O amanhecer chegou sem aviso. A luz cortava pelas frestas das cortinas quando Amira ouviu a porta destrancar. O som do ferro contra ferro soou como sentença.
A mesma mulher de uniforme entrou em silêncio.
— O senhor Lorenzo quer você no térreo em quinze minutos.
Amira permaneceu sentada, imóvel, tentando entender se ainda sonhava.
— E se eu não for? — perguntou, sem erguer a cabeça.
— Então ele sobe — respondeu a mulher. — E garanto que é pior.
As mãos de Amira tremiam quando vestiu o robe deixado sobre a cama. Cada movimento era pesado. Descer aquelas escadas era caminhar para o desconhecido.
O corredor estava silencioso, mas ela sentia os olhos das câmeras a acompanhando. No salão principal, Lorenzo a esperava.
De pé, ao lado de uma mesa comprida, ele lia alguns papéis. O terno cinza claro contrastava com a pele bronzeada e as tatuagens que escapavam pelo colarinho.
Sem levantar o olhar, disse:
— Demorou.
Amira manteve distância. — Não sabia que era sua prisioneira com horário marcado.
— Não sabia? — Ele ergueu os olhos, perigosamente calmos. — Achei que as grades nas janelas já tivessem explicado.
Ela cruzou os braços. — O que quer de mim?
— Que aprenda a se calar. — Ele deixou os papéis sobre a mesa. — E que entenda como funcionam as regras nesta casa.
Amira se forçou a não recuar. — E se eu recusar?
— A dor ensina rápido.
As palavras o cortavam com precisão cirúrgica. Não havia ameaça gritante, apenas constatação.
Ele fez um gesto, e uma empregada entrou com uma bandeja de café e frutas.
— Coma. — ordenou. — Preciso que esteja viva o bastante para me odiar.
Ela o olhou com desdém. — Você se alimenta do sofrimento dos outros?
— Do controle. — Ele bebeu um gole do café. — O sofrimento é apenas consequência.
Amira respirou fundo, lutando para não explodir. — Então é isso? Vai me manter aqui até o fim da vida?
Lorenzo inclinou o rosto, analisando-a. — Não sou paciente o bastante pra tanto. Mas, por enquanto, gosto da ideia.
O silêncio pesou. Amira percebeu que cada resposta dele era um teste. Ele a provocava esperando que perdesse o equilíbrio.
Mas ela decidiu jogar diferente.
Pegou uma fruta da bandeja e começou a comê-la lentamente, mantendo o olhar fixo nele.
Lorenzo observava cada gesto, o maxilar tenso.
— Está tentando me desafiar? — perguntou.
— Não. Estou apenas mostrando que ainda sei escolher o que quero.
O canto da boca dele se curvou levemente. — Cuidado com o que diz, Amira. As escolhas cobram caro.
— Já paguei o suficiente.
Ele se aproximou, encurtando a distância. O perfume dele invadiu o ar.
— Ainda não.
Os olhos dele eram uma tempestade contida. Amira percebeu a contradição que pulsava ali — o homem que a odiava, mas que também lutava contra algo que o corroía por dentro.
— Por que me olha assim? — ela perguntou, sem conseguir conter.
Lorenzo respondeu com calma:
— Porque quero entender o que faz alguém ainda ter coragem de me olhar nos olhos depois de tudo.
A respiração dela falhou. O silêncio entre os dois foi quebrado apenas pelo tique-taque distante do relógio na parede.
Ele se afastou de repente, como se rompesse uma linha invisível.
— A partir de hoje, vai ajudar na biblioteca. — anunciou. — Vai manter o espaço limpo, catalogar livros e ficar longe das portas externas.
Amira o seguiu com o olhar. — Está me transformando em empregada?
— Em sobrevivente. — Ele acendeu um cigarro. — E lembre-se: o corredor do oeste é proibido.
Ela quis perguntar o motivo, mas o tom dele bastou para dissuadi-la.
— O que acontece se eu for até lá? — provocou.
— Descobre o que significa punição. — A resposta veio rápida, fria.
Lorenzo virou-se para sair, mas parou.
