Engoli em seco e senti meu estômago revirar. Era tão engraçado que por tanto tempo eu tenha esperado por isso, e no momento eu estava com tanto medo. Talvez o fato de haver uma pequena multidão ao meu redor ajudasse um pouco com a insegurança.
Desde sempre eu vinha contando nos dedos os anos que eu teria que suportar até terminar a escola e ir para a faculdade. E finalmente a hora tinha chegado. O meu futuro estava escrito na carta em minhas mãos, que eu ainda não tinha tido coragem de abrir.
Eu sempre tinha me sentido tão estranha e fora de órbita nessa cidade. Sempre me senti deslocada no espaço, como se eu nunca tivesse feito parte disso. E sempre tive a certeza de que quando eu saísse daqui, eu iria me encontrar, ou encontrar o que quer que fosse que eu estivesse procurando.
Minha mão tremia tanto que nem consegui abrir o envelope direito. Todos ao meu redor estavam cheios de expectativas. Meus pais, meus irmãos e minhas amigas. Não podia decepcioná-los e, principalmente, não podia decepcionar a mim mesma.
Tirei a carta do envelope. É agora ou nunca, pensei. Meu sonho estava nesse papelzinho. Ou melhor, mais do que um sonho: uma necessidade. Eu tinha que ter conseguido.
Sem mais demora, abri a carta e meus olhos correram para o lugar onde estava escrito a única coisa que me importava. Meu sangue gelou.
Fiquei paralisada ao ver a resposta.
- Ai meu Deus! – alguém falou, mas não soube quem era – O que foi? Mostra logo!
Não mexi nenhum músculo, apenas continuei parada, com os olhos arregalados sobre a carta.
Eu consegui. Foi o que eu pensei antes de alguém, provavelmente a Débora, arrancar a carta da minha mão e lê por si mesma.
- Ah!!! – ela deu um berro de alegria e jogou os braços ao redor do meu pescoço – Você conseguiu! Você passou!
E de repente todos estavam gritando e me abraçando também. Os sorrisos felizes e orgulhosos no rosto dos meus pais e dos meus irmãos não tinham preço.
- Vamos para a faculdade juntas! – Bruna gritaram e abraçou a mim e a Débora – Eu não acredito!
- Nós temos que comemorar – minha irmã disse – Mãe, deveríamos fazer um jantar especial hoje.
- Com certeza – mamãe disse – Estou indo ao mercado agora mesmo.
- Eu quero ir também – meu irmãozinho mais novo grudou nas pernas dela.
- Tudo bem, garotinho. Mas nada de ficar pedindo tudo.
Depois que eles saíram, subi com as meninas até o meu quarto.
- Eu nem acredito! – eu disse, me jogando na cama junto com as garotas. A respiração ofegante – Parece surreal, nem acredito que finalmente está acontecendo.
- Você conseguiu o que queria – Bruna disse – Finalmente vai sair desse buraco.
- Shhhhhhh! – eu a repreendi – Não fala alto, meu pai pode ouvir. Você sabe que eu não falo disso perto dele e da mamãe. Eles não iam gostar nada se soubessem que eu quero é ir embora.
- Amorzinho, eles não podem te culpar – Débora disse – Até eu odeio isso aqui, é o fim do mundo.
- Não acho tão r**m assim – Bruna disse.
- Deve ser porque você tem dinheiro – Débora disse.
- Você não fica muito para trás, não é, Débora?! – Bruna retrucou - Sua mãe é podre de rica.
- Não vamos falar sobre isso – Débora falou.
- Ela é sua mãe, Débora.
- Não, não é. Eu não tenho mãe – Débora disse com amargura – Nem a que me largou na rua, e nem ela que me escondeu isso por 15 anos.
- Uma hora você vai ter que perdoá-la – eu disse – Você não está sendo justa.
- Ah não, não comecem com isso, por favor – ela fez uma careta – Vamos mudar de assunto? Acabamos de ser aceitas na faculdade dos nossos sonhos, bem longe desse buraco n***o, e ainda vamos ficar juntas. Não dá para estragar esse momento falando de problemas.
Eu sorri.
- Você tem razão – disse.
- E vamos combinar, né, meu amor?! – Bruna levantou da cama – Um jantar com seu prato preferido está longe de qualquer comemoração de verdade.
