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Sofia
"Foi como se ele tivesse se dissolvido no ar. Um dia, simplesmente cruzou a porta e se foi, engolido pelo silêncio, sem um bilhete, um telefonema, sequer um rastro. Nem um cão seria tratado com tanto descaso. O que éramos nós para aquele homem? Fantasmas? Objetos descartáveis?
Um vazio gélido se instalou, a sensação de um fardo colossal sendo arrancado de nossos ombros, mas a liberdade ainda era uma miragem distante, um horizonte nebuloso que nos observava com desconfiança.
Com a partida do meu pai, a responsabilidade de nos sustentar desabou sobre os ombros da minha mãe como uma avalanche. Sem os documentos do Brasil, que ele, em sua crueldade, levou consigo, e com o terror constante da deportação pairando sobre nós como uma guilhotina, ela conseguiu um emprego em uma casa de família. Nossos patrões, cientes da nossa vulnerabilidade, faziam questão de nos lembrar da nossa condição de ilegais, como se fossemos animais enjaulados. A senhora da casa, uma mulher de olhar frio e cálculo preciso, deixava claro que nossa permanência ali era um favor, condicionado à nossa utilidade, como se fôssemos engrenagens em sua máquina implacável.
Eu ia para a escola, buscando nos estudos uma âncora em meio ao caos, um refúgio da realidade c***l que nos cercava. Nas horas vagas, me tornava uma sombra na casa dos nossos patrões, limpando, organizando, tentando ser invisível e útil, como um fantasma que habita os cantos escuros. Minha infância escorria pelos meus dedos como areia fina, substituída por uma maturidade forçada e um senso de responsabilidade que esmagava meus pequenos ombros, como se eu carregasse o peso do mundo.
O medo que ela implantava em minha mãe sobre as consequências de uma possível volta ao Brasil, a prisão e a separação, era uma tortura psicológica constante, um veneno que se infiltrava em nossas almas. E eu, na minha ingenuidade, achava que o d***o tinha a face do meu pai...
Os anos se arrastaram, marcados pela saudade do Brasil, pela luta diária pela sobrevivência e pela sombra constante do medo, como se estivéssemos em um labirinto sem saída. Concluí os estudos, um feito que minha mãe celebrava com um brilho de orgulho nos olhos cansados, como se tivéssemos escalado uma montanha juntos. Mas a alegria foi efêmera. Logo após a formatura, minha mãe sofreu um AVC.
A notícia me atingiu como um golpe brutal, um terremoto que abalou as estruturas da minha vida. A imagem dela caída, inerte, no chão do quarto, se cravou em minha mente como uma tatuagem dolorosa. A corrida frenética para o hospital, a espera angustiante, o diagnóstico devastador: hipertensão não tratada, anos de estresse e privação cobrando seu preço, como um carrasco implacável.
"Como a senhora pôde esconder isso de mim?!" Minha voz tremia, carregada de raiva e desespero, como um trovão em meio à tempestade. A fúria pela negligência dela, por ter escondido algo que poderia tê-la levado embora, me consumia como um incêndio.
Ela tentou me acalmar, a voz arrastada e a boca torta pela paralisia parcial, como um sussurro frágil em meio ao caos. "Não queria te preocupar... você já faz tanto por mim... quero que você viva sua juventude, filha... e não que... se afogue em preocupações... você sempre foi tão forte..."
As palavras dela, ditas com dificuldade, desarmaram minha raiva, como um bálsamo em uma ferida aberta. As lágrimas vieram como uma torrente, lavando a fúria e deixando apenas a dor e o medo, como um dilúvio que purifica a alma.
"Mamãe... por favor, não faça mais isso..." Desabei, agarrando sua mão debilitada, como se agarrasse um bote salva-vidas em um mar revolto. "Eu não estou pronta para ficar sozinha..." A fragilidade dela me confrontava com a minha própria vulnerabilidade, com o terror de enfrentar o mundo sem seu amparo, sem seu amor incondicional. A Sicília, com suas cores vibrantes e sua história fascinante, continuava sendo para mim um lugar de sombras e lágrimas, um lar forjado na adversidade e na luta incessante pela sobrevivência, como um campo de batalha onde a esperança teimava em florescer.
A bolsa de estudos, conquistada com tanto esforço, se transformou em um sonho distante, uma miragem inatingível. A burocracia para um imigrante ilegal ingressar na universidade era um labirinto intransponível, um muro que me impedia de alcançar meus sonhos. Com minha mãe acamada, a lógica c***l da necessidade me manteve presa à casa dos meus antigos patrões, como um prisioneiro em sua cela. Carmen, a vizinha de coração generoso, e alguns outros moradores do bairro se revezavam para cuidar da minha mãe enquanto eu trabalhava, um fio de esperança e solidariedade em meio à escuridão, como estrelas que brilham na noite mais escura.
