No dia seguinte, eu teria minha folga. O trabalho tinha sido minha fuga necessária, um refúgio que me permitia esquecer os problemas pessoais, ainda que por um tempo. Não sobrava espaço para remoer os desgostos e as decepções que Renato me causou. Mas naquele dia, eu sabia que não podia mais me esconder do mundo.
Estava voltando para casa quando meu celular tocou. Era Carla. Fazia dias que não conversávamos direito.
— Isa! — A animação na voz dela era contagiante. — Sei que você anda focada no trabalho, mas amanhã é sua folga, né? Meu namorado chamou a gente pra sair com uns amigos. Vai ser divertido! Vamos tomar uns drinks, dançar… Vem com a gente?
Hesitei. A saudade de sair, de ser algo além de funcionária daquela casa enorme, me puxava. Eu precisava disso. Mas, ao mesmo tempo, tudo que queria era um tempo para colocar a cabeça no lugar. Minha vida estava uma bagunça. Fingir que nada estava acontecendo parecia impossível.
Suspirei, parando no sinal vermelho.
— Não sei, Carla… Minha vida está de cabeça pra baixo. Acho que essa não seria a melhor forma de aproveitar minha primeira folga.
— E ficar em casa vai resolver o quê? Eu te conheço, Isa. Se deixar, você se afunda nessa fossa. Só me acompanha, vai. Não vou deixar você se deixar levar pela maré.
O vermelho do semáforo parecia embaçar diante dos meus olhos. Batia os dedos no volante, minha mente vagando. Ela tinha razão.
Eu não fiz nada de errado. Renato me enganou, mas agora sou eu quem carrega o peso?
Não. Isso não está certo.
Respirei fundo.
— Você tá certa. Eu vou.
Tentei soar mais confiante do que me sentia. Sair não apagaria tudo, mas pelo menos me permitiria respirar.
— Maravilha! A gente passa pra te pegar?
Olhei para o carro.
— Não precisa, estou com ele. Posso encontrar vocês lá.
— Olha só, motorizada agora! — Ela riu. — Te mando o endereço.
Me arrumei com calma. Escolhi um vestido preto com decote em "V" e correntes nas costas. A f***a na coxa esquerda adicionava um toque ousado. O barzinho parecia ter um clima mais noturno, então optei por salto fino e uma gargantilha. Quando borrifei o perfume, encarei meu reflexo.
Aquela sensação estranha voltou. Como se estivesse fazendo algo errado.
Neguei com a cabeça.
— Você pensa demais — murmurei para mim mesma.
Peguei a chave do carro e saí.
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O motor roncava suave na estrada, mas minha mente estava agitada. Quando estacionei e liguei para Carla, ela avisou que estavam na área VIP.
As luzes do lugar piscavam no ritmo da música alta. O ambiente era escuro, abafado pelo som do DJ. Subi as escadas, onde dois seguranças barravam a entrada.
— Isabella Roth — anunciei.
Após conferirem a lista, liberaram minha passagem.
Dei alguns passos para dentro e então parei, congelando no lugar.
Kaio.
Meu chefe.
Ele nunca aparecia, nunca estava por perto. Mas ali estava ele, como se nada fosse.
— Ela chegou! — Carla me puxou, empolgada.
Todos os olhares se voltaram para mim. Ela franziu a testa ao ver minha reação.
— Isa… Você tá bem? Não me diga que o crápula tá por aqui. Você parece que viu um fantasma.
Minha mente girava. Ela não sabia que Kaio era meu chefe?
Antes que eu pudesse dizer algo, ele se adiantou, formal.
— Prazer, Kaio.
Sua voz era educada, mas distante. Fria. Como se eu fosse uma completa estranha.
Engoli em seco.
— Isabella…
Apertei sua mão, confusa. Ele queria que ninguém soubesse quem eu era para ele?
Carla, alheia à tensão, me puxou de novo.
— Vem, vamos beber!
Me deixei levar, mas, ao olhar para trás, vi Kaio me observando. Seu olhar era um aviso.
Não conte a ninguém.
Quando nos afastamos, Carla me encarou, preocupada.
— Isa… Você viu ele, não foi? O Renato está aqui?