- Sabe que ela tem razão... – Débora também se levantou – A gente precisa de uma coisa mais divertida.
- Tipo...?
- Tipo ir naquela coisa que é o mais próximo de um shopping que a gente tem aqui – Bruna revirou os olhos dramaticamente – Trate de se arrumar agora mesmo.
...
- Vamos, Ágata! – meu pai gritou do andar debaixo – São três horas de carro até o aeroporto.
- Já estou indo – corri escada abaixo.
- Já está tudo no carro? – ele perguntou.
- Sim, senhor.
- Então vá se despedir de seus irmãos. Eu e sua mãe estamos esperando no carro.
Sempre odiei essa parte: as despedidas. Talvez eu não fosse sentir falta desse lugar, mas com certeza sentiria falta da minha família.
Fui até a sala, onde os dois estavam em frente à TV, tão quietos e concentrados no filme que estava passando, tão em paz, que doeu ter de fazê-los se despedir da irmã mais velha.
- Hei, garotos – eu disse, engolindo em seco – Acho que vocês vão querer se despedir antes de eu ir embora.
- Você já vai? – Pedro perguntou, vindo até mim.
Ele era o mais novo, tinha apenas quatro aninhos, e era meu xodozinho também. Era uma d***a ter que dizer tchau, ainda mais para ele.
- Vou, tampinha – eu me agachei para ficar do tamanho dele – E vou sentir muitas saudades.
- Você vai voltar para me ver?
- É claro que vou, que tipo de irmã eu seria se não viesse?
- Você promete? – ele estendeu a mão com o dedo mindinho esticado.
- Prometo – sorri, entrelaçando meu dedo no dele e lhe dando um abraço demorado.
- Tudo bem, Pedro – Anna disse, puxando ele de mim – Tem que deixar ela se despedir de mim também.
Sorri e me levantei. Puxei-a para um abraço e lhe dei um beijo na cabeça.
- Não me decepcione – eu disse, com a visão já embaçada pelas lágrimas – Agora você é a mais velha da casa. Tem que cuidar direitinho dos garotos, ouviu?
- Prometo que vou ser uma irmã mais velha bem melhor que você – ela riu e me abraçou mais uma vez.
- Tenho certeza de que sim. Mas não abusa, eu ainda quero ser a preferida quando eu voltar – ela me deu língua e riu – Ok, acho que agora só falta alguém.
Olhei para o sofá e vi que Daniel ainda estava lá. Nem havia se dado ao luxo de olhar para mim. Fui até ele e me sentei ao seu lado.
- Não vai me dar tchau? – perguntei.
- Acho que não quero que você vá mais embora – ele disse depois de um tempo, ainda sem olhar para mim.
- Ah não! Você nem gosta de mim – fiz cócegas nele – Não é você que fica o tempo todo me dando susto, puxando meu cabelo e dizendo que me odeia.
- E de quem eu vou encher o saco quando você for embora?
Ri da cara dele.
- Nem pense em dizer meu nome – Anna falou.
- Também vou sentir sua falta – eu disse para ele bem na hora que meu pai buzinou lá fora – Agora me dá logo um abraço que eu tenho que ir.
Ele jogou os braços ao redor do meu pescoço e me apertou forte.
- Assim você vai me m***r – brinquei.
- Eu te amo – ele disse e me soltou rápido até demais.
Isso me deixou sem reação. Era a primeira vez que eu escutava essas três palavrinhas vindo dele. Apesar de sempre saber que ele me amava, ele nunca tinha dito, e era difícil ter que ouvi-lo falar pela primeira vez e depois dizer adeus.
Engoli em seco e uma lágrima escorreu pelos meus olhos.
- Eu também te amo – levantei, enxugando meu rosto – Eu tenho que ir, mas eu prometo que eu volto para você poder me chamar de f**a quantas vezes você quiser.
Ele deu um meio sorriso e voltou a olhar para a TV.
Saí de casa com o coração na mão por ter que deixá-los. Eu os amava demais. Eram a única coisa boa na minha vida.
- Como foi? – minha mãe perguntou quando entrei no carro.
Meu pai deu partida.
- Difícil – falei.
