Capítulo X

2170 Words
Ele inclinou levemente a cabeça, avaliando, e não disse nada. Apenas esperou, como se cada segundo de silêncio fosse um convite para que ela começasse. — Eu fui para aquela casa pela primeira vez… — começou ela, a voz baixa, quase um fio. — Me mandaram esperar em um quarto e trancaram a porta. Eu encontrei… uma ficha naquela sala. Uma garota. Provavelmente asiática. Marcada como… eliminada. Eu fiquei com medo, medo pela minha mãe. — Sua mãe? — Ele interrompeu, a pergunta curta, mas firme. — Sim. — respondeu ela, a garganta seca. — Eu sabia que algo estava errado. Se aquelas pessoas eliminavam pessoas, matavam pessoas igual deu a entender na ficha, então elas eram perigosas. Eu consegui despistar os carcereiros quando abriram a porta. Tentaram me prender, me controlar. Mas eu consegui me livrar. — Um soluço passou despercebido. — Eu me escondi numa sala. Por acaso, era a sala das câmeras. Ela respirou fundo, engolindo a pontada de terror que parecia atravessar o peito. — Eu vi minha mãe… morta. — A voz dela falhou, mas continuou firme. — E… além de morta… coisas indescritíveis estavam acontecendo com ela. Eu… eu não consigo falar tudo. Mas foi… h******l. Ele permaneceu calmo, imóvel. O silêncio dele era mais opressor do que qualquer grito ou ameaça. Ela sentiu que cada palavra era registrada, analisada, cada hesitação avaliada. — Eu vi uma oportunidade. — continuou, a voz tremendo levemente. — Alguns fios elétricos. Um incêndio. Eu… eu não hesitei. Precisava destruir aquilo, precisava acabar com aquele lugar e com aquelas pessoas que levaram a minha mãe, mesmo que eu morresse junto. Eu não pensei, eu só fiz... Quando me dei conta já estava grande demais... O estômago se revolveu. A memória do fogo queimava na mente dela, misturando dor e terror, adrenalina e desespero. — Eu não sei como sobrevivi, mas saí da mansão. Voltei para casa e tentei chamar a polícia, dizer que mataram a minha mãe e eu presenciei as... cenas... De qualquer maneira, quando me chamaram para depor eu vi o carro preto que estava na mansão e entendi que eles e a polícia eram todos a mesma coisa... Ninguém me ajudaria... E ai eu pensei que poderiam facilmente me achar na casa, pois tinham o endereço da minha mãe, mas provavelmente estavam tentando fazer algo mais silencioso me levando até a delegacia. Ela respirou fundo e continuou a olhar para as mãos. — Depois… eu fui morar com minha madrinha. Até que ela também morreu. — O corpo dela estremeceu, mas não havia lágrimas. Apenas o vazio que parecia engolir cada traço de emoção. Ele se aproximou da mesa lateral, os dedos tocando a borda da bandeja, mas não a pegou. O olhar dele parecia medir não apenas a verdade das palavras, mas o peso delas. — Entendi. — Ele falou finalmente, a voz baixa, quase um sussurro. — É a primeira vez que alguém me conta tudo… sem tentar manipular, sem mentir. Isadora desviou os olhos, tentando decifrar o que aquilo significava. Medo, raiva, algo como… atenção? Ela não sabia. Tudo o que sabia era que havia colocado a história completa à mercê de alguém que poderia destruí-la, e agora esperava para ver qual seria a reação. — Eu… não sei o que você vai fazer comigo. — murmurou, a voz falhando. — Mas essa é a verdade daquele dia. Ele não respondeu imediatamente. Apenas a observou. Cada músculo imóvel, cada gesto contido. Um instante pequeno, mas que parecia durar anos. — Agora sei tudo. — disse finalmente. — Mas saiba: o que você fez não é algo que se esquece. — Ele se afastou, recolhendo a bandeja, os olhos ainda fixos nela. — Amanhã, decidirei se a sua verdade muda alguma coisa. O quarto ficou em silêncio novamente. O cheiro da comida ainda pairava, mas parecia quase um insulto diante do peso do que ela havia revelado. Isadora caiu de lado na cama, imóvel, os músculos cansados demais para qualquer reação física. Pela primeira vez, havia contado tudo, sem reservas, sem omissões. E, estranhamente, apesar do medo do que poderia vir, havia um alívio silencioso. Ela havia finalmente falado. Do outro lado da porta, ele permaneceu parado por alguns segundos. Um instante pequeno, mas suficiente para que ele percebesse que a versão que tinha da história poderia não ser completa, que talvez a