Capítulo IV

1358 Words
A primeira coisa que Isadora sentiu foi a boca seca, amarga, como se tivesse engolido areia. Depois, a dor: um latejar forte nos pulsos e tornozelos, os músculos rígidos, cada parte do corpo lembrando que tinha sido arrastada, amarrada, forçada ao silêncio. Ela tentou abrir os olhos, mas não havia nada além de escuridão. A venda apertada contra o rosto a cegava, tornando o ar sufocante. Moveu-se só um pouco e percebeu a corda queimando sua pele, cortando o movimento. Um arrepio subiu pela espinha. Não sabia quanto tempo estava ali, nem onde. Só o silêncio preenchia o espaço, pesado, úmido. O coração acelerou. Então, um som. Passos. Lentos, firmes, como se não tivessem pressa nenhuma. O som se aproximava, cada estalo ecoando no chão duro. Isadora prendeu a respiração, sentindo o pânico crescer. A porta rangeu. O ar mudou. Alguém entrou. O colchão embaixo dela afundou de leve quando o peso do homem se aproximou. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, sentiu o toque frio de metal batendo contra os lábios. Depois, a água sendo despejada, entrando pela boca à força. Ela engasgou, tossiu, tentou virar o rosto. — Engole. — A voz dele era baixa, seca, sem emoção. Sem opção, deixou o líquido descer queimando a garganta ressecada. A água escorreu pelo queixo até molhar o pescoço. Um silêncio. Depois, a venda foi arrancada com um puxão brusco. A claridade fraca da lâmpada acima a cegou por segundos. Piscou várias vezes até conseguir focar. E quando conseguiu, seu corpo inteiro gelou. Ele. O cliente do café da vila. O homem que havia passado despercebido, que parecia comum, apenas um rosto entre tantos. Agora, ali, sem disfarces, sem a máscara banal de freguês, sua presença era sufocante. O casaco escuro, os ombros largos, o olhar de predador que a estudava em silêncio. Isadora sentiu as entranhas revirarem. O sangue fugiu do rosto. Aquela postura, aquele silêncio carregado… era o mesmo molde dos homens que, anos atrás, destruíram sua vida. Os mesmos que arrancaram sua mãe dela. Ela engoliu em seco, o peito arfando. Ele puxou uma cadeira de ferro, arrastando-a pelo chão com um som agudo que fez os pelos dela arrepiarem. Sentou-se diante dela, apoiando os cotovelos nos joelhos, inclinando-se levemente. Por um momento, só a observou. O olhar dele não desviava, examinava cada detalhe do rosto dela, como quem procura respostas antes mesmo de perguntar. — Finalmente. — disse, como se tivesse esperado por esse momento durante anos. Isadora ficou imóvel, o corpo em alerta. Ele não parecia ter pressa. Passaram-se segundos intermináveis até que a primeira pergunta veio, simples, direta. — De onde você é? Ela piscou, confusa. A pergunta era quase comum demais diante do peso daquele silêncio. — Eu… não entendi. — sussurrou, a voz rouca. — Cidade. País. Família. — Ele falou devagar, sem elevar o tom. — Vamos começar pelo básico. Ela apertou os lábios. Não diria nada. O silêncio se prolongou. O olhar dele não vacilava. — Vai dificultar? — perguntou, mas não soava irritado. Era quase um aviso. Isadora respirou fundo. — Não sei do que está falando. Um sorriso de canto surgiu nos lábios dele, mas não havia humor algum. Apenas desprezo. — Sempre tentam esse jogo. — disse, encostando-se no encosto da cadeira. — Acha que é a primeira que amarram nessa cama? O estômago de Isadora se revirou. Não respondeu. Ele inclinou-se novamente, aproximando o rosto. — Nome. Ela fechou os olhos, tentando se desligar. — Nome. — repetiu, mais baixo, mais firme. — Isadora. — escapou, antes que conseguisse conter. Ele fez uma pausa, como se gravasse cada sílaba. — Sobrenome. — Não interessa. — respondeu rápido, mas a voz tremeu. Ele ergueu uma sobrancelha. — Ah, interessa. Tudo em você interessa. O silêncio voltou, pesado. O coração dela batia forte demais, como se fosse rasgar o peito. — Tem família? — ele perguntou, com a calma de quem tem todo o tempo do mundo. Ela manteve o silêncio. Ele