energia diferente que parecia pulsar dali.
E então a porta se abriu.
Helena surgiu, segurando um tapete pequeno, que bateu contra a lateral da parede com vigor. Seu cabelo estava preso em um coque frouxo, com alguns fios soltos balançando ao vento. Ela vestia um vestido simples, mas suas mãos carregavam a mesma determinação que eu lembrava.
Fiquei paralisado. Depois de tantos anos, ali estava ela. A mesma Helena, mas diferente. Mais madura, talvez até mais bonita do que eu me lembrava, se é que isso era possível. Meu coração deu um salto inesperado, e por um breve momento, considerei me aproximar. Era a oportunidade perfeita de começar essa conversa que eu vinha ensaiando mentalmente desde que decidi voltar.
Dei um passo à frente, mas parei no mesmo instante.
Uma menininha saiu correndo pela porta aberta da livraria, segurando um livro pequeno nas mãos. Seu riso era cristalino, ecoando pela praça. Ela segurava o livro como se fosse um tesouro, mostrando algo para Helena com um entusiasmo contagiante.
— Mamãe, olha! Tem uma história de dragões aqui! Igual você contou pra mim!
Helena se abaixou, sorrindo para a criança com um amor que iluminou todo o seu rosto. Ela passou a mão pelos cabelos castanhos da menina – tão parecidos com os dela – e disse algo que eu não consegui ouvir. Em seguida, beijou o topo de sua cabeça.
Meu peito se apertou.
Eu não precisava de mais do que alguns segundos para perceber a semelhança. A menininha era praticamente uma cópia de Helena, com olhos grandes e expressivos e o mesmo ar de curiosidade. Havia apenas pequenas diferenças – talvez no tom de pele ou no formato do rosto –, mas nada que deixasse dúvidas: aquela era a filha dela.
Minha mente começou a trabalhar rapidamente. Se ela tinha uma filha, isso significava que... Helena estava casada? Era isso? Parte de mim queria olhar para as mãos dela, procurar uma aliança, mas fiquei imóvel, como se o chão tivesse desaparecido sob meus pés.
Eu não sabia o que esperava encontrar ao voltar para cá, mas certamente não era isso. A imagem de Helena com uma família, uma vida totalmente construída sem mim, fez algo dentro de mim se fechar de forma dolorosa.
Balancei a cabeça, como se pudesse espantar aquele turbilhão de pensamentos. Não era da minha conta. Ela tinha seguido em frente, construído algo. E eu... bem, eu tinha o que merecia: sucesso, poder, mas uma vida que parecia mais vazia do que nunca.
Helena riu de algo que a menininha disse, e meu coração deu outro salto, seguido por uma dor aguda. Esse era o momento em que eu deveria me virar e ir embora. Deixá-la em paz. Mas, por algum motivo, fiquei ali por mais alguns segundos, incapaz de desviar o olhar.
E então, como se sentisse minha presença, Helena ergueu os olhos e olhou em minha direção.
Meu corpo inteiro congelou.
Por sorte, a praça tinha movimento suficiente para que ela não me notasse imediatamente. Caminhei na direção oposta, respirando fundo, como se aquilo pudesse aliviar o nó que começava a se formar em meu peito.
Ela tinha uma filha. E, talvez, um marido. Aquele pensamento me atingiu como uma lâmina fria. Eu sabia que não deveria sentir nada além de indiferença, mas a verdade era que, naquele momento, percebi que não estava tão preparado para esse encontro quanto pensei.
E pior: talvez não estivesse preparado para o que ele poderia significar.