Meu coração martelava.
Isso não vai dar certo.
Ela esperava uma resposta, mas eu não conseguia falar.
E se eu ficasse?
Ali, eu não era funcionária dele.
Ali, eu não era a babá.
Ali, eu era apenas Isabella.
E se…?
....
Carla mudou rapidamente o semblante, recusando-se a aceitar o que eu acabara de dizer. Ela achava que minha reação era por causa de Renato, supondo que eu pudesse tê-lo visto ali. Mas, na verdade, nem mesmo a presença dele teria tanto impacto quanto ver Kaio ao lado deles.
— Amiga, você acabou de chegar. O que foi? É por causa dele? Onde está aquele cretino?
— Não, Carla... Ele não está aqui.
Ela me lançou um olhar ainda mais confuso.
— Então, o que foi?
— Eu... só não estou me sentindo bem.
Que desculpa mais esfarrapada!
— Isabella Roth, você não tá falando isso só pra se trancar no apartamento e acabar mandando mensagem pra ele, né?
— Quê? Claro que não! Eu não quero ver a cara dele nunca mais, Carla.
— Então já chega de se isolar! Você já está aqui, sua entrada já foi paga, não vai me decepcionar, ouviu?
— Amiga...
Ela negou rapidamente, me cortando.
— Olha, essa é a primeira vez que o Gustavo me apresenta alguém da sua família. O cara que te cumprimentou é primo dele, então... por favor, não me faz passar vergonha.
Soltei um suspiro pesado e ela segurou minhas mãos.
— Vai, não vai te custar nada. Pelo contrário, vai aliviar essa sua semana corrida. E outra... vai te ajudar a esquecer aquele banana do Renato.
Não consegui segurar um sorriso de humor com o jeito que ela falou.
— E eu bem vi que ele ficou afim de você.
Fechei o sorriso na mesma hora.
— Eu não vim aqui pra isso.
Ela fez uma careta.
— Tá, tá... Mas pelo menos pra umas bebidas, né? Será que você pode ser menos careta? Você é nova demais pra viver como uma velha de 70 anos!
Ela me balançou, fazendo meu corpo se mover como se estivesse dançando.
— Vamos, se anima! Por mim?
Abri um sorriso pequeno.
— Tá bom, mas não posso beber muito.
— Só um pouquinho!
Ela me puxou para perto do bar.
— Onde... fica a tabela de valores?
— Amiga, estamos na área VIP. Não existe tabela de valores aqui. Os cavalheiros já pagaram nosso open bar.
Olhei para a variedade de bebidas sendo preparadas e ela tomou a frente.
— Vamos fazer assim: já que temos passe livre, vamos beber uma de cada. Tipo uma degustação.
— Carla, isso não é beber pouco.
— Uma de cada não vai embriagar ninguém.
— Misturar tudo vai!
Ela deu de ombros, me ignorando.
— Você tem que provar esse Cosmopolitan. Bebi agorinha e é perfeito.
Neguei com a cabeça enquanto ela já fazia o pedido.
— Dois Cosmopolitan, por favor!
O rapaz começou a preparar e ela me olhou, abrindo um sorriso rápido e cara de p*u. Logo pegamos as bebidas.
— Um brinde!
Bati a taça na dela deixando sua animação me contaminar.
—Vai, agora prova.
Levei a taça à boca. A bebida tinha um gosto cítrico de laranja e limão, mas havia um sabor que eu não conhecia. Era bom, quase não dava para sentir o álcool.
— Hum... é gostoso.
— Não disse?
— Que tipo de bebida tem aqui?
— Vodka.
Pressionei os lábios e ela passou o braço sobre o meu.
— Vem! Eles estão nos esperando.
Me puxou como uma marionete.
— Você disse que seriam amigos... Onde estão os outros?
— Já estamos aqui há um tempo, eles se espalharam por aí caçando, como eles disseram.
Revirei os olhos. Logo estávamos diante deles novamente. Eu não sabia para onde olhar, enquanto Gustavo falava mais alto com Kaio por causa do som.
Carla se afastou várias vezes para pegar mais bebida e sempre trazia uma extra para mim.