— Vista algo decente da próxima vez. — murmurou. — Não gosto que minha prisioneira pareça frágil.
Ele saiu, deixando-a entre a raiva e o espanto.
Sozinha, Amira observou o salão. Tudo era luxuoso, mas havia algo mórbido naquela casa — um silêncio que gritava. Caminhou até uma das janelas e tocou o vidro frio.
Lá fora, o jardim se estendia até perder de vista, cercado por muros altos.
“Cárcere dourado”, pensou novamente. Tinha tudo, menos o que mais desejava: liberdade.
O dia passou devagar. Na biblioteca, o cheiro de papel e madeira antiga misturava-se à sensação de solidão. Havia centenas de livros, todos organizados com precisão.
Ela passou os dedos pelos títulos, tentando se distrair.
Entre eles, encontrou um exemplar gasto, com anotações à mão.
“Matteo Valente”, lia-se na página de rosto. O mesmo sobrenome de Lorenzo.
O coração acelerou. Matteo… o irmão morto.
Amira folheou as páginas e viu trechos rabiscados com caligrafia firme. Eram frases sobre lealdade, traição e dor.
De repente, o som de passos a fez fechar o livro. Lorenzo estava parado à porta.
— Curiosa demais — disse ele, encostando-se ao batente. — Eu avisei sobre o corredor errado, não sobre os livros. Mas cuidado, Amira. Algumas histórias não foram feitas pra você ler.
Ela o encarou, desafiadora. — E se eu quiser entender?
— Então vai se machucar. — O olhar dele endureceu. — E não sou bom em curar feridas.
Amira passou o resto da tarde sem coragem de abrir novamente o livro de Matteo. Cada frase que havia lido parecia um aviso — um lembrete de que Lorenzo também tinha sido moldado por perdas.
Mas era difícil sentir pena de um homem que transformava o sofrimento em tirania.
Quando anoiteceu, as luzes do casarão ganharam tons amarelados, refletindo nas paredes de mármore. Tudo ali parecia frio demais para ser um lar.
Amira tentava dormir quando ouviu o som da chave girando. Lorenzo entrou sem bater.
Ela se ergueu, assustada. — O que faz aqui?
— A pergunta certa seria: o que fez hoje à tarde? — respondeu ele, fechando a porta atrás de si. O olhar era afiado. — Tocou no que não devia, não foi?
Ela engoliu em seco. — Só li algumas páginas. Não imaginei que um livro fosse crime.
Ele caminhou devagar até ela. — Quando avisei pra não cruzar limites, não estava brincando. Cada canto desta casa guarda uma parte que não quero reviver. Você mexeu num fantasma.
— E o que vai fazer agora? — A voz dela tremia, mas a provocação ainda estava ali. — Me punir por curiosidade?
O silêncio dele foi mais assustador do que qualquer ameaça. Lorenzo parou diante dela, tão perto que ela pôde sentir o cheiro de tabaco e couro.
— Não vou encostar em você. — disse enfim. — Mas quero que entenda o que significa estar sob minhas regras.
Ele pegou o livro sobre a mesa, abriu a página que ela havia marcado e o atirou no fogo da lareira. As chamas engoliram as letras com um estalo seco.
Amira deu um passo à frente, instintiva. — Está louco? Isso era lembrança do seu irmão!
Lorenzo a segurou pelo braço, com firmeza, mas sem violência. — E é exatamente por isso que queimei. Não quero nada dele aqui. Nem o nome.
Os olhos dela buscaram o rosto dele, e o que viu a fez vacilar: havia dor escondida sob aquela fúria. Um tipo de sofrimento que ele não sabia disfarçar.
— O que Matteo fez pra te ferir tanto? — perguntou, quase num sussurro.
Ele a soltou bruscamente, como se as palavras dela o tivessem queimado também. — Vá dormir, Amira. Antes que eu esqueça que ainda tenho limites.
Ela o observou sair, o som da porta ecoando como um tapa.
Sozinha, aproximou-se da lareira e viu o resto do papel se transformar em cinzas. “Cárcere dourado”, repetiu para si mesma. Não havia tranca capaz de prender uma mente que começava a entender o inimigo.
