capitulo 2 continuação

1371 Words
CONTINUAÇÃO — SUZANA, A CALÇADA E O CHOCOLATE DA VERGONHA Eu saí pela porta do prédio igual criminosa expulsa da prisão, caída na calçada, com o meu orgulho amassado, minha dignidade derrotada e meu cabelo cheio de poeira de tapete. Sentei no meio-fio com a postura de uma pessoa que já aceitou o fracasso como religião. E chorei. Não chorei bonito. Não chorei poético. Chorei igual criança que derrubou o picolé no chão. — Acabou… acabou tudo… perdi emprego… perdi honra… perdi minha sanidade emocional que já era pouca… Aí lembrei: Eu NUNCA tive sanidade emocional. Então chorei mais. As pessoas passavam olhando. Algumas desviavam. Outras pegavam o celular pra gravar o ser humano não perde um entretenimento barato. Aí… três adolescentes passaram por mim. Moradores ali da área. Aqueles meninos que sempre estão com uniforme de escola, mochila pendurada e energia de quem come TNT no café da manhã. Eles me viram chorando. O primeiro: — Ihhhh, a moça tá em decomposição emocional. O segundo: — Bora dar um cupom de desconto pra ela, vai que alegra. O terceiro abriu a carteira e tirou um papel colorido. — Toma, moça. Achei ontem na rua. Válido até… Ele virou o cupom. Fez careta. — … até 2026. Eu peguei. Olhei. Era um cupom de 50% pro aplicativo de carro. 2026. Caduco. Mortinho da silva. Mas eu sou Suzana. E Suzana não pensa: ESPERANÇA na mão = SALVAÇÃO. — OBRIGADA, MEU ANJO! Você mudou a minha vida. O menino tava mastigando chiclete e respondeu: — Moça… eu só achei no chão… — Não interessa! É destino! É… símbolo de prosperidade! É um sinal divino! Ele: — É lixo, moça. Eu: — Cala a boca, garoto. Deixa eu viver meu momento. Guardei o cupom no sutiã, porque eu não tenho bolsos e a vida é assim. Levantei da calçada, limpei as lágrimas (e borrei toda a maquiagem, óbvio), e comecei meu trajeto até a casa da minha tia. A IDA PRA CASA DA TIA (O SUCESSO DO FRACASSO) A casa da tia Berenice ficava a uns quinze minutos andando. Fui a pé porque não ia gastar os quatro reais que tinham na minha carteira. Eu precisava guardar pra comer um salgado depois. Cheguei na porta. Bati com força. — TIAAAAAA BEEEEREEEEEE! ABRE! EU TÔ EMOCIONALMENTE FERIDA! Ela abriu a porta devagar, com aquela cara de quem já tá acostumada comigo desde antes de eu nascer. — O que você aprontou agora, criança do capeta? — EU FUI DEMITIDA! Ela abriu mais a porta. — Tá. Entra. Entrei tropeçando na entrada porque até na vitória eu caio. Joguei a bolsa no sofá. Joguei o sapato longe. Joguei MEU CORPO no tapete da sala igual estrela caindo do céu. A tia Berenice só olhou, impassível. — Quer água? Quer calmante? Quer um psiquiatra? — Quero chocolate. Ela pegou uma barra na gaveta. Eu arranquei com violência e comecei a comer como se fosse sobreviver à base de cacau. — Conta. — ela pediu. Eu, com a boca cheia: — Eu… fui… expulsa… do meu emprego… porque eu… mandei… o RELATÓRIO ERRADO PRA EMPRESA INTEIRA! A tia fez um “hmm” de quem já esperava. — E quando demitiram você? Engoli metade da barra. — Eu chorei, me ajoelhei, fiz drama… e depois dei em cima dos seguranças. Ela arregalou os olhos. — De novo?! — Eles têm braço, tia. Braço mexe com meu chakra. Ela bateu a mão na testa. — Suzana, por que você não vai morar com sua mãe de uma vez? Eu parei de comer. Olhei pra ela como se ela tivesse sugerido que eu me jogasse num vulcão ativo. — Tá louca?! — Na casa da minha mãe eu não posso nem tossir alto! — Ela acha que tudo é “demônio”, tia! — Ela benze até o ventilador! — Outro dia eu espirrei e ela jogou água benta no meu olho! A tia riu. Ela adora minha dor. Eu continuei: — E SEM CONTAR que ela faz