03 - PH

1033 Words
PH Narrando Fala aí, irmão, meu nome de batismo é Paulo Henrique, mas se tu perguntar por esse nome aqui no PPG, ninguém vai saber quem é. Aqui, no morro, o nome que vale é PH. Só PH. Trinta e um anos na cara, moreno, olho azul herdado sabe-se lá de quem, talvez da família do fracassado do meu pai e metade do meu corpo fechado na tinta. Sou o frente do PPG. O comando. A voz que mantém a ordem nessa pörra. Mas até chegar aqui, a caminhada foi longona. Eu não nasci no PPG, tá ligado? Minha primeira quebrada foi o Vidigal. Cresci ali até os sete anos, quando o meu pai, aquele bösta, botou minha mãe pra correr de casa. — Vai embora, Vagabünda! Esse moleque nem é meu. — ele gritava. Eu lembro direitinho. A porta batendo. O choro da minha mãe. Eu abraçado nas pernas dela morrendo de medo. Ele era um mërda. Bebia todo dia, jogava o salário no bar e quando chegava em casa achava que tinha o direito de meter a mão na minha mãe porque ela não abaixava a cabeça. Um covarde. E covarde não cria filho homem. Minha mãe não tinha pra onde ir. Foi aí que ela lembrou do primo do meu pai, o cara que era envolvido até o talo no crime, mas que sempre foi sangue bom com ela. A gente subiu pro PPG com uma mala e meia dúzia de roupa velha. E foi ele que abriu a porta da casa e disse: — Cê e o moleque fica aqui. Aqui ninguém toca em vocês. O nome dele era Nandão, e, a partir daquele dia, ele virou mais pai do que qualquer outro homem no mundo seria pra mim. Ele assumiu minha mãe e me assumiu como filho. De um jeito meio torto, mas fez o papel que ele achava certo. Foi ele que me ensinou que no morro é cada um por si, mas com lealdade. Foi ele que me botou na linha. Foi ele que me formou na escola da vida e da bandidagem. E eu com onze anos tive que largar a escola. Eu tava na quarta série, irmão. Sabia só o básico: escrever meu nome, fazer umas continhas e ler meio arrastado. Minha professora vivia dizendo pra minha mãe: — Dona Isa, o PH é inteligente, ele só precisa de oportunidade. Oportunidade… No morro essa palavra é piada. Nandão falava diferente. — Cê vai estudar pra quê, moleque? Pra virar funcionário dos outros? Aqui homem se forma no movimento. Estudar é coisa de bichinha. E eu acreditava. Eu era só um garoto querendo dar orgulho para o padrasto. Então larguei tudo. Comecei levando recado, depois levando dinheiro, depois armamento pras bocas mais baixas. Fui subindo. Fui crescendo. Fui ficando duro. Fui virando homem. Eu e meu padrasto éramos uma dupla, tá ligado? Se ele mandava, eu executava. Se ele precisava, eu tava lá. Mas o mundo do crime não perdoa ninguém. E quando o cerco fechou, quando os cü azul vieram com força total, quando não tinha mais saída, ele fez o que sempre dizia que faria. — Eu nunca vou morrer pela mão de ninguém. Muito menos de polícia. Me chamou no rádio, e disse que agora era tudo meu. Me chamou de filho pela primeira vez. E pipocou a própria cabeça. Essa cena nunca saiu da minha mente. O barulho do baque no chão. Eu tinha dezenove anos quando assumi o trono que ele deixou. Dezenove. O resto dos moleques dessa idade tava na faculdade, viajando, curtindo vida. Eu tava comandando um morro inteiro, com guerra, com operação, com carga, com gente dependendo de mim pra comer, pra sobreviver, pra ter paz. Minha mãe continuou morando na casa que era dele. Eu dei tudo pra ela, mas ela preferiu ficar onde tem as memórias. Eu respeito. Visito ela sempre, levo comida, dinheiro, proteção. Eu? Vivo na minha goma, na parte alta, com vista pra cidade e pro mar. Um lugar seguro, blindado, onde só entra quem eu deixo. E sobre mulher. Mano, essa parte é tensa. Eu me envolvi uma vez, Uma vez só. E foi o suficiente pra estragar meu coração. Uma morena linda, corpo dos sonhos, sorriso que desmontava qualquer homem. Eu era cego por ela, Fiz tudo. Dei casa, roupa, proteção, vida boa. E ela? Me meteu um par de chifres com um vaporzinho de mërda. Um moleque fraco, sem moral nenhuma. Eu descobri. Matei o cara sem pensar duas vezes. Ela só não foi junto porque sumiu antes que eu chegasse nela. Depois disso, irmão… Eu fechei meu coração, congelei geral, virei pedra. Prometi pra mim mesmo que nunca mais ia amar pörra nenhuma. Hoje eu só vivo minha vida. De büceta em büceta, como todo mundo fala. Mas sem apego, Sem nome, Sem relacionamento. E também, sem mentira. Me respeita, eu respeito. Passou do limite, perdeu. Aqui no PPG tem ordem. Tem disciplina. Tem comando. E eu sou esse comando. Não sou santo, muito menos bonzinho. Mas eu também não sou o pior. Quem faz o bem pro morro, vive bem. Quem faz mërda, paga a conta. Eu cresci ouvindo tiro, aprendendo a desmontar arma antes de aprender a dividir fração. Fui adulto antes de virar adolescente. Vivi coisa que ninguém acredita. Perdi gente que ninguém esqueceria. E mesmo assim tô aqui, firme, respirando, segurando o peso de um morro inteiro nas costas. Mas vou te falar a real… Às vezes, quando tô sozinho, quando apago as luzes da minha goma. Quando o rádio cala. Quando a arma tá no criado-mudo e não na minha mão. Eu penso no moleque de onze anos que só queria estudar. Que só queria brincar, que só queria ter pai e mãe. Que só queria uma vida normal. A vida nunca deu isso pra mim. Nunca deu escolha. Nunca deu paz. E por isso eu virei o PH, O cara que ninguém enfrenta. O homem que comanda esse morro, O nome que pesa. O nome que mete medo, O nome que todo mundo respeita. Mas nem tudo que parece forte é realmente inabalável. Nem tudo que parece frio, realmente morreu por dentro.
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