Naquela noite, Amira sonhou com o passado. Reviveu o dia em que foi levada, a força dos braços que a empurraram para dentro do carro, o som abafado da respiração.
Acordou com o coração disparado e o suor frio.
Lá fora, a madrugada ainda se arrastava. Foi até a janela e observou as luzes distantes da cidade. Pensou em fugir. Em gritar. Mas a lembrança dos muros altos e dos seguranças armados dissolveu qualquer plano.
A porta abriu-se lentamente. Lorenzo estava ali outra vez, mas dessa vez sem terno — apenas uma camisa preta, o rosto cansado.
— Não consegue dormir? — perguntou.
Amira o olhou sem responder.
— É curioso — ele continuou. — Você me provoca, me desafia, e ainda assim teme o escuro.
Ela cerrou os punhos. — O que quer? Que eu agradeça por ter me trancado aqui?
Lorenzo respirou fundo, aproximando-se da janela. — Quero silêncio. Só isso.
— Isso você já tem de sobra. — respondeu ela, amarga. — A casa inteira é feita dele.
Ele virou o rosto, e por um breve instante o olhar suavizou.
— Você não entende o tipo de guerra que existe dentro de mim, Amira.
Ela cruzou os braços. — E acha que é o único que sangra por dentro?
O silêncio que se seguiu foi denso. Lorenzo parecia querer dizer algo, mas se conteve.
Em vez disso, foi até a porta e parou.
— Amanhã, depois do café, venha até o jardim. Há algo que preciso mostrar. — E saiu.
Amira ficou sem saber se aquilo era convite ou armadilha.
Quando o sol nasceu, ela vestiu um casaco leve e desceu. Lorenzo a esperava ao lado de uma estufa de vidro, cercada por flores que contrastavam com o frio da manhã.
— Surpresa. — disse ele, abrindo a porta para ela entrar. — Pensei que precisasse de algo vivo perto.
Ela o olhou, desconfiada. — Isso é algum tipo de remorso?
Lorenzo passou os dedos por uma rosa branca. — Remorso não me serve. Mas talvez… curiosidade. Quero entender por que você não quebrou ainda.
— Porque não sou o brinquedo que você pensa.
— Não. — Ele a fitou intensamente. — É bem pior. Você me obriga a lembrar que ainda há humanidade aqui dentro.
A confissão o surpreendeu tanto quanto a ela. Amira desviou o olhar, incapaz de sustentar o peso daquelas palavras.
— Não quero ser sua redenção. — murmurou.
— Ótimo. — ele respondeu. — Porque eu não sei ser salvo.
Ela começou a andar entre as flores, tentando esconder o tremor das mãos. A proximidade entre eles tornava tudo mais confuso.
O som de passos atrás dela a fez parar. Lorenzo a observava com uma expressão que misturava raiva e desejo contido.
— Por que continua me olhando desse jeito? — perguntou, exasperada.
Ele respondeu sem hesitar:
— Porque você me lembra tudo que perdi. E tudo que ainda quero destruir.
Ela engoliu em seco. — Então me destrua de uma vez.
Lorenzo deu um passo à frente, segurando-a pelo queixo. O toque foi firme, mas não c***l. — Não. — disse, a voz rouca. — Destruir você seria fácil demais.
Os olhos dele estavam tão próximos que Amira sentiu o coração falhar. Por um instante, o tempo pareceu parar. Mas ele se afastou, respirando fundo, como se lutasse contra si mesmo.
— Volte pra dentro. — ordenou. — Antes que eu mude de ideia.
Amira o obedeceu, não por medo, mas porque viu algo novo — o começo de uma rachadura naquele homem que se dizia de pedra.
Enquanto caminhava de volta à mansão, sentiu pela primeira vez uma coisa estranha: compaixão.
Lorenzo permaneceu sozinho entre as flores. O vento frio soprava, e ele olhou para o ponto onde Amira estivera há pouco.
Fechou os olhos e, num sussurro, confessou ao nada:
— Por que justo você?