aquela sopa esquisita que parece feitiço culinário. A tia cruzou os braços. — Então cê vai morar onde? Eu respirei fundo. Engoli o resto do chocolate. — Não sei. Mas eu tenho fé. Ela levantou a sobrancelha. — Fé? Eu tirei o cupom do sutiã como quem levanta a Excalibur. — SIM! Olha esse cupom! Me deram na rua! É um sinal! A tia pegou o cupom. Leu. —Suzana, isso tá mais morto que sua dignidade. — MAS AINDA É UM SINAL, TIA! — A vida tá dizendo pra eu me mover! — Pra eu AGIR! — Pra eu correr atrás do meu destino! A tia suspirou forte demais. — Suzana… se você correr atrás do seu destino, seu destino pede medida protetiva. Eu joguei o travesseiro nela. Ela jogou de volta. E eu chorei de novo, porque sou um poço de água emocional. No fim? Deitei no sofá dela. Me enrolei no cobertor. Com chocolate na mão. Com a cara amassada. Tia Berenice ficou olhando pra mim espremida no sofá, toda amassada, chocolate na boca, cara de derrota e esperança ao mesmo tempo igual uma boneca velha com sonhos grandes demais. Ela ergueu o cupom de novo, balançando na frente do meu rosto. — Suzana… tem certeza que isso aqui é válido até 2026? A voz dela já vinha com aquele tom de quem sabe a resposta e só tá esperando eu cair no golpe da própria vida. Eu puxei o cupom da mão dela com rapidez ninja. — TIA, NÃO ENCOSTA! — ISSO É FRÁGIL! — ISSO É UM SÍMBOLO! — ISSO É MINHA RENDA FUTURA! Ela levantou uma sobrancelha. — Suzana… essa porcaria tá amarelo ovo. Se isso fosse um documento, o cartório já tinha recusado. Eu segurei o cupom contra o peito igual medalha olímpica. — Pouco importa! — Na frente tá escrito 2026. — E é ISSO que o universo quer que eu veja. — Eu enxergo além, tia. Eu sou visionária. Ela deu uma risada curta, quase doída. — Visionária com cupom vencido… aonde chegou minha família… Eu dei língua. E depois fiz biquinho. E depois voltei a chorar. — Eu tô desempregada… — Eu tô triste… — Eu tô com um chocolate quente derretendo na mão… — Eu tenho cupom do passado escrito no futuro… — E… e… A tia sentou do meu lado e fez aquele carinho no topo da minha cabeça, igual quem acalma cachorro nervoso. — Calma, menina. Eu funguei. — Tia… — O quê? — Posso dormir aqui hoje? Ela cruzou os braços. — E sua casa? — Lá tem silêncio demais. — E solidão demais. — E a geladeira parece museu de tudo que já morreu. — Eu não tô emocionalmente preparada pra isso. — E sua mãe? Eu dei um berro dramático. — TIA PELO AMOR DE DEUS NÃO FALA DESSA MULHER! — Hoje não! — Eu já tô no fundo do poço, não cava mais! Ela riu tanto que quase caiu do sofá. — Tô vendo que você tá péssima mesmo. Eu me sentei, puxei a coberta até o queixo e fiz a melhor cara de gata abandonada que eu conseguia. — Eu prometo que amanhã eu procuro emprego. — Amanhã eu viro mulher de sucesso. — Amanhã eu recomeço minha vida. — Mas por hoje… — Me deixa dormir aqui… — De preferência abraçada com uma barra de chocolate e ignorando as responsabilidades? Tia Berenice suspirou igual quem tá assinando um contrato de sofrimento. — Pode dormir. — Mas se roncar, eu jogo travesseiro na sua cara. Eu fiz joinha. — Fechado. — Mas roncar eu não ronco, tia. — Eu só respiro forte. Ela revirou os olhos. Eu estiquei as pernas no sofá, puxei mais chocolate, cobri metade do rosto com a coberta e declarei: — Tia… nada pode piorar meu dia. A tia olhou pra janela. — Não fala isso, Suzana. — A vida te ouve. — E você sabe… quando a vida te ouve… ela pensa “hum… vou f***r essa menina um pouquinho mais”. Eu arregalei os olhos. — É por isso que eu nunca tenho paz. Ela soltou: — Vai dormir, peste. Eu deitei. Fechei os olhos.
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