— Hum... essa é top, prova!
— Eu acho que já estou bem.
Já sentia meu corpo esquentar, meus cabelos grudando levemente na testa. Aquela tensão deixava tudo ainda mais intenso.
— Prova, amiga!
Suspirei e peguei a bebida, provando. Mas a mistura de sabores já fazia meu paladar confundir tudo.
— Não é bom?
Acenei que sim, mas nem sentia mais o gosto direito.
— Você já embriagou a garota, Carla, ela nem levanta mais.
Estava sentada.
— Claro que não. Isa... está bêbada?
— Não, estou bem!
— Ficar parada vai ser pior, vai por mim.
— Vem, amiga, levanta... Quer dançar?
— Ah não, é sério, estou bem!
Bem eu não estava. Realmente, a bebida parecia ter me pegado, mas não era isso que estava me travando.
— Bom, se você não quer, eu quero.
Ele puxou Carla pela mão para mais perto, mas antes, bateu com o ombro no Kaio como se o alertasse de algo ou impulsionasse. Logo a tirou para dançar, deixando Kaio e eu sozinhos.
Eu sentia uma tensão no ar, mas tentei me distrair. No fundo, sentia um nó na garganta, como se estivesse perdendo o controle de algo muito maior.
Eu estava tentando entender o que estava acontecendo, o que Kaio queria de mim ali, no meio de tudo aquilo. Ele parecia tão distante, tão frio, como se nada fosse demais. Mas, ao mesmo tempo, eu podia sentir a pressão da sua presença.
O cheiro dele... aquele perfume marcante, que de alguma forma me deixava tonta, tomava conta de mim. Ou era a maldita bebida.
Fechei os olhos por um momento, tentando afastar o turbilhão de pensamentos que me invadiam. Mas quando abri novamente, lá estava ele, me olhando com uma intensidade que me desconcertou.
Rapidamente bebi minha bebida de uma vez, tentando me recompor, agradecendo internamente por estar em um lugar tão escuro. Eu sabia que ele não podia ver o quanto meu rosto estava ruborizado. Então, escutei sua voz, baixa e direta:
— Você não vai dançar?
Foi uma pergunta simples, mas, de alguma forma, parecia mais carregada de significados do que deveria.
— Ah, não... estou legal aqui.
Respondi rapidamente, tentando soar despreocupada, mas eu sabia que não estava. Kaio deu um leve sorriso, um sorriso que parecia mais um enigma do que uma reação verdadeira.
— Não estamos no trabalho, não precisa ficar tensa.
Disse, de um jeito tão tranquilo, como se soubesse que algo estava me incomodando, mas sem se importar em perguntar diretamente.
— Não estou tensa, estou normal.
Tentei passar a impressão de que estava tudo bem, mas ele não pareceu acreditar. Tomou um gole da bebida, ainda sem me olhar de verdade, mas eu sentia a intensidade daquela presença.
Cada segundo ao lado dele parecia aumentar a pressão no meu peito. O tempo parecia passar devagar e, quando percebi, Carla ainda não havia voltado.
Eu estava começando a me sentir sufocada, como se aquela proximidade de Kaio estivesse me engolindo. Não sabia o que fazer, então, sem pensar muito, falei:
— E você não vai dançar? Tem tantas mulheres aqui para isso.
Kaio me olhou por um breve momento, em silêncio, e então respondeu, com uma calma que quase me irritou:
— Não, estou bem aqui também.
O silêncio entre nós se tornou ainda mais denso, como se tudo ao nosso redor tivesse desaparecido. A tensão era palpável, e eu estava começando a me perguntar o que estava acontecendo.
Mas antes que o silêncio nos engolisse por completo, Carla finalmente voltou, trazendo Gustavo.
Soltei o ar em alívio, mas não consegui evitar a sensação de que algo ainda estava no ar, algo que nem eu nem Kaio havíamos dito.
Meu suspiro foi tão nítido que ele me olhou, um sorriso ladino e perverso nos lábios.
O que estava acontecendo ali? Entre nós? Eu não estava ficando louca... Ou estava?
Ainda não sabia, mas tinha certeza de que não conseguiria ignorar por muito tempo.