Na manhã seguinte, despertou com os olhos inchados e o corpo moído. Acordar era sempre uma derrota. Significava enfrentar mais um ciclo de fadiga e sobrevivência.
Vestiu-se mecanicamente e saiu rumo ao restaurante.
O ar fresco da manhã cortava o rosto, mas também trazia um alívio breve. Havia uma beleza em Winchcombe que ela ainda conseguia perceber: os telhados inclinados cobertos de musgo, as ruas estreitas de paralelepípedo, as flores que desafiavam o frio para desabrochar nas janelas.
Mas essa beleza parecia não lhe pertencer. Era como se o mundo ao redor fosse um cenário de uma peça em que não tinha papel.
No restaurante, o movimento começou cedo. Um casal de idosos entrou de mãos dadas, sorrindo um para o outro.
— Bom dia. — cumprimentou Isadora, levando-os até uma mesa.
— Que lugar encantador. — disse a mulher, olhando ao redor. — Parece saído de um conto de fadas.
Isadora sorriu, mas seus olhos não acompanharam o gesto.
— O que desejam para hoje?
O casal pediu chá e pães frescos. Conversavam sobre os netos, rindo baixinho. Isadora anotou, entregou o pedido à cozinha e voltou com a bandeja alguns minutos depois.
Enquanto os observava, sentiu um aperto no peito. Era como espiar uma vida que poderia ter sido dela, mas nunca seria.
— Obrigada, minha querida. — disse a senhora, recebendo a bandeja com gentileza.
— De nada. — respondeu Isadora, a voz quase um sussurro.
As horas seguintes passaram em ritmo arrastado. O barulho de pratos, o aroma de café, as vozes misturadas — tudo parecia distante, como se ela assistisse a própria vida através de um vidro.
Até que, perto do final do turno, uma cliente comentou:
— Você parece cansada, menina. Está tudo bem?
Isadora parou por um instante, surpresa com a pergunta. Quase ninguém notava. Quase ninguém se importava.
— Estou bem. — mentiu, escondendo o cansaço com um sorriso vazio.
Mas, por dentro, a frase ecoou como uma ironia c***l.
Porque a verdade era que não estava bem.
Nunca estivera.
O sino da porta anunciou a saída do último cliente.
Isadora limpou a mesa com movimentos mecânicos, o pano úmido deslizando entre as xícaras manchadas de chá. O restaurante agora estava silencioso, restando apenas o barulho abafado da cozinha, onde a dona fechava as contas.
— Pode ir, Isadora. Eu termino aqui. — disse a mulher, sorridente, mas com um tom que não admitia recusa.
— Tem certeza?
— Claro. Vá descansar. Você parece exausta.
Isadora agradeceu, pendurou o avental e saiu.
O ar noturno estava mais frio do que de manhã. A rua de paralelepípedos brilhava sob a luz úmida dos postes, e o vilarejo parecia suspenso em um estado de calma. Mas, para Isadora, a calma era apenas a superfície. Sempre havia uma tensão invisível, como se alguém pudesse surgir a qualquer instante das sombras.
Puxou o casaco para se proteger do vento e seguiu pelo caminho estreito que levava ao chalé. Passou por casas de pedra, cujas janelas iluminadas mostravam famílias reunidas. Risadas, conversas, cheiros de jantares bem preparados escapavam para a rua.
Do lado de fora, ela era sempre a forasteira. A garota que trabalhava demais, falava pouco e nunca se abria. A estranha que parecia carregar um peso que ninguém ousava perguntar.
Cada passo em direção ao chalé aumentava a sensação de isolamento.
Ao chegar, acendeu a luz da sala. O ambiente pequeno a recebeu com seu silêncio habitual. Largou a bolsa na cadeira, tirou os sapatos e ficou alguns segundos parada, apenas ouvindo o próprio coração.
Foi até a cozinha, preparou um chá e se sentou diante do notebook. A tela refletia seu rosto cansado, os olhos fundos, a pele pálida. Abriu um documento com anotações de estudo, mas logo as palavras começaram a se desfazer diante dela, como sempre.
Piscar.
Piscar.
Piscar.
O cursor piscando parecia zombar.
Com um suspiro frustrado, fechou a tela e apoiou a cabeça nas mãos. O calor da caneca não bastava para aquecer as lembranças que se infiltravam sem permissão.
O fogo.
As câmeras.
O grito sufocado da mãe.
Isadora apertou os olhos com força, tentando empurrar para longe a memória. Mas quanto mais tentava, mais os flashes voltavam.
As paredes da sala pareciam encolher. O ar tornava-se pesado, difícil de respirar. Sua pele formigava, e o coração batia em disparada.
“Não agora... não agora...”
Levantou-se bruscamente, derrubando a caneca no chão. O líquido se espalhou em uma poça marrom, mas ela não se importou.
Correu até a janela, abriu-a e inspirou o ar frio da noite, tentando puxar para dentro dos pulmões algo que a mantivesse no presente.
Mas os olhos continuavam a ver o passado.
