CAPÍTULO — SUZANA ALCÂNTARA: A MULHER, O MITO, O ACIDENTE AO VIVO
24 anos. Zero juízo. Cem por cento coragem.
Eu acordei com o despertador tocando igual um alarme de usina nuclear.
TRIIIIIIM
TRIIIIIIM
LEVANTA, DESGRAÇA.
Sim, porque meu celular não toca normal.
Ele grita como se tivesse ódio pessoal de mim.
Abri um olho.
A luz do sol bateu no meu rosto como tapa de mãe brava.
— Pronto… começou mais um capítulo da minha desgraça.
Me virei na cama e senti.
Merda.
Tinha dormido abraçada numa embalagem de biscoito.
De novo.
Meu quarto estava num nível de bagunça que faria até ladrão desistir de roubar.
Chão?
Não tinha.
Era uma camada de roupas empilhadas, livros que nunca li, maquiagem aberta e um copo de refrigerante que eu rezo pra não ter mosquitos.
Levantei do meu “ninho”.
Sim, eu chamo ele assim.
É confortável?
Não.
É bonito?
Também não.
Mas é… vivo.
Ou quase.
Meu nome é Suzana Alcântara.
24 anos.
Solteira por motivo de força maior:
Meu gosto é ótimo.
Minha escolha é péssima.
Cabelo castanho longo, daqueles que ficam lindos quando o vento ajuda, e um desastre quando o vento é contra mim (ou seja, sempre).
Olhos claros que enganam: parecem de pessoa centrada.
Eu não sou.
Boca grande.
Falo demais.
Penso pouco.
Faço merda na velocidade da luz.
Personalidade?
Um combo:
50% coragem, 50% burrice, 100% entretenimento involuntário.
Trabalho como assistente administrativa, mas sinceramente?
Eu devia ganhar como atriz de comédia involuntária.
.....
Levantei, fui até o banheiro e me olhei no espelho.
Meu cabelo parecia que eu lutei com um furacão.
E perdi.
Minha cara estava amassada como massa de pastel.
Meu pijama tinha…
pera…
mancha de ketchup?
Por quê?
Eu nunca vou saber.
Suspirei.
— Suzana… minha filha… você é um perigo público.
Lavei o rosto.
Me arrumei.
Escolhi um vestido claro, aquele bonitinho, que passa a falsa impressão de que sou organizada e madura.
Mentira.
Eu só queria parecer uma pessoa que tem contas pagas.
Desci pra cozinha.
Como sempre:
a geladeira tinha três itens:
um pote de maionese aberto,
uma água com gosto de freezer,
e um limão que já tava no testamento.
Comi um biscoito velho mesmo.
Vida adulta é sobre escolhas ruins.
A SAÍDA DE CASA (O ATO HERÓICO)
Saí do meu apartamento e travei a porta.
Ou tentei.
A chave prendeu.
Girei.
Nada.
Girei de novo.
Nada.
Puxei.
Nada.
Até que…
CLACK.
Funciona.
Eu comemorei como se tivesse ganhado na loteria.
— ISSO, p***a! A MAMÃE CONSEGUE!
A vizinha do 301 passou, me olhando como se eu fosse doida.
Talvez seja.
Desci a rua com meu vestido fluindo, salto na mão (porque eu nunca consigo andar com ele por mais de 10 minutos), e o cabelo semi-arrumado.
E aí veio a parte mais perigosa do meu dia:
Homens bonitos.
Muito.
Em quantidades industriais.
Passou um moreno correndo, forte, definido, suando de um jeito que faz a sanidade balançar.
Meu cérebro:
“Ih… que delícia.”
Sim, isso eu realmente penso.
Mas penso BAIXO.
Normalmente.
Ele olhou.
Sorriso simpático.
Eu quase cai.
Continuei andando.
Mais à frente, dois tatuados conversando encostados num carro preto.
BRASOS.
OMBROS.
VEIAS.
DEUS ME SEGURA QUE EU VOU CAIR.
Meu cérebro fez:
“Esse aí eu assinava até contrato.”
E claro…
Eles ouviram.