verdade sobre a família, sobre os acontecimentos, fosse mais complexa e sombria do que ele imaginava. E que, talvez, agora, precisasse lidar com ela de uma forma diferente. Não com violência aberta, não com crueldade pura, mas com atenção calculada, com o cuidado frio de quem percebe que cada peça do quebra-cabeça pode mudar tudo. O corredor estava silencioso, exceto pelo som sutil dos passos de Dante ecoando no piso de madeira. Ele caminhava devagar, sem pressa, mas cada passo parecia marcado por um peso invisível, como se carregasse todas as peças quebradas de um quebra-cabeça que se recusava a se encaixar. A porta do quarto de Isadora ainda pairava em sua mente, cada palavra que ela pronunciou repetindo-se, martelando em sua consciência. Ele parou próximo à janela do corredor, apoiando a testa na vidraça fria. Lá fora, a noite envolvia a cidade com um manto n***o, e o vento arrastava folhas secas pelo chão, criando sombras que se moviam com uma lentidão quase grotesca. Ele fechou os olhos e respirou fundo, tentando ordenar os pensamentos que giravam tão rapidamente quanto os ventos lá fora. “Ela contou tudo…” murmurou para si mesmo, a voz baixa, quase engolida pelo silêncio. “E eu… não sei se acredito completamente. Mas também… e se for verdade?” A raiva ainda estava lá, intensa, fervente, uma chama que queimava dentro dele cada vez que lembrava de quem matou seu pai. Mas algo havia mudado. Algo que Isadora disse, algo que ele não conseguia ignorar. A história dela era brutal, crua, real. E, de alguma forma, a ficha começou a cair: talvez a vida fosse mais complexa do que ele imaginava, que a verdade dele — aquela que cresceu carregando como se fosse a única — podia ser apenas uma versão mutilada. Ele pegou o telefone, a mão firme apesar do tumulto interno. Discou o número com precisão mecânica. Na outra linha, uma voz firme respondeu quase que imediatamente. — Katsu. — Katsu… é hora de avançar mais fundo. — Dante falou, cada palavra carregada de determinação. — Sobre meu pai. Quero tudo. Contatos antigos, registros, qualquer coisa que possa ter passado despercebido. Não importa o quão obscuro ou enterrado esteja. Do outro lado, a voz de Katsu foi calma, controlada, como sempre: — Entendido. Você quer que eu comece pela Ásia, ou devo focar em registros domésticos primeiro? — Ambos. — Dante respirou fundo, apertando o telefone com força. — Quero que cada pedra seja virada. Cada pessoa que ele conheceu, cada transação, cada sombra que possa ter passado despercebida. — Pausa. — E Katsu… não me engane. Se houver algo que eu não saiba sobre ele… quero saber. — Você quer que eu entre em contato com os antigos aliados e inimigos dele? — Katsu perguntou, a curiosidade quase invisível na voz. — Sim. Todos. — Dante recostou-se na parede, cruzando os braços. — Não há limites. Descubra qualquer conexão que ele possa ter tido com a família, com empresas, com… qualquer coisa que possa ter envolvido aquela rede. — Ele fechou os olhos por um instante. — Eu preciso entender o que realmente aconteceu. Katsu respirou fundo, e a linha ficou em silêncio por um momento antes que ele respondesse. — Está bem. Mas cuidado, Dante. O que você está buscando pode não ser apenas registros antigos. Pode abrir portas que você nunca imaginou. — Eu sei. — A voz dele foi firme, cortante. — E estou pronto para isso. Ele desligou e deixou o telefone no bolso, o corpo ainda tenso, mas os olhos fixos na escuridão lá fora. A raiva por seu pai morto queimava como uma ferida aberta, mas agora havia algo mais. Um fio de dúvida que se infiltrava, sutil e persistente. Talvez a história que ele conhecia, a narrativa que moldou sua vingança, não fosse completa. — Talvez… — murmurou para si mesmo, a voz tão baixa que quase desapareceu — haja mais do que apenas ódio. Talvez haja algo que eu não sei. Ele caminhou pelo corredor até a cozinha, pegando uma garrafa de água. Sentou-se na borda da bancada, os olhos no vidro escuro da janela. A imagem de Isadora surgia em sua mente, tão calma, tão vazia, e ainda assim carregada de uma verdade que não podia ser ignorada. Cada palavra que ela falou, cada detalhe do incêndio, cada lembrança da mãe, penetrava mais fundo do que ele queria admitir. — E se ela