"Sua mãe fazia tudo com mais capricho... se esforce, menina!" A voz áspera de Dona Olívia, a patroa, ecoava pelos corredores da casa, carregada de exigência e desprezo, como um chicote que me açoita. Mas eu já estava calejada, acostumada com suas críticas mordazes e seu tom condescendente, como um guerreiro que aprendeu a suportar a dor. E ainda tinha o filho dela, um ser desprezível, que adorava me humilhar, revivendo memórias de quando me sujou de lama depois da chuva, e que por sorte não saiu impune por ter levado uma mordida minha, e seu pai sabia do que o filho era capaz. A necessidade daquele emprego era um grilhão invisível, me prendendo ali, como um escravo em sua corrente. Os custos dos remédios da minha mãe eram exorbitantes, e perdê-lo significaria mergulhar em um abismo ainda mais profundo, dada a dificuldade de encontrar outra colocação sendo mulher, n***a, imigrante e sem experiência formal.
Os remédios da minha mãe eram um fardo pesado, uma conta que chegava duas vezes ao dia, lembrando-me constantemente da minha responsabilidade, como um relógio que marca o tempo da minha angústia. A cada comprimido, sentia o peso da minha juventude sendo drenada, trocada por noites m*l dormidas e exaustão constante, como se eu estivesse envelhecendo prematuramente."
"Aos vinte e três anos, finalmente reuni a coragem e a pequena fortuna que me permitiram deixar a casa dos meus antigos patrões, um lugar que se tornou uma prisão silenciosa. Regularizar nossos documentos era uma obsessão, um grito de liberdade engasgado na garganta. Encontrei trabalho em uma cafeteria durante o dia, o aroma forte de café contrastando com o cheiro de suor e exaustão, e em um clube noturno como garçonete, onde os flashes de luz e a música alta mascaravam os olhares lascivos e os toques indesejados. Os dois empregos eram um martírio, exigindo um esforço físico e emocional que me deixava em farrapos. A humilhação era uma constante, desde os clientes do clube que me viam como um pedaço de carne até as gorjetas mesquinhas que m*l cobriam a passagem de ônibus, um lembrete c***l da minha condição. Era um trabalho escravo disfarçado de oportunidade, onde a miséria me forçava a aceitar condições degradantes, a engolir o orgulho e a sorrir para quem me desprezava.
"Mãe?" Cheguei em casa tarde da noite, arrastando os pés e com a cabeça latejando, como se um tambor estivesse tocando dentro dela. O apartamento pequeno e abafado parecia me engolir, as paredes descascadas e o cheiro de mofo me sufocando. Chamei por ela, a voz rouca e cansada, como se tivesse engolido areia.
"Oh... onde estava, querida? Sua escola já acabou tem um tempo," respondeu minha mãe, sentada no sofá da sala, as mãos ocupadas em um tricô inacabado, as agulhas paradas como se tivessem perdido o rumo. Seu olhar vago e confuso me atingiu como uma facada, a falta de reconhecimento me dilacerando por dentro.
Me aproximei lentamente, segurando seu rosto entre minhas mãos, sentindo a pele fina e frágil sob meus dedos. Seus cabelos estavam mais brancos, como fios de algodão, a pele mais fina e marcada pelo tempo e pela doença, como um pergaminho antigo. "Lembra do que eu disse? Estou trabalhando e já terminei a escola," respondi, tentando disfarçar o cansaço na voz, a dor latejando em cada palavra.
"Oh... é... é mesmo... você está um pouco diferente então... está uma mulher," ela sorriu, um sorriso doce e infantil que apertou meu coração, como se uma mão invisível o estivesse esmagando. Mesmo forçando um sorriso em resposta, as lágrimas ameaçavam transbordar, salgadas e quentes, queimando meus olhos.
Com o AVC, minha mãe havia desenvolvido demência. Os lapsos de memória eram cada vez mais frequentes, as lembranças se embaralhavam como cartas de um baralho gasto, e a mulher forte e independente que eu conhecia se esvaía lentamente, como areia escorrendo pelos meus dedos. Cada vez que sua mente se perdia no labirinto da doença, meu coração vacilava, preenchido por uma dor lancinante e a crescente sensação de solidão, como se eu estivesse em um barco à deriva em um mar escuro.
Não consigo não imaginar o dia que ela não lembrará de mim... é difícil, mas essa é a realidade do que aguarda: esquecer de todos os nossos momentos, dos dias importantes, das pessoas importantes de sua vida... é uma doença que tortura a todos ao redor... e, nesse caso, a mim... é tão difícil passar por isso sozinha, sem ter a quem recorrer, sem um ombro para chorar.
"Farei pipoca, quer, filha?" perguntou ela, levantando-se com dificuldade e caminhando lentamente em direção à cozinha, como se cada passo fosse uma batalha. A pipoca, um lanche simples e reconfortante, era uma das poucas lembranças que ainda resistiam ao avanço da demência, um farol em meio à escuridão. E naquele momento, enquanto a observava se mover com lentidão pela casa, eu sabia que faria qualquer coisa para preservar esses pequenos fragmentos de normalidade, para adiar o inevitável dia em que ela se perderia completamente em suas próprias lembranças, quando seus olhos não me reconheceriam mais.
A Sicília, apesar de tudo, era o palco da minha luta, o lugar onde eu aprendi a ser forte, a amar com intensidade e a carregar o peso do mundo em meus ombros, tudo por aquela mulher que me deu a vida, dependia inteiramente de mim."