não se moveu, não insistiu. Apenas deixou a pergunta pairar no ar. A falta de resposta já era uma resposta. Isadora respirava rápido, tentando não desmoronar. Cada pergunta dele parecia uma faca apontada, cutucando feridas que ela mantinha enterradas. — Pais? — repetiu a pergunta — Onde estão? A respiração dela falhou por um segundo. — Mortos. — Como? Ela fechou os olhos, tentando se controlar. — Acidente. Ele soltou uma risada seca, curta, sem humor. — Acidente. — Foi isso que aconteceu. — insistiu, a voz embargada. — Quem sobrou? — ele pressionou. — Irmãos? Alguém que sabe onde você está? Ela balançou a cabeça, trêmula. — Ninguém. — Ótimo. — Ele se recostou outra vez, como se tivesse recebido a informação que queria. As lágrimas ardiam nos olhos dela, mas ela piscava forte, recusando-se a deixá-las cair. — Você não faz ideia de quem eu sou, não é? — perguntou ele, de repente. Isadora manteve o silêncio, mas sua respiração denunciava o pânico. Ele inclinou a cabeça, como se estivesse se divertindo com a resistência dela. — Já me viu antes. Ela engoliu seco. A lembrança do café a atravessou como um raio. O jeito que ele a olhou naquele dia. Não foi acaso. — No café… — sussurrou. — Exato. — Ele confirmou com um leve aceno. — Você me serviu como se eu fosse qualquer um. Gostei disso. Gostei de ver como você não tinha ideia. Isadora sentiu a náusea subir. Ele então cruzou os braços, os olhos fixos nela. — Agora me diga, por que correu daquela torre? Ela hesitou. — Eu… não queria mais viver. — Não queria viver? — Ele riu baixo, sem humor. — Engraçado. Pessoas que realmente querem morrer não correm quando alguém às segura. Isadora virou o rosto, as lágrimas finalmente caindo. — Você não entende. — murmurou. — Entendo mais do que imagina. — disse, seco. O silêncio se alongou outra vez. O som distante de um cano pingando no canto da sala preenchia o ar. — Vou ser direto. — ele retomou, a voz cortando como lâmina. — Quem é você, Isadora? Ela fechou os olhos com força. — Só uma garota qualquer. Ele se inclinou de novo, apoiando as mãos no colchão dos lados dela, tão próximo que o hálito quente roçou sua pele. — Errado. — sussurrou. — Garotas quaisquer não caem nas minhas mãos. O corpo dela estremeceu. Ele então se afastou, devagar, voltando para a cadeira. Abriu o bolso interno do casaco e puxou um envelope plastificado. Colocou sobre o peito dela. Isadora arregalou os olhos. Era a fotografia da mãe. O rosto vivo, sorridente, como ela lembrava antes da tragédia. Um soluço preso rasgou sua garganta. Ela virou o rosto, tentando evitar o olhar. — Reconhece? — a voz dele cortou o ar. Ela engoliu seco, lágrimas escorrendo. — Não sei quem é. Ele a observava em silêncio, sem pressa. Como se cada negação fosse uma confirmação. E então, devagar, retirou um tablet pequeno, envolto em couro escuro. Ligou-o. A tela brilhou. Um vídeo começou a rodar. Chamas. Papéis em fogo. A casa tomada pelas labaredas. Uma garota em pé, mãos trêmulas, atirando mais papéis para o fogo se espalhar. Isadora sentiu o peito congelar. — Não… — murmurou, quase sem voz. Ele não dizia nada. — Não sou eu! — ela gritou, tentando puxar as cordas, o corpo inteiro se debatendo. — NÃO SOU EU! Mas a imagem não sumia. O fogo continuava queimando na tela, como se queimasse dentro dela. Ele desligou o vídeo. Silêncio absoluto. — Interessante. — disse, por fim. — Todas as outras… imploraram para serem reconhecidas. Gritaram que eram a garota do vídeo. Jogaram-se nos meus pés, cegas pela ilusão de estar diante de mim. O olhar dele se fixou no dela, implacável. — Mas você… você negou. E negou com medo. O coração de Isadora quase parou. — Só quem sabe exatamente do que se trata teria essa reação. Ela soluçava, sem conseguir dizer mais nada. Ele recostou-se na cadeira, satisfeito. Como se tivesse fechado um quebra-cabeça antigo. — Achei você. — disse, quase num sussurro. — Garota das cinzas.
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