Porque minha vida é isso.
Um olhou, sorrindo:
— Contrato? Comigo?
Eu fiquei vermelha até a alma.
— Tava falando do carro! CARRO! Lindo carro!
Corre, Suzana.
Corre.
O ESCRITÓRIO (INFERNO QUE TEM CAFETEIRA)
Cheguei no trabalho fingindo ser adulta.
Meu chefe, Paulo, já me olhou com cara de ódio.
— Suzana, atrasada.
— Paulo, eu tô adiantada pra quem quase morreu tropeçada no ar.
— Senta, Suzana.
Sentei.
Por dez minutos, tudo estava calma.
Aí… claro…
A impressora travou.
Eu, querendo ajudar, fui lá e…
Abri.
Mexi.
Puxei.
ARRANQUEI.
Ela EXPLODIU tinta pra tudo que é canto.
Meu vestido.
Meu rosto.
O chão.
A parede.
Paulo entrou e parou.
— Suzana.
— Sim?
— O que você fez?
— Eu… tentei imprimir.
— Você tentou matar a impressora!!!
Tentei disfarçar:
— Ela começou.
— Ela… começou?
— Ela tossiu tinta em mim!
Ele respirou fundo.
— Vai limpar. Agora. Antes que eu ligue pro RH.
....
Fui pra rua pra esfriar a cabeça.
E os homens ainda estavam lá.
Um deles olhou pra mim aquele da moto, tatuado até a alma e disse:
— Tá melhor, bonitinha? Hoje você só pensou alto umas três vezes.
Eu travei.
Respirei.
E disse a maior mentira da minha vida:
— Isso não acontece comigo. Eu sou tímida.
Ele riu.
Alto.
Gostoso.
Maldoso.
— Tímida? Se você fosse mais sincera, me pedia o número.
Eu quase pedi.
Mas tropecei no meio-fio antes.
Lógico.
CONCLUSÃO DO DIA
Meu nome é Suzana Alcântara.
Tenho 24 anos.
E minha existência é uma mistura de vergonha alheia, drama, comédia, desgraça e charme.
Se a vida é uma montanha-russa, a minha é um equipamento interditado pelo bombeiro.
E sinceramente?
Eu adoro.
.....
Eu respirei fundo depois do almoço, ajeitei o cabelo que estava mais bagunçado que a minha vida e entrei de novo no prédio do escritório.
A recepcionista me olhou com cara de “coragem, hein?”.
Nem respondi.
Já tava acostumada com a fama.
Subi o elevador.
As portas abriram.
Paulo estava lá.
Parado.
Braços cruzados.
Cara de quem ia pedir demissão por minha causa.
— Suzana. Sala. Agora.
Eu engoli seco.
— Que sala, Paulo? A de reunião? A de castigo? A do choro?
— A minha.
Eu entrei.
A sala parecia gelada.
Ou era eu?
Não sei.
Ele apoiou as mãos na mesa, encarando meu histórico de erros escrito no semblante.
— Suzana… vou ser direto. Você precisa entregar o relatório da empresa parceira até às 14h. É importante. Muito importante. VIDA OU MORTE IMPORTANTE.
— Relatório. Beleza. Tenho dez dedos e uma vontade enorme de parecer competente.
Ele fechou os olhos, respirou fundo, como quem ora por paciência.
— Suzana… só não estraga nada. É tudo que eu peço.
Eu bati continência.
— Senhor, sim, senhor!
Ele me olhou com tanto ódio que senti arrependimento químico.
Saí da sala, sentei na minha mesa e comecei a digitar.
Até aí, tudo certo.
Os números estavam ali.
O contrato, ali.
Os dados, ali.
O problema?
Eu, Suzana Alcântara, estava ali também.
E quando EU estou presente… o caos também está.
A MERDA GRANDE — versão deluxe
Enquanto eu terminava o arquivo, decidi ser organizada.
Eu? Organizada?
Sim, tentei.
Criei uma pasta no computador:
“Relatório Parceira — FINAL DEFINITIVO CONFIRMADO OK”.
