Olivia Hayes
O grito sufocado da lembrança rasgou meu sono às três da manhã. Liandra—o rosto ruivo, o sorriso triste—desfilava pelos meus sonhos como um espectro acusador, sussurrando confissões inaudíveis. A escuridão no quarto de Alessandro parecia se fechar em torno de mim, o eco dos meus próprios gemidos tornando-se uma trilha de pavor.
Levantei-me num sobressalto, o coração martelando no peito. Vesti apenas o roupão de seda que sobrara no cabide, esquecido após uma tarde de descanso apressado, e saí do quarto. Cada passo em direção à porta do apartamento era uma tentativa de escapar dos fantasmas que me perseguiam.
A lâmpada do corredor iluminava os quadros minimalistas, mas eu não via arte ali — apenas sombras de histórias que não eram minhas. A mão trêmula girou a maçaneta, e eu deixei o silêncio da torre para trás, descendo as escadas discretamente até chegar ao térreo. O saguão vazio me recebeu sob o brilho lânguido dos lustres. Peguei o elevador, apertando o botão do segundo andar, onde sabia que Arthur dormia.
O corredor de carpete amortecia meus passos. Toquei na porta dele com o punho, hesitei, e finalmente bata de leve. Passaram-se segundos que pareciam horas até ouvir o som seco de uma camurça de slipper aproximando-se.
— Olivia? — A voz sonolenta de Arthur soou por debaixo da porta. — O que faz aqui a essa hora?
— Não… consigo dormir — respondi, esforçando-me para não tremer. — Preciso falar com você.
A porta abriu. Arthur estava de pijama de linho e um roupão leve; o cabelo bagunçado, os olhos inchados. Convidou-me sem perguntar, fechou a porta e trancou-a. Sentou-se na poltrona junto à janela, A luz pálida da rua entrava pelos cortinados.
— Sente-se — ofereceu, estendendo a mão para que eu fizesse companhia.
Me acomodei no sofá, tentando conter a respiração. O conforto do tecido abafou parte do frio, mas eu ainda sentia o coração despedaçado.
— Tive outro pesadelo com Liandra — confessei, a voz falhando. — Ela… ela me culpa por ter me aproximado de Alessandro. Diz que vou repetir o mesmo erro.
Arthur inclinou-se para frente, as sobrancelhas franzidas em compaixão.
— Liandra morreu por falhas de outros, não suas — disse, segurando minha mão. — Você não é ela. E Alessandro te ama de modo diferente.
As palavras dele me aqueceram momentaneamente, mas a sombra de minha culpa persistia.
— Eu sei… Mas a lembrança do incêndio, da negligência, do silêncio dele… tudo volta em mim. Sinto-me dividida entre o medo do passado e a esperança do presente.
Arthur fez um gesto terno, afastando o cabelo dos meus olhos.
— Você não está sozinha. — A voz dele se quebrou num tom quase materno. — Eu estou aqui, se precisar de um ombro.
Encarei o rosto dele, tão próximo, e senti uma inquietação inesperada. Arthur representava a empatia simples, o cuidado sem exigências. Mas meu compromisso com Alessandro, o homem que prometera me proteger com possessividade, pesava como correntes invisíveis.
— Obrigada — respondi, tentando sorrir. Mas o peso no meu peito não se dissipou. — Eu realmente aprecio isso.
Ele sorriu com tristeza, e eu quis ficar ali, envolvida naquele abraço sem medo de acordar para ordens, horários e protocolos. Mas, ao fechar os olhos um instante, imaginei Alessandro. Sua voz, grave e autoritária, dizendo: “Saia daqui. Você pertence a mim.” A culpa corta tão fundo quanto a lujúria.
Respirei fundo e levantei-me.
— Preciso ir — murmurei, abraçando-o rapidamente. — Alessandro deve estar… preocupado.
Arthur recuou, o corpo desabando na poltrona.
— Tenha cuidado — disse, tocando meu braço. — E que seus sonhos não te abandonem tanto quanto a mim agora.
Assenti e segui de volta ao elevador. Cada andar parecia uma eternidade, alfinetadas de melancolia cortando meu coração por ter deixado ali um pedaço de paz.
Quando entrei no apartamento de Alessandro, a escuridão reinava. Corri até o quarto, empurrei a porta e o encontrei sentado na cama, olhando para o nada. O terno dos dias anteriores fora trocado por um roupão escuro, a gravata pendurada num cabide. A expressão dele se iluminou com alívio ao me ver.
— Onde esteve? — perguntou, a voz baixa, porém firme. — Meu celular não parava de tocar seu nome.
— Fui… até a casa de Arthur. Não conseguia dormir. — Sorri triste, deslizando para junto dele.
— Arthur? — o tom dele misturou surpresa e ciúme contido. — Por quê?
Tentei medir as palavras, mas o turbilhão de emoção me venceu:
— Ele me ajudou a acalmar a mente. Arthur é… um amigo, Alexandre.
Ele ergueu um cenho sombrio.
— Precisa conversar sobre tudo comigo primeiro — disse, usando o pronome possessivo que me fazia estremecer. — Você pertence a mim.
A voz dele carregava o humor n***o de um senhor que se gaba de sua posse. Atraída ao magnetismo de seu corpo, senti o rosto corar.
— Eu sei — respondi, a respiração acelerada. — Mas… às vezes, o medo me consome.
Ele se aproximou, erguendo o queixo, e acariciou meu rosto:
— E eu sou seu escudo contra esse medo.
A ternura naqueles dedos arrancou a última resistência. Deixei-me cair nos braços dele, a escuridão do medo substituída pela luz voraz de sua posse. Ele beijou-me num gesto tão urgente quanto possessivo, como se cada lábio fosse um lembrete de que eu era sua — e só dele.
No entanto, enquanto me perdia na alcova proibida, a sensação de ser vigiada não me abandonava. Ainda sentia o olhar de Sergei, invisível, observando-me decidir entre o calor de dois homens. E, no fundo, eu sabia que, apesar de estar segura nos braços de Alessandro, havia uma sombra fatal que aguardava o momento certo para nos assombrar de novo.
Por fim, adormeci, entre cacos de sonhos e promessas de proteção. Mas, ao fechar os olhos, ouvi o sussurro gélido: “Estou sempre observando.” E a noite tornou-se ainda mais longa, tão densa quanto as histórias não contadas de Liandra.