A primeira coisa que Isadora sentiu foi a boca seca, amarga, como se tivesse engolido areia. Depois, a dor: um latejar forte nos pulsos e tornozelos, os músculos rígidos, cada parte do corpo lembrando que tinha sido arrastada, amarrada, forçada ao silêncio.
Ela tentou abrir os olhos, mas não havia nada além de escuridão. A venda apertada contra o rosto a cegava, tornando o ar sufocante. Moveu-se só um pouco e percebeu a corda queimando sua pele, cortando o movimento.
Um arrepio subiu pela espinha. Não sabia quanto tempo estava ali, nem onde. Só o silêncio preenchia o espaço, pesado, úmido. O coração acelerou.
Então, um som.
Passos. Lentos, firmes, como se não tivessem pressa nenhuma. O som se aproximava, cada estalo ecoando no chão duro. Isadora prendeu a respiração, sentindo o pânico crescer.
A porta rangeu. O ar mudou.
Alguém entrou.
O colchão embaixo dela afundou de leve quando o peso do homem se aproximou. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, sentiu o toque frio de metal batendo contra os lábios. Depois, a água sendo despejada, entrando pela boca à força. Ela engasgou, tossiu, tentou virar o rosto.
— Engole. — A voz dele era baixa, seca, sem emoção.
Sem opção, deixou o líquido descer queimando a garganta ressecada. A água escorreu pelo queixo até molhar o pescoço. Um silêncio. Depois, a venda foi arrancada com um puxão brusco.
A claridade fraca da lâmpada acima a cegou por segundos. Piscou várias vezes até conseguir focar. E quando conseguiu, seu corpo inteiro gelou.
Ele.
O cliente do café da vila. O homem que havia passado despercebido, que parecia comum, apenas um rosto entre tantos. Agora, ali, sem disfarces, sem a máscara banal de freguês, sua presença era sufocante. O casaco escuro, os ombros largos, o olhar de predador que a estudava em silêncio.
Isadora sentiu as entranhas revirarem. O sangue fugiu do rosto. Aquela postura, aquele silêncio carregado… era o mesmo molde dos homens que, anos atrás, destruíram sua vida. Os mesmos que arrancaram sua mãe dela.
Ela engoliu em seco, o peito arfando.
Ele puxou uma cadeira de ferro, arrastando-a pelo chão com um som agudo que fez os pelos dela arrepiarem. Sentou-se diante dela, apoiando os cotovelos nos joelhos, inclinando-se levemente. Por um momento, só a observou. O olhar dele não desviava, examinava cada detalhe do rosto dela, como quem procura respostas antes mesmo de perguntar.
— Finalmente. — disse, como se tivesse esperado por esse momento durante anos.
Isadora ficou imóvel, o corpo em alerta.
Ele não parecia ter pressa. Passaram-se segundos intermináveis até que a primeira pergunta veio, simples, direta.
— De onde você é?
Ela piscou, confusa. A pergunta era quase comum demais diante do peso daquele silêncio.
— Eu… não entendi. — sussurrou, a voz rouca.
— Cidade. País. Família. — Ele falou devagar, sem elevar o tom. — Vamos começar pelo básico.
Ela apertou os lábios. Não diria nada.
O silêncio se prolongou. O olhar dele não vacilava.
— Vai dificultar? — perguntou, mas não soava irritado. Era quase um aviso.
Isadora respirou fundo. — Não sei do que está falando.
Um sorriso de canto surgiu nos lábios dele, mas não havia humor algum. Apenas desprezo.
— Sempre tentam esse jogo. — disse, encostando-se no encosto da cadeira. — Acha que é a primeira que amarram nessa cama?
O estômago de Isadora se revirou. Não respondeu.
Ele inclinou-se novamente, aproximando o rosto. — Nome.
Ela fechou os olhos, tentando se desligar.
— Nome. — repetiu, mais baixo, mais firme.
— Isadora. — escapou, antes que conseguisse conter.
Ele fez uma pausa, como se gravasse cada sílaba. — Sobrenome.
— Não interessa. — respondeu rápido, mas a voz tremeu.
Ele ergueu uma sobrancelha. — Ah, interessa. Tudo em você interessa.
O silêncio voltou, pesado. O coração dela batia forte demais, como se fosse rasgar o peito.
— Tem família? — ele perguntou, com a calma de quem tem todo o tempo do mundo.
Ela manteve o silêncio.
Ele não se moveu, não insistiu. Apenas deixou a pergunta pairar no ar. A falta de resposta já era uma resposta.
