A luz por trás da janela

1448 Words
Paris se estendia em uma paleta de dourado e cinza naquela manhã de inverno, com a luz da Torre Eiffel piscando ao fundo como um lembrete de que até mesmo a grandiosidade tinha seus momentos de pausa. No apartamento de Franchesca e Marcel, o silêncio era interrompido apenas pelo ranger das tábuas de madeira, ecos de uma rotina que não os preenchia mais. Ela observava a vista da janela enquanto Marcel terminava de ajeitar a camisa para o trabalho. O aroma de café fresco invadia o ambiente, mas nenhuma palavra era trocada entre os dois. Franchesca sabia que a conversa dos dias anteriores e principalmente, a torta de climão, pairava entre eles como uma nuvem pesada, mas não tinha forças para retomá-la. Ao levantar os olhos, viu Pierre e Ingrid na varanda do prédio oposto. Ingrid estava com uma taça de vinho na mão, os cabelos crespos caindo como uma cascata sobre os ombros, enquanto Pierre a envolvia pela cintura, murmurando algo que a fazia sorrir. O riso dela era leve, despretensioso, como se o mundo inteiro estivesse ali, naquela pequena varanda. Marcel se aproximou devagar, seguindo o olhar da esposa. Ele ficou imóvel ao ver Pierre acariciar o rosto de Ingrid, o gesto tão simples, mas carregado de i********e. – Eles vivem como se não tivessem problemas – murmurou Franchesca, mais para si mesma do que para ele. – Ou fingem melhor – rebateu Marcel, com um tom seco. Ela sentiu a pontada de amargura nas palavras dele, mas não respondeu. Em vez disso, voltou a encarar o casal. Pierre se inclinava para sussurrar algo no ouvido de Ingrid, e ela jogava a cabeça para trás em um riso solto, quase teatral. Era impossível ignorar a química entre os dois, a forma como pareciam estar em sintonia com um universo que não era acessível a mais ninguém. Marcel desviou o olhar, o maxilar contraído. Ele sabia que Franchesca estava encantada pelo que via, mas o que doía era a sensação de não ser mais capaz de despertar algo assim nela. – Você nunca ri assim – comentou ele, sem encará-la. Franchesca o olhou de soslaio, percebendo o peso das palavras. – Talvez porque você nunca tenta. A resposta saiu antes que ela pudesse contê-la, e o silêncio que se seguiu foi sufocante. Marcel se afastou, pegando a pasta de trabalho com um movimento brusco. – Não tenho tempo para essas coisas – murmurou antes de sair. A porta bateu, e Franchesca continuou ali, encarando o casal que agora parecia tão distante quanto inalcançável. Ela se perguntava se algum dia havia tido aquilo com Marcel, aquele fogo que transcendia a rotina e a monotonia. “Será que perdi isso? Ou será que nunca tive?” — seus pensamentos batiam com força. Horas depois, enquanto conduzia as crianças de volta da creche, passou pela Rue de Rivoli. A rua estava movimentada, como de costume, mas havia algo de melancólico na forma como as pessoas andavam apressadas, com seus casacos pesados e olhares baixos. Franchesca parou em frente a uma vitrine de uma confeitaria, as crianças brincando ao seu lado. Dentro, Ingrid estava sentada em uma mesa próxima ao vidro. Ela mexia no celular com uma expressão distraída, os olhos verdes iluminados pela luz artificial do lugar. Havia algo no jeito como ela mordia o lábio inferior, como se estivesse carregando um peso que ninguém mais podia ver. Franchesca sentiu um impulso de entrar, mas se conteve. “O que eu diria? Por que ela falaria comigo?” — cogitou. De volta ao apartamento, a noite caiu, e Marcel chegou mais tarde do que o habitual. Ele parecia exausto, o cabelo despenteado, a gravata frouxa. Franchesca o observava da cozinha enquanto ele colocava a pasta na mesa e desabava no sofá. – Está tudo bem? – arriscou ela. Ele demorou a responder, encarando o teto. – Está. Só mais um dia normal. Mas ambos sabiam que nada estava normal. O silêncio entre eles era o tipo que não trazia conforto, apenas mais perguntas. Marcel passou a mão no rosto e finalmente olhou para Franchesca. – Você passou o dia olhando os vizinhos de novo? A pergunta pegou Franchesca de surpresa. Ela largou a louça