Cartas engarrafadas (Vol.2)

Pacto com a verdade

Alguns dias em Salerno com a família Bianchi serviram como uma desintoxicação para mim. Dormir e acordar sem me sentir vigiada e sem ter que pensar em todos os meus fracassos foi de fato importante para elevar o meu ânimo, porém mesmo estando mais leve eu precisava agir e procurar meios para garantir minha permanência e sobrevivência na Itália.

- Vejo que está pensativa.

A Lauren sentou ao meu lado na cama quando nos preparávamos para dormir.

- Estou preocupada. Tenho que procurar um emprego.

- Você trouxe pouco dinheiro?

- Estou com o suficiente para algumas semanas e deixei mais um pouco com a Alice. Acredito que consigo me manter por até quatro meses se eu for muito cautelosa e encontrar um lugar que não seja muito caro para morar. Por isso estou preocupada, não posso perder tempo.

Afirmei com sinceridade.

- Quero muito ajudar você Joana, mas antes eu preciso que façamos um pacto.

 - Pacto? Como assim Lauren?

Questionei na defensiva.

- Quero confiar em você sem medo e pra isso preciso saber toda verdade a seu respeito.

- Está desconfiando de mim?

Perguntei preocupada e ela sorriu.

- Valorizo a sinceridade e sou leal aos meus amigos. Eu estou me afeiçoando a você, sinto que é uma pessoa de bom coração. O problema é que você é misteriosa e isso me deixa curiosa. Eu não vou esconder nada de você e em troca proponho que não esconda nada de mim.

Sorri.

- Até agora você não me perguntou nada que eu não tenha respondido.

Defendi-me.

- Não é verdade. Você é evasiva.

Sorri sem graça.

- É justo que queira saber mais a meu respeito. Eu concordo em fazer esse pacto com você.

- Comece me dizendo o que tem por trás dessa sua mudança para a Itália.

Deitei-me na cama como se estivesse no divã da Dra. Marlene.

- A verdade é que eu fugi de casa. Resolvi abrir mão do legado da minha família e me separei deles, especialmente do meu pai.

- Você fugiu?

- Sim. Planejei deixar o país e não contei para ninguém. Deixei uma carta de divórcio familiar. Não sou mais a Joana Blanc, embora minha dupla cidadania seja uma vantagem conferida ao sobrenome que eu tenho no meu registro de nascimento.

 - Seu problema é com o seu pai?

- Eu não sou quem ele esperava que eu fosse. Sou a filha rebelde e irresponsável. Estava sujando o sobrenome e o legado da família. Antes de deixar o Brasil ouvi algumas conversas e o meu pai praticamente transformou nosso sobrenome em uma marca, logo uma filha difícil de controlar se tornou um problema ainda maior para ele.

- Porque não tentou resolver o problema com seu pai no lugar de fugir?

Olhei para ela e pensei antes de responder.

- Não sinto mais vontade de me esforçar pra resolver os problemas que me meti. Tudo estava me levando ao limite. Eu sei que errei muito e com várias pessoas, por pouco não matei uma moça que teve o azar de cruzar o meu caminho em uma noite louca, você tem noção disso?

- Quê? O que aconteceu?

Questionou espantada.

- Eu dirigi depois de beber, sofri um acidente a moça que estava comigo se machucou de verdade. Ainda não sei como ela vai ficar. Não consigo pensar nisso sem sentir muito ódio da pessoa que me tornei. Um ano atrás eu tinha a ilusão de que conseguia cuidar da minha vida e que estava dando o meu melhor em tudo, mas eu me enganei completamente.

- Nunca vai resolver sua vida fugindo dos problemas.

Ela pontuou.

- Sei que não. Posso ter exagerado ao decidir fugir do país, mas estou me sentindo bem longe de casa e perto de outras pessoas. Posso começar uma vida nova aqui e não vou voltar atrás.

 - Você não deixou pessoas importantes para trás?

Indagou me fazendo calar novamente.

- Deixei sim, mas elas vão ficar muito melhor sem me ter por perto. Lauren eu tentei me matar. Eu nunca tinha pensado em fazer algo assim, aconteceu muito rápido. Sinceramente, fugir e melhor que sumir de uma vez e uma hora as pessoas que se importam comigo, vão entender que deixar tudo para trás não foi exclusivamente um ato de covardia.

- Jamais faria o que você fez, porém não julgo sua escolha. Enquanto a moça que você ama?

Questionou me olhando nos olhos.

- Eu sei o que a Alice falou pra você, mas esqueça isso.

Pedi.

- Tudo bem se não quer falar sobre isso agora.

