Miranda limpou a pia da cozinha com um paninho depois de lavar a louça usada na fabricação do pão e biscoitos daquela manhã. Abriu o registro da torneira e toda vez que fazia isso sorria consigo mesma, grata por estar num vilarejo onde a água era encanada, a mesma água limpa e potável dos diversos poços artesianos abertos por ali. Ainda que a eletricidade fosse oferecida por geradores, não podia reclamar, Malpasso era um bom lugar de se viver, principalmente por que era distante da Esfera.
Pegou o pano de prato e se pôs a secar as vasilhas, colheres, copos e pratos do escorredor. Álvares, o seu patrão, não gostava de ver a louça secando sobre a pia, dizia que dava a impressão de que a cozinha inteira estava desorganizada. Era um cara durão, falava grosso e alto, mas tinha um bom coração. Ao chegar a Malpasso, fora ele quem lhe oferecera o trabalho na padaria, como faxineira, e também o quarto nos fundos do estabelecimento. Ela tinha então direito a um salário que cobria despesas com sua comida, roupa e eventualmente algum remédio que comprava com os mercadores.
Sua vida, aos poucos, ajeitava-se no vilarejo. Não gostava de pensar no passado, doía-lhe o estômago e parecia que o ar lhe faltava, era como uma asfixia psicológica. Lembrar-se da surra que levara do marido antes de ele lhe jogar ácido no rosto, queimando seu maxilar esquerdo, parte do pescoço, deformando a sua orelha, afundava o seu peito de uma angústia absurda. Revivia cada cena, cada grito dele de raiva e o seu, de desespero. Cada minuto de tortura e dor, tanta dor que chegara a desejar a própria morte como um tipo de alívio para o que sentia. Arrastara-se pelo chão implorando, usando palavras que jamais havia pertencido ao seu vocabulário, rastejara sentindo cada golpe nas costas, detrás das pernas, nos braços, era como se ele quisesse esmagá-la no chão do mesmo modo que se fazia com os insetos.
Mas ela não era um inseto; era gente, uma mulher e esposa dele.
Depois de tudo, quando ela conseguiu ficar de joelhos, chorando, ensanguentada, ele saiu da sala do apartamento onde moravam. Tentou escapar do lugar, suas pernas simplesmente travaram e tornou a cair no chão. Arrastou-se como pôde até a porta e, com muito esforço, se pôs de pé, abriu-a e se jogou no piso do corredor. Gritou. Ninguém lhe deu atenção, a voz era de uma mulher e mulheres sempre gritam. Gritou novamente. Gritou errado. Anos depois, pensou que deveria ter gritado “Fogo!” e não “Socorro!”
Ele a encontrou, puxou-a pelos cabelos e a trouxe de volta para o apartamento. E mais uma sessão de tortura a acompanhou até o início da madrugada. Quando o marido se cansou de lhe bater, batizou-a para sua entrada no inferno, jogando-lhe ácido.
Ele próprio chamou a ambulância, não queria que ela morresse, tampouco ser responsabilizado pelo ataque. Acusou um desconhecido, inventou um agressor aos paramédicos e a polícia. Fez pose de bom marido, chorou, insistindo em pegá-la na mão.
No hospital, Miranda contou o que havia acontecido e desmaiou. A polícia o prendeu em seguida, e o seu advogado de defesa conseguiu soltá-lo.
Ela agora estava a salvo. Quando as recordações a perseguiam, obsessivas, também lembrava que estava a salvo para sempre.
Ajeitou o lenço amarrado debaixo do pescoço, ignorando a dor na coluna por ter ficado tanto tempo de pé lavando a imensa louça. Ainda faltava esfregar o chão.
Antes, porém, sentou-se na cadeira à mesa e serviu-se de um copo d’água. Respirou fundo e, com o dorso da mão, limpou o suor da testa.
Faltavam alguns minutos para o seu intervalo e então ela poderia voltar ao quarto e trocar de roupa. Usava roupas fechadas, mangas longas e saias do mesmo comprimento, às vezes, calças jeans. As camisas eram masculinas, de botões, fechados até em cima. Evitava constranger as pessoas com sua aparência, sabia que as afetava, de algum modo, a visão de um rosto “derretido” marcado por vergões profundos chocava quem o visse.
Foi até o banheiro, ao lado do quarto onde dormia, e trancou a porta atrás de si. Retirou a camisa e a saia até os tornozelos, deixando-as dobradas sobre a tampa da privada. Abriu o registro do chuveiro e a água quase morna jorrou do alto. O sol era tão intenso que aquecia o encanamento debaixo da terra.
