Capítulo 39: Olhares que Queimam

1010 Words
Olivia Hayes A rua estava quase vazia. Um manto de neblina escorria preguiçosamente entre os imponentes prédios, engolindo os contornos da cidade e transformando o familiar em um cenário etéreo. O som dos meus saltos contra o asfalto úmido era o único que se ouvia com clareza, um eco rítmico que preenchia o silêncio e marcava o meu caminho. O resto era um murmúrio abafado pelo vento frio que sussurrava histórias indecifráveis, um silêncio denso que envolvia tudo. Tarde demais para o café da esquina ainda estar aberto, suas luzes aconchegantes já apagadas, suas cadeiras empilhadas, anunciando o fim de mais um dia. Cedo demais para o bar da rua de trás ter movimento, as portas ainda cerradas, as promessas de risadas e brindes guardadas para mais tarde. Era aquele limbo peculiar entre o fim do expediente e o início da noite, um período de transição onde o dia se despedia e a escuridão ainda não havia tomado posse total. As sombras pareciam hesitar antes de ocupar seus lugares, dançando em uma indecisão silenciosa sob a luz pálida dos postes que lutavam para perfurar a névoa. Eu me movia por aquele espaço suspenso, uma figura solitária em um palco quase deserto, onde a cidade parecia prender a respiração antes do seu próximo ato. A bolsa presa firme ao meu ombro. O casaco fechado até o pescoço. E mesmo assim, o frio era interno. Vinha do estômago, subia pelas costelas, agarrava minha garganta. Havia alguém me seguindo. Não era uma certeza racional — não no começo. Era uma intuição aguda, instintiva. Como quando você sente que uma tempestade se aproxima antes do primeiro trovão. O ar muda. O ambiente sussurra. Foi no cruzamento da Rua Augusta com a pequena viela sem saída que o barulho veio. Baixo. Preciso. Um segundo par de passos atrás de mim. Curto. Cauteloso. Como se pisasse onde eu já havia pisado. Como se quisesse ser minha sombra. Parei. Esperei. Os sons cessaram. Meus olhos varreram a rua — sem pressa, mas com a adrenalina fervendo sob a pele. Tudo parecia... igual. Nenhum vulto visível. Nenhuma presença clara. Mas aquele frio que escorria pelas minhas costas dizia o contrário. Comecei a andar de novo. Rápido. Direcionada. Segundos depois, mais passos. Olhei por cima do ombro, disfarçadamente. E então, por entre os carros estacionados e a iluminação intermitente de um poste que piscava acima da farmácia, vi uma figura. Feminina. Encapuzada. E do outro lado da rua. Ela não caminhava diretamente atrás de mim — o que tornava tudo ainda pior. Como se estivesse contornando, esperando. Observando. Parei de novo. Dessa vez, virei por completo. A figura atravessou a rua de cabeça baixa, as mãos nos bolsos do moletom cinza, passos lentos, como se não tivesse pressa... mas também sem intenção de se afastar por completo. Atravessou, dobrou na esquina e sumiu. Mas antes disso… olhou para mim. Foi um relance. Um momento tão curto que talvez eu nem devesse ter percebido. Mas percebi. Os olhos por baixo do capuz. O contorno da boca. O jeito como o rosto parecia… familiar. Como se eu já tivesse visto aquela mulher antes. Em algum lugar. Talvez nas pastas do Alessandro. Talvez naquelas fotos antigas em preto e branco digitalizadas. Ou talvez em um espelho distorcido pelo tempo. Meu peito arfou. Apertei o celular na mão. Liguei para Alessandro. Chamou. Uma vez. Duas. Três. Nada. O som dos passos já não existia. Mas o eco deles martelava no meu crânio. Apressei o passo, praticamente correndo até o prédio onde morava. As mãos trêmulas m*l encontraram a chave no fundo da bolsa. Quando finalmente a porta se abriu e o porteiro me cumprimentou com um “boa noite”, minha voz não saiu. Apenas assenti com a cabeça e entrei no elevador. No reflexo espelhado da parede, vi meu próprio rosto: pálido, os olhos dilatados, a expressão dura de alguém tentando esconder o medo atrás de racionalidade. Mas não adiantava. Aquela mulher me conhecia. Ou me observava há algum tempo. E o que mais me apavorava… era que seu rosto me lembrava alguém. Alguém do passado de Alessandro. Alguém que eu não conhecia, mas de quem já tinha ouvido sussurros. Alguém chamada Liandra. A noite parecia não passar. Tentei tomar um banho quente. Tentei me distrair com música. Até pensei em reler um contrato pendente da empresa. Mas a imagem da mulher do capuz cinza estava gravada em minha mente como uma tatuagem à força. Quando Alessandro finalmente respondeu com uma mensagem curta — “Estou em reunião. Te ligo depois.” — meu estômago virou. Depois? Meu mundo estava virando de cabeça para baixo. E ele me ligaria “depois”? Me deitei com o roupão ainda úmido, os cabelos pingando na fronha, e os olhos abertos no escuro. A sensação de ser observada persistia. Como se aquela mulher ainda estivesse ali, atrás da janela, à distância, apenas esperando que eu piscasse para reaparecer. Na madrugada, acordei com um barulho leve vindo da sala. Não era um som comum. Era como… papel sendo arrastado. Fui até lá. O coração martelando. Não acendi a luz. A penumbra da rua invadia pelas frestas da cortina. E vi. Um envelope no chão, deslizado por debaixo da porta. O peguei com mãos trêmulas. Não havia remetente. Dentro, apenas uma foto. Preto e branco. Mostrava Alessandro — muito mais jovem — e uma mulher. A mesma mulher do capuz. Ela sorria para ele. E ele… sorria de volta, como nunca sorrira para mim. Voltei ao quarto. Fechei todas as trancas. Me encostei contra a porta. A foto tremia entre meus dedos. Quem era ela? Por que agora? E, principalmente… por que me seguia? E o pior: por que Alessandro nunca mencionou esse tipo de passado? *** No dia seguinte, na empresa, entrei na sala de Alessandro antes mesmo da reunião começar. Meus olhos queimavam. Minha garganta estava trancada. Ele ergueu o olhar do tablet, surpreso com minha entrada repentina. — Olivia? — Precisamos conversar. Fechei a porta. E joguei a foto sobre a mesa.
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