- Não fique triste – ela botou a mão no meu braço – Vocês não vão ficar tanto tempo sem se ver. Semestre que vem você volta para as férias, lembra?
- Só por alguns dias.
- Mas vai voltar – ela enxugou a lágrima que eu deixei escapar – Tente pensar nas coisas boas. Vamos buscar as garotas agora, e vocês vão juntas para a faculdade. Não é tudo o que você sempre quis?
Forcei um sorriso.
- É... Tudo que eu sempre quis.
Mas não saiu tão convincente assim.
...
No aeroporto, com a pressa e a ansiedade, não tinha nem dado um passo direito, e esbarrei em um homem. Isso era minha cara.
- Desculpa – inclinei a cabeça para trás para poder enxergar seu rosto.
Podia jurar que por um momento seus olhos se arregalaram de surpresa, mas um segundo depois já não estava lá. Ele resmungou alguma coisa e saiu andando.
Fiquei olhando suas costas enquanto ele se afastava. Havia algo de estranho naquele homem. Eu não sabia o que, só sabia que tinha. Ele virou o rosto para me fitar mais uma vez antes de desaparecer na multidão.
- Tudo bem? – meu pai me perguntou.
- Sim – dei um sorriso para ele e continuei andando.
Me despedir de meus pais foi a pior parte de todas. Como sempre, as despedidas acabavam comigo. Fiquei tão chateada que passei o voo inteiro ou dormindo ou chorando.
Não demorou muito para chegarmos ao nosso destino. Na verdade, foi mais rápido do que eu queria. Depois de meia hora dentro de um táxi, finalmente chegamos à faculdade.
Era fantástico. Parecia perfeita. O campus era enorme e, à primeira vista, parecia um lugar fácil onde se perder. Havia pessoas para todos os lados, de todos os tipos e estilos. Parecia outro mundo. Totalmente diferente do que eu conhecia.
Havia muitos lugares para conhecer, e a ansiedade era tanta que não sabíamos o que fazer direito. No fim, eu e as meninas decidimos procurar nossos quartos primeiro nos dormitórios.
- Isso é demais! – Débora falou, olhando para os prédios – Parece mágico!
Eu e Bruna começamos a rir.
- Imagine as festas... – Bruna falou – Será que é como nos filmes?
- Duvido muito que seja – eu disse.
- Tomara que os quartos sejam espaçosos o suficiente – Débora dizia, sem conseguir tirar o sorriso do rosto.
Chegamos ao nosso quarto e nos esparramamos em nossas camas. Era bem espaçoso, como Débora queria. Tinha até um banheiro. Além das camas, cada uma tinha seu próprio guarda roupa. Era pequeno, mas dava para o gasto.
- Eu já me sinto melhor – Débora inspirou o ar ao seu redor – Isso cheira a liberdade.
Bruna riu e acrescentou:
- Minha palavra preferida.
Olhei ao redor e senti uma pontinha de falta do meu quarto. Me senti um tanto estranha, porque na verdade não era isso que eu esperava sentir: saudade.
- E você, Ágata? – Bruna perguntou – Como se sente?
Olhei para ela e sorri.
- Bem – olhei pela janela – Sufocada, na verdade – me levantei da cama – Que tal sairmos para conhecer o campus?
- Adorei a ideia – Débora se levantou também.
- Não, nem pensar – Bruna disse – Não vamos sair sem deixar tudo arrumado.
Débora bufou e se jogou na cama novamente.
- Será que dá para deixar sua mania de organização para outra hora? – perguntei, cruzando os braços.
- Nada disso, gente – ela disse – E pensem bem, se arrumarmos agora, vamos poder sair e não precisaremos voltar mais cedo para deixar tudo pronto para amanhã. Vamos poder cair direto na cama. É melhor.
- Quem diz isso é você – Débora resmungou.
- Parem de reclamar e arrumem logo as coisas. Estão perdendo tempo aí.
- Tudo bem – eu disse.
Fui até meu guarda roupa, abri minha mala e a despejei tudo dentro das gavetas, sem nem ao menos dobrar as roupas direito. Depois peguei meus sapatos e os coloquei na parte debaixo, todos enfileirados. Meus acessórios e cosméticos foram botados de forma organizada em seus devidos lugares. E por último guardei meu notebook com minha mochila da escola em cima de uma mesa no canto do quarto.