O fogo consumindo tudo. A mãe gritando. O estalo das vigas caindo. O cheiro de carne e madeira queimando.
— Para... — sussurrou, levando as mãos à cabeça. — Para... por favor...
A respiração ficou descompassada, transformando-se em soluços. O chão parecia girar, as pernas perderam a força, e ela caiu de joelhos diante da janela aberta.
O vento frio entrou, bagunçando os seus cabelos e trazendo lágrimas aos olhos.
Era sempre assim: as lembranças a perseguiam como caçadores, a derrubavam no momento em que ela mais tentava resistir.
Ficou ali por longos minutos, até que o corpo cedeu ao cansaço. Deitou-se no chão, com o rosto úmido e os olhos vermelhos, respirando fundo como quem acabara de escapar de um afogamento.
O corpo de Isadora cedeu ao cansaço.
Ali mesmo, no chão frio da sala, com o rosto úmido de lágrimas e os músculos tensos como cordas prestes a arrebentar, ela apagou. Não foi um sono reparador, mas um desmaio que a arrastou para a inconsciência, como se o corpo tivesse decretado trégua diante da batalha insuportável da mente.
Quando abriu os olhos, a luz do amanhecer já filtrava pelas frestas da cortina. A cabeça latejava, a boca estava seca, e uma dor incômoda percorria sua coluna pelo tempo que passara deitada em posição desconfortável. Demorou alguns segundos para entender onde estava. Por um instante, achou que ainda estivesse em meio ao pesadelo de chamas, mas o cheiro de madeira úmida e o silêncio pesado do chalé a devolveram à realidade.
Levantou-se devagar, apoiando-se na mesa. O estômago embrulhava, os joelhos tremiam.
Arrastou-se até o banheiro, girou a torneira e deixou a água correr, fria e cortante. Entrou no chuveiro vestida mesmo, sentindo o tecido do pijama grudar em sua pele, e fechou os olhos.
A água escorria pelo corpo, lavando o sal das lágrimas secas e o suor do pânico. Ela se agarrou ao azulejo, deixando que a pressão da queda d’água abafasse os pensamentos. Por alguns minutos, não existia passado, nem medo, nem lembrança. Só a água.
Quando finalmente saiu, enrolada em uma toalha fina, vestiu-se sem cuidado: calça jeans surrada, camiseta simples, casaco grosso. Prendeu o cabelo em um coque malfeito e, diante do espelho, m*l reconheceu o rosto que a encarava. Pálida, os olhos fundos, as olheiras arroxeadas. Uma mulher de vinte e um anos com o peso de cinquenta.
Suspirou fundo.
Mais um dia.
O caminho até o restaurante era curto, mas cada passo parecia um esforço descomunal. A vida em Winchcombe tinha um ritmo lento, provinciano. Casas de pedra com janelas floridas, ruas estreitas que pareciam saídas de cartões-postais, o cheiro constante de pão fresco vindo das padarias locais. À primeira vista, um lugar idílico. Mas, para Isadora, o vilarejo não passava de cenário. Um palco bonito demais para a tragédia silenciosa que carregava dentro.
Chegou ao restaurante no horário de sempre. A dona a cumprimentou com a habitual simpatia, entregou-lhe o avental e foi cuidar do balcão. Isadora ocupou-se das mesas, ajeitou cadeiras, conferiu talheres. Sua mente vagava, como se o corpo funcionasse em piloto automático.
Logo os primeiros clientes começaram a entrar: turistas animados, casais idosos, famílias com crianças ruidosas. O vai e vem de pedidos a mantinha ocupada, protegida do perigo dos próprios pensamentos.
Até que ele entrou.
O homem.
Não era como os clientes comuns do vilarejo. Havia nele algo que destoava, algo que não se encaixava naquele cenário de aconchego e rotina.
Alto. Ombros largos. O porte lembrava o de soldados ou atletas. O corte de cabelo, ligeiramente militar, reforçava essa impressão. A barba bem-feita delineava um rosto anguloso, marcado por uma beleza bruta, quase selvagem. Seus olhos — escuros, profundos — analisavam o ambiente com calma predatória, como se cada detalhe fosse registrado.
Ele não estava sozinho. Dois outros homens o acompanhavam. Menos imponentes, mas ainda assim com aquela postura de quem está sempre em alerta. Conversavam em tom baixo, ocasionalmente riam, mas havia uma rigidez em seus movimentos que não passava despercebida.
Isadora, ao se aproximar para anotar o pedido, sentiu o corpo reagir antes mesmo da mente processar. Um arrepio percorreu sua nuca, como se o instinto gritasse perigo.
— Bom dia. — disse ela, a voz firme, apesar do turbilhão interno.
O homem a fitou por um instante longo demais. O tipo de olhar que atravessa, que pesa, que parece buscar segredos enterrados. Só então respondeu:
— Café. Preto. Forte. — Sua voz era grave, arranhada, como o roçar de pedras.
Os outros dois pediram refeições rápidas.