Isadora respirava rápido, tentando não desmoronar. Cada pergunta dele parecia uma faca apontada, cutucando feridas que ela mantinha enterradas.
— Pais? — repetiu a pergunta — Onde estão?
A respiração dela falhou por um segundo. — Mortos.
— Como?
Ela fechou os olhos, tentando se controlar. — Acidente.
Ele soltou uma risada seca, curta, sem humor. — Acidente.
— Foi isso que aconteceu. — insistiu, a voz embargada.
— Quem sobrou? — ele pressionou. — Irmãos? Alguém que sabe onde você está?
Ela balançou a cabeça, trêmula. — Ninguém.
— Ótimo. — Ele se recostou outra vez, como se tivesse recebido a informação que queria.
As lágrimas ardiam nos olhos dela, mas ela piscava forte, recusando-se a deixá-las cair.
— Você não faz ideia de quem eu sou, não é? — perguntou ele, de repente.
Isadora manteve o silêncio, mas sua respiração denunciava o pânico.
Ele inclinou a cabeça, como se estivesse se divertindo com a resistência dela. — Já me viu antes.
Ela engoliu seco. A lembrança do café a atravessou como um raio. O jeito que ele a olhou naquele dia. Não foi acaso.
— No café… — sussurrou.
— Exato. — Ele confirmou com um leve aceno. — Você me serviu como se eu fosse qualquer um. Gostei disso. Gostei de ver como você não tinha ideia.
Isadora sentiu a náusea subir.
Ele então cruzou os braços, os olhos fixos nela. — Agora me diga, por que correu daquela torre?
Ela hesitou. — Eu… não queria mais viver.
— Não queria viver? — Ele riu baixo, sem humor. — Engraçado. Pessoas que realmente querem morrer não correm quando alguém às segura.
Isadora virou o rosto, as lágrimas finalmente caindo.
— Você não entende. — murmurou.
— Entendo mais do que imagina. — disse, seco.
O silêncio se alongou outra vez. O som distante de um cano pingando no canto da sala preenchia o ar.
— Vou ser direto. — ele retomou, a voz cortando como lâmina. — Quem é você, Isadora?
Ela fechou os olhos com força. — Só uma garota qualquer.
Ele se inclinou de novo, apoiando as mãos no colchão dos lados dela, tão próximo que o hálito quente roçou sua pele.
— Errado. — sussurrou. — Garotas quaisquer não caem nas minhas mãos.
O corpo dela estremeceu.
Ele então se afastou, devagar, voltando para a cadeira. Abriu o bolso interno do casaco e puxou um envelope plastificado. Colocou sobre o peito dela.
Isadora arregalou os olhos.
Era a fotografia da mãe.
O rosto vivo, sorridente, como ela lembrava antes da tragédia.
Um soluço preso rasgou sua garganta. Ela virou o rosto, tentando evitar o olhar.
— Reconhece? — a voz dele cortou o ar.
Ela engoliu seco, lágrimas escorrendo. — Não sei quem é.
Ele a observava em silêncio, sem pressa. Como se cada negação fosse uma confirmação.
E então, devagar, retirou um tablet pequeno, envolto em couro escuro. Ligou-o. A tela brilhou. Um vídeo começou a rodar.
Chamas. Papéis em fogo. A casa tomada pelas labaredas. Uma garota em pé, mãos trêmulas, atirando mais papéis para o fogo se espalhar. Isadora sentiu o peito congelar.
— Não… — murmurou, quase sem voz.
Ele não dizia nada.
— Não sou eu! — ela gritou, tentando puxar as cordas, o corpo inteiro se debatendo. — NÃO SOU EU!
Mas a imagem não sumia. O fogo continuava queimando na tela, como se queimasse dentro dela.
Ele desligou o vídeo. Silêncio absoluto.
— Interessante. — disse, por fim. — Todas as outras… imploraram para serem reconhecidas. Gritaram que eram a garota do vídeo. Jogaram-se nos meus pés, cegas pela ilusão de estar diante de mim.
O olhar dele se fixou no dela, implacável.
— Mas você… você negou. E negou com medo.
O coração de Isadora quase parou.
— Só quem sabe exatamente do que se trata teria essa reação.
Ela soluçava, sem conseguir dizer mais nada.
Ele recostou-se na cadeira, satisfeito. Como se tivesse fechado um quebra-cabeça antigo.
— Achei você. — disse, quase num sussurro. — Garota das cinzas.