que lavava e secou as mãos na toalha, encarando-o com a testa franzida. – O que isso tem a ver com qualquer coisa? – Tem a ver que parece que você vive mais a vida deles do que a nossa – disparou ele, levantando-se do sofá. – Você acha que eles são tão perfeitos assim? Ela hesitou. Não era sobre perfeição, e ela sabia disso. Era sobre a liberdade que eles tinham, a forma como expressavam o que sentiam sem medo de julgamentos. Era sobre o que faltava entre ela e Marcel. – Não se trata disso – respondeu, a voz mais baixa. – Eu só... eu só queria saber onde a gente se perdeu. Marcel riu, mas foi um riso amargo. – Talvez a gente nunca tenha se encontrado. Aquelas palavras doeram mais do que Franchesca estava disposta a admitir. Ela se virou para a janela, na esperança de que ele não visse as lágrimas se formando em seus olhos. Do outro lado da rua, Pierre e Ingrid dançavam lentamente na varanda, uma música inaudível os embalando. A música invisível os guiava em um compasso lento e íntimo. O vento frio da noite fazia os cabelos dela dançarem em torno do rosto, mas o calor do toque dele a mantinha ancorada. Eles estavam tão próximos que o mundo parecia ter desaparecido, deixando apenas a luz suave da Torre Eiffel como testemunha de seu momento. Pierre deslizou os dedos pelo rosto de Ingrid, seus olhos capturando os dela com uma intensidade que fazia o coração dela acelerar. – Você sabe que é o meu mundo, não sabe? – murmurou ele, a voz tão baixa que quase se perdeu no som distante da cidade. Ingrid fechou os olhos por um momento, como se quisesse guardar aquelas palavras para sempre. Quando os abriu, um sorriso suave curvava seus lábios. – E você é tudo o que faz o meu girar, Pierre. Sem você, eu seria apenas uma sombra perdida. Ele sorriu, mas havia algo de vulnerável em sua expressão, como se as palavras dela fossem um bálsamo para algo que ele não sabia como curar. – Eu nunca pensei que pudesse sentir isso – confessou Pierre, sua voz carregada de emoção. – Esse amor que me faz querer ser alguém melhor. Você me deu mais do que eu mereço, Ingrid. Ela ergueu uma das mãos, tocando os lábios dele com delicadeza. – Não diga isso. O que temos é nosso, Pierre. É mais forte do que qualquer dúvida, mais forte do que qualquer medo. Ele inclinou a cabeça, seus lábios encontrando os dela em um beijo que era mais do que paixão. Era um pacto silencioso, uma promessa não dita de que, independentemente do que viesse, eles enfrentariam juntos. Quando se afastaram, Ingrid encostou a testa na dele, os olhos brilhando com lágrimas que ela se recusava a derramar. – Eu te amo, Pierre – sussurrou, com a voz firme e carregada de certeza. Ele segurou o rosto dela com ambas as mãos, o olhar preenchido por uma profundidade quase desesperada. – E eu te amo, Ingrid. Mais do que as palavras podem explicar. Mais do que eu sabia que era capaz de sentir. Eles ficaram assim, imóveis, como se o tempo tivesse parado apenas para eles. A dança esquecida, as palavras ditas, e o beijo ainda queimando nos lábios eram tudo o que importava. Naquele momento, Franchesca sentiu um aperto no peito. Não sabia se era inveja, saudade ou apenas o vazio que vinha crescendo dentro dela. Só sabia que precisava fazer algo antes que o que ela e Marcel tinham desaparecesse por completo. “Como chegamos aqui, onde o silêncio dói mais do que qualquer palavra? Talvez o que me falta seja o que vejo neles: uma chama que ilumina mesmo a escuridão. Mas e se a verdade for que eu nunca tive isso com Marcel? E se o fogo que eu procuro já se apagou antes mesmo de acender?” — imaginou Franchesca, frustrada, avaliando a cena. “Eu vejo a forma como ela os olha, como se quisesse estar lá, e não aqui, comigo. Mas o que posso oferecer a alguém que já perdeu a fé em mim? Talvez seja isso que me assuste mais: que o problema não seja ela, ou eles, mas quem eu me tornei.” — ponderou Marcel, irritado, no banheiro. A noite avançava, mas a luz por trás da janela dos vizinhos parecia brilhar mais forte do que nunca.
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