Isadora anotou, assentiu e se afastou, mas a sensação de estar sendo observada permaneceu. De fato, quando lançou um olhar discreto por cima do ombro, encontrou novamente os olhos dele fixos nela. Não havia desejo evidente, nem simpatia. Havia algo mais inquietante: reconhecimento.
Eles permaneceram no restaurante por horas. Não eram turistas comuns; não comentaram sobre os pontos históricos, não tiraram fotos, não se maravilharam com nada. Apenas conversaram entre si, enquanto o homem grande ocasionalmente voltava a observá-la, sem disfarçar.
Isadora fingiu indiferença, mas por dentro o coração batia descompassado. Aquela presença era uma fissura na rotina que ela construíra com tanto esforço. Uma ameaça silenciosa.
Quando finalmente o trio deixou o local, ela respirou aliviada. Mas o alívio durou pouco.
Na volta para casa, teve a sensação nítida de estar sendo seguida. Passos atrás dela, o som discreto de pneus em paralelepípedos. A cada esquina, olhava para trás — nada. Mas o instinto não mentia.
Seu peito se apertava. Acelerou os passos até quase correr, o coração em disparada. Quando avistou o chalé, lançou-se para dentro, fechando a porta com violência e trancando todas as fechaduras. Encostou-se na madeira, respirando com dificuldade.
Passou a noite em claro. A cada ruído do vento, a cada estalo do madeirame, corria até a janela, espiando as sombras. Nada. E ainda assim, a certeza de que algo se movia lá fora.
Na manhã seguinte, com os olhos ardendo de cansaço, vestiu-se e voltou ao trabalho.
E ele estava lá.
Dessa vez, sozinho. Sentado em uma mesa próxima à janela, um livro aberto diante dele. A barba castanha bem aparada, o casaco escuro de tecido pesado, o corpo relaxado mas com uma energia latente, como se estivesse sempre pronto para a ação. Isadora aproximou-se com a prancheta nas mãos.
— O de sempre? — perguntou, tentando soar casual.
Ele ergueu os olhos do livro. O olhar fixou-se nela com intensidade desconfortável.
— Você lembra. — disse, sem sorrir.
— É meu trabalho lembrar dos pedidos.
— Não. — ele inclinou-se levemente para a frente. — Você lembra de mim.
A frase ficou suspensa no ar, carregada de duplo sentido. Isadora engoliu em seco, desviou o olhar e anotou.
— Café preto.
— E algo para acompanhar. — Ele fechou o livro. — Surpreenda-me.
Ela levou o pedido à cozinha, mas suas mãos tremiam. Cada palavra trocada parecia uma peça em um jogo que ela não conhecia as regras.
Durante horas, ele permaneceu ali. Bebeu o café, comeu devagar, e então voltou ao livro. Não parecia apressado. Não parecia ter outro lugar para estar. E sempre que Isadora passava perto, sentia o olhar dele acompanhando.
Quando o turno terminou, ela se despediu da dona, vestiu o casaco e saiu.
E encontrou o mundo desmoronado.
O chalé estava revirado. Portas abertas, gavetas no chão, roupas espalhadas. Objetos quebrados, como se mãos pesadas tivessem vasculhado cada canto em busca de algo. O coração de Isadora disparou.
Ela correu até a janela. Do lado de fora, estacionado a poucos metros, estava o carro preto.
O carro.
O mesmo que a perseguia nos pesadelos. O mesmo que rondara a delegacia anos atrás. O mesmo que representava tudo o que ela tentava esquecer.
O pânico a dominou. Sem pensar, correu pelos fundos do chalé, subindo a colina íngreme que ficava atrás da casa. O vento gelado cortava o rosto, mas ela não parou. Seus pulmões queimavam, suas pernas ameaçavam ceder, mas o medo era combustível.
No topo, erguiam-se as ruínas de uma antiga torre de pedra, esqueleto de um tempo esquecido. Ali, entre paredes quebradas e pedras cobertas de musgo, Isadora se apoiou, tentando recuperar o fôlego.
Olhou para baixo. O chalé, a rua, o carro preto. E, ao longe, vultos escuros subindo a colina.
Eles vinham.
Isadora sentiu o corpo estremecer. As mãos tremeram, os olhos ardiam. O peso dos anos, da fuga, da solidão, das memórias — tudo a empurrava para a beira.
Talvez fosse a hora de parar de correr.
Talvez fosse a hora de deixar que tudo acabasse.
Deu alguns passos em direção ao parapeito destruído da torre. O vento bagunçava seus cabelos, a altura fazia o estômago se contrair.
As vozes se aproximavam. Os vultos cresciam.
O carro continuava estacionado como um animal à espreita.
Isadora fechou os olhos. Respirou fundo.
E, quando se preparava para o salto, ouviu um som diferente.
Passos mais pesados. Mais firmes, distintos dos outros.
Abriu os olhos, e lá estava ele.
O homem do restaurante.
O olhar fixo nela, como se tivesse finalmente encontrado o que buscava.