estiver certa? — Dante murmurou, bebendo água. — E se tudo isso… for só uma parte do que realmente aconteceu? Ele fechou os olhos, lembrando-se do rosto dela, das mãos pequenas, trêmulas, segurando a própria força para falar. Ela não sabia quem ele era. Nem ele sabia se confiaria nela. Mas havia algo naquela entrega, naquela verdade exposta, que mexeu com algo dentro dele. Não compaixão, não empatia. Mas atenção. Interesse. O telefone tocou novamente. Era Katsu. — Já comecei. — disse o amigo. — Contatei alguns ex-agentes e antigos informantes do seu pai. Eles estão checando registros bancários, viagens, qualquer coisa que possa ter sido omitida. Alguns arquivos que não estavam disponíveis publicamente. — Bom. — Dante inclinou a cabeça, os olhos fixos no vazio. — Quero que descubra também sobre qualquer possível ligação com redes internacionais… Você sabe, aquela coisa que sempre tivemos suspeita. — Ele respirou fundo. — Se houver algo que envolva a família ou negócios que não chegaram até mim, preciso saber. — Entendido. — Katsu respondeu. — Mas não será rápido. Algumas portas foram fechadas há décadas. Nem todos estão vivos ou querem falar. — Eu sei disso. — A voz de Dante estava calma, mas havia um frio que podia gelar quem o escutasse. — Mas descubra. Por mim, e… por tudo que ainda não sei. Ele desligou novamente, deixando a linha cair em silêncio. E, sozinho, percebeu que o vazio no peito não era apenas raiva. Havia dúvida, curiosidade, e algo que ele não conseguia nomear — talvez medo do que descobriria. Mas, no fim, era apenas combustível para continuar. Dante levantou-se, caminhando de volta para a sala de estar, onde o relógio marcava a madrugada avançada. Cada movimento era calculado, preciso, mas a mente dele estava longe daquelas paredes. Estava na Ásia, nos arquivos, nos contatos antigos, na busca incansável por uma verdade que talvez pudesse mudar tudo. — Katsu vai encontrar algo. — murmurou, quase para si mesmo. — Tem que encontrar. Ele sentou-se no sofá, os dedos entrelaçados, olhando para as próprias mãos. Pela primeira vez em muito tempo, sentiu a necessidade de pensar antes de agir. Isadora havia revelado mais do que apenas seu trauma; havia plantado dúvidas que Dante não podia simplesmente ignorar. — Talvez a raiva não seja suficiente. Talvez não seja apenas sobre vingança. Talvez seja sobre… entender. O silêncio tomou conta da sala, pesado, denso, quase sufocante. Dante não era homem de dúvida, não era homem de hesitação. Mas naquele instante, cada palavra de Isadora reverberava dentro dele, questionando tudo o que ele pensava conhecer. Ele se levantou, caminhando até a janela, e olhou para a cidade novamente. A noite estava escura, mas as luzes distantes pareciam piscar como se soubessem de segredos que ele ainda não podia alcançar. — Ela disse a verdade. — murmurou, a voz baixa, firme. — Ou pelo menos parte dela. E se essa parte mudar tudo? O frio na espinha não era do vento lá fora. Era da percepção de que o jogo que ele acreditava dominar agora tinha peças que ele não conhecia. E cada peça poderia ser decisiva. Ele se sentou de volta, cruzando os braços, e fechou os olhos. — Amanhã… vou voltar. — disse para si mesmo. — Mas de uma maneira diferente. Não por crueldade, não por medo. Mas porque preciso ver, preciso medir… preciso entender se há algo além do que eu conhecia. O telefone tocou novamente, desta vez com uma mensagem de Katsu. Ele pegou, os olhos passando rapidamente pelo texto: contatos antigos estavam começando a responder, arquivos esquecidos estavam sendo liberados, pistas que poderiam ligar acontecimentos antigos a pessoas que Dante acreditava conhecer. — Bom… — murmurou, guardando o aparelho. — Vamos ver o que Katsu descobre. E então… talvez eu finalmente compreenda o que aconteceu com meu pai. Um silêncio profundo tomou conta do apartamento. O relógio marcava o início da madrugada. Lá fora, a cidade dormia, mas dentro dele, a mente de Dante trabalhava incessantemente, vasculhando memórias, suspeitas, verdades e mentiras. Cada detalhe do relato de Isadora pesava mais do que qualquer evidência física. E ele sabia, com certeza fria, que nada mais seria como antes.
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