Despiu-se por completo e entrou debaixo da torrente de água, aproveitando para lavar o cabelo loiro até os ombros.
Saiu do boxe e enrolou-se na toalha. Prendeu o cabelo molhado no alto da cabeça e secou o corpo. Vestiu-se novamente, optando agora por uma camiseta de algodão de mangas longas e um jeans clarinho. Calçou os tênis e as meias. Soltou o cabelo e voltou ao quarto.
Não tinha espelho por que evitava encarar o seu reflexo. Assim, permitia-se pensar que ainda era bonita, que era a mesma pessoa que havia ganhado dois concursos de beleza e o contrato com uma agência de modelos. Trabalharia na televisão, dissera-lhe o agente. Tinha a feição delicada, inspirava confiança, além de ter um corpo atraente e ser alta. Isso aconteceu quando ela tinha 22 anos. Agora, uma década depois, trabalhava na padaria minúscula de um vilarejo no meio do deserto.
Suspirou, resignada. Havia um ditado que dizia: “o que não tem solução, solucionado está”. Ela fizera a sua parte, sobrevivera à tentativa de assassinato.
Ouviu a batida à porta e, em seguida, a voz de Álvares:
— O Rhys veio falar com você.
Por um momento, não ligou o nome à pessoa, sabia a quem o patrão se referia, mas não atinava o assunto que pudesse relacioná-los. Afinal, Rhys era um dos fundadores do vilarejo, um dos escoltadores que raramente aparecia na padaria.
— Fale com ele no meu escritório. — disse o patrão, assim que ela alcançou o corredor que levava ao balcão de atendimento.
Encontrou-o sentado displicentemente num sofá, a perna cruzada sobre a coxa, o chapéu de vaqueiro ligeiramente abaixado na linha dos olhos, um charuto entre os dedos.
Era um homem enorme, do tipo encorpado, não apenas alto, sua presença parecia diminuir o espaço no ambiente.
— Você gosta de trabalhar aqui, Miranda?
Ela achou estranho ele saber o seu nome, uma vez que nunca haviam conversado. Sentiu-se intimidada com a pergunta tão direta.
— Sim.
— Senta aí nessa cadeira. — disse ele, indicando com um meneio de cabeça o lugar diante dele.
Sentou-se sem deixar de ajustar o lenço em torno da cabeça de modo a cobrir as cicatrizes. Juntou as mãos sobre as coxas e o fitou, interessada em descobrir o que o havia levado até ali.
— Vou direto ao ponto. — ele começou, inclinando o corpo para frente a fim de capturar totalmente a sua atenção. — Nós temos uma governanta que precisa de ajuda lá no casarão da fazenda. Falei para o Álvares que iria lhe fazer uma proposta de emprego e, por ele, tá tudo certo, o cara quer o melhor para você. Então, vou lhe dizer o que oferecemos. — ele parou, tragou o charuto e continuou: — Temos poucos funcionários e todos têm a sua casinha com quintal, jardim e tudo mais. O salário é o dobro daqui, e você vai morar no lugar mais seguro do deserto, ninguém é trouxa de invadir a Borderline. Além disso, temos cavalos, caso queira cavalgar. O casarão é grande, mas ninguém precisa limpar tudo todos os dias, dá para se revezar. Agora deixo para você pensar a respeito.
Ele se pôs de pé como se tencionasse bater em retirada.
— Eu gostaria muito de viver numa fazenda.
— Tá aqui a tua chance, menina.
Ela riu, sem jeito.
— Não sou uma menina.
— Se não usasse esse lenço, eu poderia saber melhor se é menina ou mulher. — comentou, com bom humor.
Instintivamente, ela levou as mãos ao pescoço sentindo uma vontade enorme de amarrar melhor o nó. Baixou a cabeça, fitando o piso de cimento e as botas de vaqueiro do escoltador.
— Ok. Volto amanhã para saber a sua resposta.
Viu-o atravessar o escritório caminhando como se fosse o dono do mundo. Ainda assim, continuou achando-o o mais simpático entre os escoltadores.
Apertou as mãos nervosamente. Uma ansiedade boa fazia o seu coração acelerar. Gostava do seu patrão, realmente ele era um homem bom, mas detestava trabalhar naquele cubículo e morar num quartinho deprimente.
Viver numa fazenda, ao ar livre, no descampado, pensou, sentindo-se um pouco mais animada. Não, tinha de admitir, estava feliz da vida.