Ane
Quando o carro estacionou em frente à mansão, meu estômago revirou. A casa era imensa, fria demais por fora, como um castelo que tentava assustar qualquer intruso.
Mas antes que eu pudesse dar mais um passo, a porta da entrada se abriu com um rangido suave e Vittoria surgiu no batente, sorridente e com os braços cruzados, como se estivesse me esperando.
— Achei que você nunca mais ia sair daquela faculdade — brincou. — Vem, vamos ao shopping. Preciso da sua ajuda urgente!
Fiquei parada por um segundo, surpresa.
— Vittoria, eu tenho outra prova em dois dias. Preciso estudar...
Ela revirou os olhos, com o sorriso ainda no rosto.
— Vai ser rápido, prometo! Minha mãe está na Grécia e não pode me ajudar a escolher um vestido. Preciso de companhia. Vai ser só uma volta rápida. Uma horinha. Duas, no máximo. — Ela juntou as mãos como quem implora. — Por favor?
Suspirei, derrotada pelo entusiasmo dela.
— Tudo bem… mas você vai me dever um café.
— Fechado! — ela sorriu, quase pulando.
Enquanto subia para o quarto, parei no topo da escada e perguntei, curiosa:
— Sua mãe está na Grécia?
O sorriso de Vittoria vacilou um pouco.
— Sim... às vezes ela vai pra casa da tia Ana, em Atenas. Fica lá por meses. O casamento dos meus pais sempre foi... complicado.
Desci alguns degraus, me apoiando no corrimão.
— E como é a relação de vocês com ela?
— Distante. Muito. — A expressão de Vittoria ficou mais séria, quase melancólica. — Sebastian não se dá bem com ela. Nunca se deu. Ela nunca quis ser mãe de verdade, sabe? Quem criou a gente foi a Nana, nossa governanta. É ela quem a gente considera de verdade como... família.
— E ela está aqui?
— Não, saiu de folga essa semana. Mas quando ela voltar, faço questão de te apresentar. Você vai amar a Nana.
Assenti, tocada pela franqueza dela.
— Vou subir, trocar de roupa. Me dá cinco minutos.
— Te espero aqui.
Subi com passos leves. Quando entrei no quarto, joguei a bolsa sobre a cama, tirei de dentro um vestido simples de alças finas, cor areia, e um conjunto de lingerie branco. Era um dos poucos que consegui trazer comigo.
Fiz um banho rápido, prendi o cabelo em um coque frouxo e calcei um dos meus poucos saltos — um scarpin nude que usava em apresentações da faculdade.
Me olhei no espelho. Parecia outra versão de mim. Uma que eu ainda não sabia se era real ou temporária.
Ao descer, Vittoria arregalou os olhos e sorriu com aprovação.
— Você está linda. Agora sim parece uma Mancini em potencial.
— Não começa — brinquei, e ela riu.
Seguimos para o shopping num carro com vidros escuros, acompanhadas por um motorista e dois seguranças. Era estranho ainda me acostumar com isso: ser observada, protegida, seguida.
Mas a tarde... surpreendentemente, foi leve.
Vittoria era divertida, espontânea, do tipo que fazia piada de tudo e arrancava risos mesmo quando eu tentava manter a compostura. Em poucas horas, descobrimos várias coisas em comum — inclusive que tínhamos a mesma idade.
— Sério? Você também tem vinte e um? — ela me olhou com surpresa. — Pensei que fosse mais nova, sei lá. Tem esse jeitinho meio quieta…
— Eu faço Medicina. Desde os dezoito. Já estou no terceiro ano.
— Uau! Você vai ser médica mesmo?
— Se tudo der certo, neurocirurgiã. Como meu pai foi.
Ela me olhou com mais atenção, tocada.
— Foi?
Assenti, baixando um pouco o olhar.
— Meu pai está doente e não consegue mais fazer as cirurgias e minha mãe morreu dois dias depois que eu nasci. Uma infecção grave. Desde então, foi meu pai quem me criou. Sozinho. Com muito amor. Ele é tudo pra mim.