Aí, como boa burra, arrastei pra dentro da pasta tudo que tinha o nome “relatório”.
Tudo.
TU-DO.
Incluindo:
relatório financeiro,
relatório de RH,
relatório de advertências internas,
relatório sobre funcionários,
relatório sobre atrasos,
relatório sobre…
funcionários problemáticos.
Eu nem percebi.
Quando finalizei, mandei o e-mail:
PARA TODA A DIRETORIA.
E TODA A EMPRESA PARCEIRA.
E TODO O SETOR DE COMUNICAÇÃO.
Sim.
Eu cliquei em “Enviar para todos”.
Como uma i*****l com diploma de burrice.
Demorou DOIS minutos.
Dois.
Até ouvir o grito de Paulo vindo do fundo do corredor:
— SUZAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAANA!!!
A porta abriu com violência.
Paulo estava vermelho.
Ver-me-lho.
Quase roxo.
— VOCÊ MANDOU O RELATÓRIO ERRADO?!
Eu sorri nervoso.
— Qual deles? Eu mando tantos…
— TODOS, SUZANA! VOCÊ MANDOU TODOS!
— VOCÊ ENVIOU O RELATÓRIO QUE DIZ “FUNCIONÁRIOS QUE PRECISAM SER DEMITIDOS EM BREVE”!!!
— E SABE QUEM TÁ NO TOPO DA LISTA?!
Eu…
— Sou eu?
— É! E AGORA TODO MUNDO SABE!
Eu não sabia se ria, chorava ou fingia um AVC.
Escolhi a opção 4:
Cair de joelhos.
Me ajoelhei no meio do escritório.
— Paulo… por favor… não me demite… meu aluguel vai vencer… minha geladeira tem só um limão morto… meu wi-fi falha… e minha mãe me manda corrente de oração todo dia… EU SOU FRACA MENTALMENTE!
Paulo passou a mão no rosto.
— Suzana… levanta.
Eu fiquei lá.
— Suzana. Levanta agora.
Eu bati no chão, teatral.
— Eu não vou levantar! Se quiser me tirar daqui vai ter que me carregar!
Paulo respirou fundo.
Ligou o telefone interno.
— SEGURANÇA na minha sala. Agora.
Eu congelando:
— Segurança?
— Paulo… Paulo, isso é desnecessário…
— Paulo, a gente é uma família…
Ele:
— Nós nunca fomos família.
Dois seguranças entraram.
Grandes.
Fortes.
O tipo de homem que eu olho e penso:
“Ôpa… que Deus abençoe esse tríceps.”
Mas segurei o comentário.
Quase.
Eles chegaram ao meu lado.
— Senhora Suzana… a senhora vai precisar nos acompanhar.
Eu olhei pra eles com cara de vítima dramática de novela:
— Homem bonito me chamando de senhora dói mais que a demissão.
Um deles segurou meu braço.
O outro pegou minha bolsa.
E eu, sendo arrastada pelo escritório inteiro, decidi aceitar a humilhação com classe.
Quer dizer…
com o meu tipo de classe.
Gritei:
— VOCÊS SÃO MUITO AUTORITÁRIOS!
E GATOS!
AUTORITÁRIAMENTE GATOS!
Todo mundo olhando.
Paulo quase desmaiando.
— SUZANA, CALA A BOCA!
— NÃO CALO! EU SOU UMA ARTISTA INCOMPREENDIDA!
Eles me puxavam.
Eu fingia desmaio.
Depois fingia fraqueza.
Depois fingia que ia vomitar.
Nenhuma funcionou.
Quando chegamos no térreo, eu joguei o cabelo pro lado com a mão livre, olhei para um dos seguranças e disse:
— Nossa… que braço, heim?
— Se quiser me levar até em casa pra garantir que eu não faça nada perigoso… é só falar.
O cara ficou vermelho.
O outro riu.
Me largaram do lado de fora.
Porta do prédio fechou.
Eu respirei fundo, ajeitei o vestido e disse pra mim mesma:
— Fui demitida…
Mas pelo menos dei em cima dos seguranças.
Pequenas vitórias.