Todo conhecimento é importante II

1231 Words
Já estávamos perto do porto quando finalmente ele falou comigo: — Telo, por que você me pediu para sair do Dergo e conhecer Andorra? Sendo que eu já te convidei várias vezes para descer conosco e já faz tempo que você nunca quis? Ensaiei para lhe responder. A resposta estava na ponta da língua, da forma mais clara possível, mas abaixei a visão e pensei numa explicação melhor que não me colocasse em problemas. — Depois de amanhã vai fazer três anos que eu não saía do Dergo, capitão. — Respirei fundo e ergui a visão, envergonhado. — Eu costumo usar todo o tempo em que vocês estão em terra firme, para estudar. É o único que me resta, praticamente, já que... — Desviei os olhos do rosto dele. — Já que... o Vitto me enche de afazeres e eu quase nunca tenho tempo de estudar. — Voltei a olhar para ele, no final. — O Vitto faz isso? Hesitei alguns pares de segundos, mas no final confirmei com um movimento de cabeça. Ele respirou fundo, não como alguém prestes a agir, apenas pensativo e talvez frustrado. — Eu vou ficar mais de olho em você, para tudo isso mudar, Telo. Darei ordens perto dele, a você, para que ele fique ciente das suas prioridades. Assenti com a cabeça. Eu estava pisando em terra de guerra e o nervosismo disso me fazia contorcer os pobres dos meus dedos no sapato que eu usava. — Você deve ter se perguntado o porquê de eu ter te envolvido nisso. O porquê de eu estar te dando mais espaço e te fazendo provar de coisas que não tinha o costume de provar. — Sim! — Assenti com a cabeça, enquanto eu o encarava. — Me perguntei isso algumas vezes durante o dia. O capitão Gulian pigarreou sério e olhou para baixo, na minha direção. — Por conselho de meu pai e de Onmbo, eu o mantive inocente; inteligente, mas não esperto. Fiz como todos os donos de sumos fazem com suas criaturas: escondi o mundo de possibilidades de você e o fiz pensar que não estava à sua altura, que não poderia alcançar, mas acontece que você é um pedaço do meu cérebro. Um pedaço infantil, inexperiente e que ainda não viveu. E eu não quero mais que você seja a minha parte inocente; quero que você saiba e entenda como eu vivo. Quero que participe. Você ter pedido para descer do Dergo me fez querer ainda mais isso. — Ele suspirou. — Eu sempre soube que o Vitto não gostava de você, só não sabia o quanto. — Eu agradeço pela oportunidade, capitão. Dobramos uma esquina e alcançamos uma avenida ligada à avenida do porto, com o silêncio pairando no ar, enquanto eu tentava seguir o capitão com os seus passos longos e rápidos. — Eu não quero mais que Vitto o machuque e que ele mande em você. A partir de hoje você só obedecerá a mim. Avisarei isso a ele. — Assenti com a cabeça. — Agora me diga como foi o dia na biblioteca. Arregalei os olhos. Como eu diria a ele que aprendi algumas teorias de magia? — Estudei um pouco da língua Aleaço. — A língua usada na conjuração de magia? Balbuciei e sem dúvida o capitão Gulian percebeu algo errado comigo. A primeira bruxa datada em história, veio do reino de Inria, que se chamava na época de reino de Aleçis, e foi por lá que a magia nasceu, por isso, até hoje, as conjurações e os feitiços são falados na língua nativa dos primeiros bruxos. — É também a língua oficial do reino de Inria, senhor. O capitão Gulian ponderou sobre o assunto, como se avaliasse se o meu tempo seria bem gasto nesse estudo, até eu comprovar seu pensamento ao ouvi-lo dizendo: — É uma boa língua a se aprender. Há dois anos perdi um grande negócio com um Inriain por não ter um tradutor para mediar a conversa. Fiz que sim com a cabeça. — Eu me lembro desse dia. — Me senti um imprestável. Era como ouvir Jado dizendo que nunca é o suficiente, e que não importa o quanto sabemos, pois quanto mais sabemos menos inteligente somos, considerando que a cada descoberta vem também o descobrimento de várias outras perguntas relacionadas ao assunto. O RESTANTE DOS DIAS se passaram rápidos. Gulian regularmente se encontrava com Enara e me levava junto. Vitto o ignorava o quanto podia, conversando com ele pouco além do necessário. O capitão Gulian conseguiu vender o Rava e imediatamente abastecemos de comida, animais e água o Dergo, e no início de uma manhã, quando o sol se levantava no horizonte, completando três dias que estávamos em Andorra, fomos todos ao navio para irmos embora. Da popa, vi a cena que mais doeu o meu coração naquele mês. Enara corria desesperada, segurando uma bolsa de couro inchada de coisas nos braços e o seu pai vinha logo atrás dela. A jovem chorava ao correr feito homem, com o seu cabelo esvoaçando. Ela ainda estava longe e o navio já começava a se desvencilhar do porto. Vendo a garota que usou, o capitão Gulian virou de costas, saiu do meu lado e se misturou aos piratas. Enquanto isso, Enara passava, trombava e empurrava pessoas na avenida do porto, correndo em nossa direção com aqueles olhos enxertados em lágrimas. Quando o Dergo alcançou mais de trinta metros de distância do porto, Enara chegou ao cais e gritou para que esperassem por ela. Olhei para trás, na esperança de ver o capitão se arrependendo ao ouvir os gritos daquela que ele tirou o necessário para ter o mínimo da vida. Mas ele não apareceu, e nem apareceria. Tampouco pediria para que parassem o navio. Fizera isso tantas vezes... e eu me lembro de todas elas. — Gulian! — gritava ela, desesperada e em pranto, segurando a corda grossa da beira do cais, ensaiando para se jogar. Seu pai a alcançou e a conteve em seus braços enquanto ela se debatia. Ele parecia ser um bom pai, só não bom o suficiente para desafiar o capitão pela honra de sua filha antes do acontecido. Talvez tentara, eu não o podia julgar, pois o medo de enfrentar o temível senhor dos mares, aquele por quem muitas mulheres eram apaixonadas e os homens corriam de medo, o fez covarde em meio à situação. O navio se afastou um pouco mais e o pouco que Enara se soltou dos braços de seu pai, se lançou ao mar. Em meio às ondas fracas ela nadava até o Dergo. Mas logo o vento soprou aquelas velas recém-abaixadas do navio e as encheu de força, puxando o Dergo com mais velocidade para o meio do oceano do que Enara poderia nadar. Conforme os minutos foram passando, a jovem foi ficando para trás em meio a um possível desespero de uma vida sem honra que a aguardava em Andorra. Agora seria o filho do ferreiro do porto que não iria mais querer ela. Não sabia porque, mas vê-las fazendo coisas desse tipo sempre me deixava m*l o resto do dia. Engoli em seco e procurei ignorar a vista, ignorar o sofrimento de Enara, virando-me e me inserindo em meio aos homens do Dergo, que pareciam felizes em deixar a cidade e ser o melhor que sabiam ser: piratas em alto mar.
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