— Sinto muito, Ane…
— Eu também. — Sorri de leve. — Mas foi por isso que escolhi a medicina. Eu queria continuar o que ele fazia.
Vittoria me abraçou de lado, afetuosa.
— Você é mais forte do que parece.
Aquela tarde não mudou minha realidade. Mas, por algumas horas, senti algo quase esquecido: leveza.
E talvez, só talvez, estar presa àquele mundo não significasse estar completamente sozinha.
O céu já tingia de dourado quando o carro entrou pelos portões da mansão dos Mancini.
Durante todo o caminho de volta, Vittoria falava animadamente sobre as lojas que queria me mostrar na próxima semana, mas minha mente começava a se fechar. Era como se, a cada quilômetro, a liberdade que eu havia sentido no shopping evaporasse.
Assim que cruzamos a grande porta de entrada, a atmosfera da casa me pareceu mais densa. Havia um silêncio incômodo pairando no ar. Vittoria me lançou um olhar rápido.
— Não liga se meu irmão estiver de cara fechada. Ele é assim mesmo. Parece que carrega o mundo nas costas. — Ela me deu um beijo na bochecha. — Obrigada por hoje, de verdade. — E subiu as escadas, desaparecendo no corredor.
Fiquei ali parada por alguns segundos até sentir sua presença antes mesmo de vê-lo.
— Foi bom o passeio? — A voz veio baixa, grave, mas carregada de algo mais.
Virei-me devagar.
Sebastian estava recostado na ombreira de uma das portas do salão principal. As mangas da camisa estavam dobradas até os cotovelos e os olhos me analisavam com a mesma intensidade de sempre.
— Foi. Vittoria é divertida — respondi com neutralidade.
Ele caminhou até mim, sem pressa. Seu olhar desceu até minhas pernas, passando pelo vestido, e voltou para meus olhos.
— E você está cada vez mais à vontade, percebo.
Cruzei os braços.
— Se você quer dizer que estou tentando manter minha sanidade mental, então sim.
Ele sorriu de canto. Aquele tipo de sorriso que não chegava aos olhos.
— Teve um dia leve, então.
Assenti, mas mantive o queixo erguido.
— O que não significa que esqueci da situação em que estou. Nem do motivo.
— Situações mudam — ele disse. — Principalmente quando a pessoa sabe usá-las a seu favor.
Aquilo soou como um desafio. E eu nunca soube recuar diante de um.
— E você acha que me manter cercada de seguranças é usar isso a meu favor?
Ele estreitou os olhos.
— A segurança é para garantir que você não desapareça antes do nosso casamento.
— Você realmente acha que, se eu quisesse fugir, segurança seria um problema?
Um músculo em sua mandíbula se contraiu. Por um segundo, vi algo nos olhos dele — não era raiva. Era... instinto de controle. De poder. Mas também, talvez, um pouco de medo.
— Não subestime o que eu posso fazer para garantir que você cumpra com sua parte no acordo — disse ele, com a voz baixa, contida. — Eu costumo manter o que é meu por perto.
— Eu não sou uma posse.
Ele deu um passo à frente, mas eu me mantive firme.
— Não. Ainda não — respondeu. — Mas em breve será minha esposa. E com isso vem deveres... e limites.
— Deveres? — soltei um riso seco. — Você me ganhou numa aposta, Sebastian. E agora quer fingir que isso é um relacionamento tradicional?
Ele me encarou por alguns segundos, o maxilar tenso, os olhos fixos nos meus como se buscassem algo ali dentro. Por fim, falou com frieza:
— Esse casamento vai acontecer. Goste você ou não.
Assenti lentamente.
— Eu sei. Mas não espere que eu aceite tudo calada.
Virei as costas e subi as escadas com o coração acelerado. Minhas mãos tremiam, mas meu passo se manteve firme.
O pior não era o tom autoritário. O pior era que uma parte de mim… uma parte muito pequena e muito traidora… ainda sentia alguma coisa quando ele me encarava daquele jeito.
E isso me assustava mais do que qualquer ameaça.