- Pronto – me joguei na cama novamente
- Não, não, não – Débora disse – Foi muito lenta – ela se levantou e foi até sua única, mas enorme, mala – Aprende com a mestre.
Ela abriu sua mala e a virou de cabeça para baixo dentro do guarda-roupa, deixando a metade das coisas caírem para o lado de fora.
- Viu?! – ela olhou o relógio – Menos de um segundo.
- Aquilo é um sapato no meio das suas roupas? – Bruna perguntou, com nojo estampado na cara.
- Deixa eu ver – Débora tirou algo do meio de suas roupas, que definitivamente era um sapato – Sim. Deve ter um pedaço de pizza por aqui em algum lugar também.
- Que nojo! – Bruna fez uma careta, como se estivesse prestes a vomitar. Eu ri.
- Podemos ir agora? – perguntei.
- Eu ainda nem arrumei minhas calcinhas – Bruna disse – Não vamos sair agora.
Débora resmungou e se jogou na cama ao meu lado.
- Porque você não aproveita para arrumar suas coisas direito? – Bruna sugeriu à Débora – Já que com certeza vamos demorar um pouco.
- Não, obrigado, vai continuar assim.
- Não sei como vou sobreviver com vocês duas no mesmo quarto.
- É simples – olhei para ela, me apoiando nos cotovelos – Você se preocupa com sua parte, que eu e a Débora nos preocupamos com a nossa – dei um sorriso cínico.
Débora começou a rir. Bruna me deu língua.
Bruna voltou a arrumar suas coisas, e Débora começou a mexer nas unhas. Olhei para o céu pela janela e suspirei. Ainda me sentia estranha, sufocada, então me levantei e fui até a janela tomar um pouco de ar.
Nosso quarto ficava no sétimo andar, então tínhamos uma vista bem bacana do campus daquela altura. Da janela, dava para ver o pátio principal.
Eu imaginei essa cena tantas vezes, de tantas formas. Mas no momento, não era exatamente o que eu esperava. Não me senti em casa como achei que me sentiria. Não me senti encaixada no mundo como imaginei que aconteceria. Me senti a mesma, só que em um lugar diferente.
Meus olhos continuaram percorrendo o campus, apenas observando, quando uma coisa me chamou atenção.
Escondido nas sombras, eu consegui identificar a silhueta de alguém. Apesar de não conseguir ver seu rosto por causa do boné branco que estava usando, com um símbolo vermelho da Nike, sabia que estava olhando diretamente para mim. Encarei a pessoa de longe enquanto uma sensação, que eu não soube identificar se era r**m ou não, tomou conta de mim. Um estremecimento percorreu todo meu corpo.
Continuei encarando a figura por tempo indefinido, sem conseguir desviar o olhar, até que Débora me gritou.
- Ágata!
Dei um pulo com o susto.
- O que?! – me virei para ela.
- Tudo bem com você? Eu te chamei três vezes – ela me lançou um olhar preocupado.
- Sim, eu só... – olhei para baixo de novo, a procura da pessoa nas sombras. Mas ela não estava mais lá.
Meu sangue gelou em minhas veias.
Isso tinha sido bem estranho. Bem parecido com aquelas cenas de filme de terror. Bizarro...
- Só o que? – Débora perguntou, me trazendo à realidade mais uma vez.
- Só achei que tivesse visto algo – disse, balançando a cabeça e me virando para ela – Não é nada.
- Ok – ela disse com as sobrancelhas ainda erguidas – Então que tal a gente ir?
- Ir aonde?
- À lanchonete...? Comprar um refrigerante...? Enquanto a Bruna termina de arrumar as coisas dela...? – ela falou pausadamente, com um tom de pergunta no final, como se eu já soubesse do que ela estava falando. Provavelmente deveria saber. Ela devia ter falado enquanto eu estava hipnotizada olhando para a pessoa nas sombras, ou seja lá o que era.
- Claro. Vamos.
Antes de sair, olhei mais uma vez pela janela, mas ainda não tinha nada. Comecei a pensar que talvez eu tivesse visto coisas, mas fiquei tempo demais encarando a pessoa para poder ser só imaginação.