- Eu não tenho o que falar. Tudo que eu posso dizer é que pretendo seguir com a minha vida do zero. Tenho que arrumar um trabalho, um lugar pra morar e o resto não sei. No fundo tenho esperança de que a viver dias melhores a partir de agora.

- Vou ajudá-la Joana. Tenho um sofá muito confortável no meu apartamento em Nápoles. Você pode passar um tempo comigo se quiser. Também vou ver se tem algum serviço temporário pra você na gravadora. Talvez não pague um bom valor, mas assim terá tempo de procurar um emprego mais adequado.

A garantia do apoio dela me fez respirar aliviada.

- Eu aceito o que vier. Obrigada Lauren, de verdade!

Desabafar com ela livrou-me de um peso e me fez perceber a importância de ter uma amiga em quem eu pudesse confiar, porque começar uma jornada sozinha não seria fácil e ter ao menos uma aliada faria toda diferença para mim.

- Descanse despreocupada Joana. Você não está sozinha. Boa noite!

Ela se despediu beijando meu rosto e eu me virei para dormir.

...

Andei pelo colégio indo em direção a cantina e encontrei com a Nanda.

Sorrindo ela se aproximou para me abraçar. Demos um abraço demorado.

- Vamos pra sala juntas.

Ela disse pegando minha mão.

- Temos que comemorar.

Afirmei sorrindo e a puxando para perto.

- Quer fugir comigo hoje?

Propus e ela não respondeu com palavras, mas sim com seu sorriso mais lindo.

...

Despertei com uma saudade dolorosa e lembrei que no dia seguinte era aniversário dela.

- Desculpa. Acordei você?

Perguntou a Lauren que estava mexendo em umas bolsas.

- Você ainda não dormiu?

Questionei olhando para ela que sorriu.

- Estou acelerada demais para dormir.

- Você bebe muito café.

- Eu queria gastar minha energia com sexo, mas você me rejeitou.

Disse me provocando.

- Aprendi que quando o sexo entra por uma porta a amizade sai por outra.

Afirmei a encarando.

- Penso diferente de você Joana. Eu prefiro f********o com quem tenho um vínculo especial.

Declarou sorridente.

- A sua perspectiva é interessante, mas a minha experiência me faz pensar diferente.

Admiti.

- Cada pessoa que entrar na sua vida vai trazer novas experiências. Você vai aprender muito se estiver aberta. Sinceramente Joana, o que importa é a honestidade. Seja honesta com você e com as pessoas e qualquer relacionamento que você tenha vai ser positivo.

Aconselhou sabiamente.

- Tenho que aprender um pouco sobre honestidade em relação às pessoas, principalmente depois do ano anterior. Respeitando o pacto que fizemos, eu não me orgulho em falar que fui maliciosa e covarde nos últimos meses.

- Quando você enxerga a bagunça está a um passo de arrumar tudo.

- Eu sou a bagunça Lauren.

Ela riu.

- Você precisa de tempo eu vejo isso.

Disse passando a mão nos meus cabelos.

- Pode contar comigo pra arrumar a casa.

Ela disse apontando para meu coração.

- Essa casa aqui também está bem desorganizada.

Apontei para a minha cabeça.

- Tudo tem seu tempo. Consegue ser paciente?

Dei risada.

- Estou tentando.

Declarei rindo.

- Tem mais alguma coisa que você quer falar sobre essa sua bagunça?

Ela pareceu sentir que eu não estava bem.

- Amanhã é aniversário da Fernanda. A minha amiga e da Alice. E há um ano nós duas passamos o dia dela de um jeito íntimo em um final de semana muito gostoso. Com a Nanda era sempre assim, tínhamos um carinho especial nos momentos que estávamos sozinhas.

- Por isso disse que quando o sexo entra por uma porta a amizade sai por outra.

Ela concluiu.

- A Alice certamente comentou com você sobre nós duas.

Ela riu.

- Sim ela comentou. Porém, não estava familiarizada com todas vocês para entender todo contexto da situação. É a Fernanda quem você ama?

Sorri por um segundo e logo fiquei triste.

- A Fernanda é uma pessoa especial na minha vida. Ela conseguiu me perdoar e dizer que me ama mesmo depois que eu a magoei. A Nanda é capaz de mudar os planos da vida dela pra ficar comigo e eu nunca fiz nada para merecê-la. O melhor que faço por ela é ficar distante.

Declarei sentindo um nó na garganta e um aperto no peito.

- Você não pensa que a Fernanda é quem devia escolher o que é melhor para ela?

- Toda vez que eu machuco alguém é horrível, mas quando machuco a Fernanda é muito pior. Não posso ficar perto dela sem antes aprender a lidar com os meus sentimentos.

- Você parece realmente confusa, mas está visível que ama sua amiga.

Sorri com tristeza.

- Tem razão eu amo.

- Falando desse jeito parece que isso é algo r**m.

Disse chamando minha atenção.

- No momento é como veneno pra mim. Eu não como explicar melhor.

- Não tem que explicar. Só saiba que pode conversar comigo sobre o que sente que eu não vou julgar suas palavras Joana. Você tem muita bagunça pra organizar.

Sorri para ela que foi muito sensível ao me ouvir.

- Preciso fazer uma coisa antes de dormir.

- Fique á vontade. Vou assistir a um filme pra ver se fico com sono.

Ela disse pegando uma manta antes de sair do quarto e me deixar sozinha.

Decidi escrever uma carta para a Nanda. Uma carta que eu não pretendia enviar.

Itália, 05 de fevereiro.

Oi Fernanda, espero que esta carta chegue a suas mãos em boa hora.

Pra começar eu gostaria de dizer que sinto muito por minha covardia. Sim, eu sei que fui covarde com você. Abri mão da sua companhia e do seu amor por medo de me comprometer e acabar ferindo seus sentimentos. Por fim acabei ferindo você do mesmo jeito ou até mais, agora fico com a sensação de que abri mão de uma parte importante da minha vida. Eu abri mão de você; abri mão do que sou ao seu lado e principalmente de ser a pessoa que só você consegue enxergar em mim. Você sempre me enxergou por uma perspectiva amorosa. Por outro lado a minha percepção é a de que nada em mim é capaz de merecer alguém como você.

Desde que nos beijamos a primeira vez no celeiro, eu senti o meu coração bater de um jeito diferente. Por um segundo eu pensei que isso aconteceria quando eu beijasse outras garotas, qualquer garota, mas com o tempo eu percebi que isso só acontecia quando os seus lábios tocavam os meus e quando nossos corpos se abraçavam com i********e. Senti que havia algo diferente e especial entre nós duas e ainda que eu não tenha admitido isso me deixou com medo; medo de explorar sentimentos em mim, com os quais nunca havia lidado; medo de me prender cedo demais; medo de errar com você e de lhe causar mágoas difíceis de esquecer.

Você é maravilhosa Fernanda. É realmente uma menina linda, que tem um sorriso perfeito, um olhar meigo. Você é coerente, inteligente, sensível. Seu único defeito é me amar. Eu percebi quando acordei na cama do hospital, após tentar colocar um fim na minha vida, e você estava lá, chorando, declarando seu amor por mim, se mostrando preocupada, triste, magoada e sem uma gota de orgulho. Você simplesmente não tem um peso e uma medida quando o assunto diz respeito ao amor que me dedica. Sinto que você seria capaz de abrir mão de qualquer coisa, inclusive das mais importantes, pra ficar comigo. E eu não mereço tanto esforço da sua parte, ninguém merece ser o seu mundo Fernanda, você tem que ser o seu mundo. Só você!

Sinto muito ter magoado seus sentimentos; sinto não ter olhado nos seus olhos e declarado o quanto te amo. Eu sinto esse amor doer em mim agora. E sei que vou sentir por muito tempo, mas eu prefiro sofrer do quê fazer você sofrer. Cansei de atrapalhar a sua vida e confundir seus sentimentos. O que eu espero agora e que viva a sua vida, que siga com seus planos de cuidar da fazenda dos seus avós e de estudar para ser uma engenheira agrônoma. Espero que no momento certo possamos nos encontrar novamente, conversar e quem sabe bebermos um vinho juntas. Eu vou torcer que o tempo não mude a sua capacidade de compreensão, que você consiga me perdoar por tê-la expulsado da minha vida e que de alguma forma possamos concordar que ficarmos distantes foi importante para nós duas.

Amanhã é dia 06 de fevereiro, seu aniversário. Esse ano eu não tenho um presente pra você loirinha. Eu não vou beijar e abraçar, ou tocar você. Não vou ligar e lhe desejar parabéns. Sinto muito por isso também, mas ouvir sua voz agora me faria ir ao fundo do poço outra vez. Sei que estou fazendo uma escolha egoísta, não me leve a m*l, mas nesse momento não sou a pessoa mais forte e corajosa do mundo, no entanto pretendo ser algum dia.

Vou me despedir por aqui, mas não pense que essa carta resume o que eu sinto por você. Porque mesmo um simples resumo, caberia em um livro com mil páginas.

Atenciosamente: Joana B.