📖 Capítulo 3 – Quebrando o Gelo

1342 Words
📖 Capítulo 3 – Quebrando o Gelo Narrado por Olivia  Meu coração tamborilava tão forte que parecia querer sair pela boca. Não era só nervoso — era uma mistura de medo, curiosidade, atração e um reconhecimento que eu não soube nomear. Kael. O nome dele já circulava naquelas vielas antes mesmo de eu chegar; vinha com aviso e respeito, com silêncio e reverência. E, ainda assim, ouvir o som da voz dele direto pra mim fez tudo estremecer. — Qual foi, princesa? Primeira vez por aqui? — ele perguntou baixo, rouco, como se cada sílaba tivesse peso. Tentei responder com firmeza, com coragem que soava mais como armadura fina. — É… só tô de visita. Ele sorriu de canto. Um sorriso pequeno, guardado, que não era para todo mundo. Senti na pele que aquele gesto tinha dono — e que o dono sabia o efeito que tinha. Havia algo nesse homem que não cabia em palavra simples: autoridade, história, dor — e um cuidado estranho quando se tratava de quem parecia frágil demais. — Visita costuma ir embora rápido. Mas cê… não parece que vai sair daqui tão cedo. Engoli em seco. A frase soou como previsão e advertência. Olhei para Júlia esperando alguma ponta de socorro, mas ela estava ali, firme, com aquele sorriso que tentava ser luz e que não escondia o receio. Ela sempre fora minha proteção. Mas naquela noite, eu precisava ficar sozinha com a minha reação. — Depende do que eu encontrar por aqui — respondi, tentando disfarçar o tremor nas mãos com um sorriso que queria ser coragem. Kael deu um passo à frente, suficientemente perto para eu sentir o álcool discreto no hálito dele, o cheiro amadeirado de perfume barato, o calor corporal misturado ao suor da noite. Nada se aproximou do que senti por dentro — um bocado de coisas antigas sendo tocadas. — Aqui cê vai encontrar de tudo — ele disse, baixo. — Só tem que saber onde pisa… e com quem anda. — Já tô pisando — retruquei. A resposta saiu com mais atitude do que eu esperava. A surpresa disso me deu um raro momento de orgulho. Ele sorriu, breve e atento, como quem registra cada detalhe. Ficamos ali, um em frente ao outro, o baile pulsando ao redor como um organismo que respira e se movimenta. Um DJ cortava o som, alguém rebolava ali perto, meninos riam com cerveja na mão. Mas, no meu microcosmo, havia silêncio. Era ele e eu atravessando uma linha invisível. — Com a Júlia — falei, e na menção do nome senti a rede de segurança que me mantinha de pé. — Minha amiga. Ela disse pra eu tomar cuidado com você. Kael riu, curto, quase uma nota. — Sempre dizem isso. Nunca explicam por que. Talvez porque não sabem. Ou porque sabem demais. Aquelas palavras tinham camadas. Pareciam tanto aviso quanto convite. Fiquei olhando, tentando ler onde terminava o humor e onde começava a verdade. De repente ele desviou o olhar, e um dos caras do bonde chamou: — Kael! Colou ali, mano! Ele assentiu sem pressa, olhando pra mim uma última vez, como quem grava imagem na memória. Depois virou e foi. Sumiu na multidão. O simples movimento dele afastando-se deixou um vazio estranho — como se a temperatura do ar tivesse mudado. Júlia reapareceu como se tivesse atravessado uma fresta no tempo e me puxou pelo braço com determinação. — Tá doida, Livi? Tu falou com o Kael daquele jeito? — a voz dela tremia entre exasperação e fascínio. — Ele veio falar comigo — respondi, ainda com o som da voz dele reverberando. — E tu respondeu. Inteira! Sem gaguejar! — Júlia arregalou os olhos. — Tá se achando que ele é o quê, influencer? Ri, porque rir era menos perigoso que chorar. Mas algo em mim tinha mudado. Não que eu planejava qualquer coisa com Kael; o que havia mudado era a paisagem dentro do meu peito. Aquele encontro acendeu uma curiosidade que eu não tinha antes. Era mais que atração: era a sensação de ter sido vista — e não de qualquer maneira, mas com um olhar que parecia entender o que doía. — Ele não é de brincar — Júlia sussurrou, puxando meu casaco contra o vento quente da noite. — Quando esse homem olha, fica coisa em volta. Ele não é de passarinho, Livi. Se ele se interessar por algo, vai até o fim. A frase pairou entre nós como aviso. O resto da festa continuava, mas eu me senti como se tivesse saído do centro e agora observasse tudo de fora, a peça deslocada do tabuleiro. Pensei na minha mãe, nas últimas semanas, no caixão, no silêncio pesado do apartamento. Pensei no meu pai — tão bravo que a tristeza dele parecia raiva virada pra dentro. Pensei na promessa que fiz pra mim mesma, de não me afundar. E, no mesmo suspiro, percebi que estava me permitindo sentir de novo — e isso doía tanto quanto aliviava. Minutos depois, percebi Kael mais adiante, conversando com NK. Ele comandava com poucas palavras; os moleques obedeciam. Não era teatralidade — era respeito conquistado com sangue e silêncios. Eu o observei, tentando decodificar. A cada gesto, eu via o peso que ele carregava: a responsabilidade de manter a ordem, a atenção a cada ruído suspeito, o olhar que nunca realmente descansava. Havia beleza crua ali, sim — mas também um custo alto. Uma menina passou por nós tropeçando e ele, sem cerimônia, estendeu a mão e ajudou. A cena foi simples, quase cotidiana, mas me pegou: o mesmo homem capaz de intimidar com um olhar sabia também ser mão que segura, que ampara. Aquilo me confundiu ainda mais. Júlia bateu leve no meu ombro. — Bora? Tá tarde, e tu tem que dormir. Amanhã a gente vai na praia, promete? — ela tentou arrastar, com aquele tom de amiga que finge que se preocupa por controle e por amor. Eu quase cedi. Seria fácil aceitar o colo familiar: pizza, pipoca e cama emprestada. Mas, do fundo do meu corpo, uma fagulha dizia para não apagar aquilo ainda. Queria entender por que aquele homem mexera comigo. Queria entender o que o olhar dele tinha visto que eu não tinha coragem de encarar sozinha. Quando a gente desceu, o caminho de volta foi diferente. A luz dos postes cortava os rostos, as pessoas se dispersavam, e eu conseguia ouvir mais claramente meus pensamentos. Júlia falava do nada, enchendo o silêncio com trivialidades. Ela tentava me proteger da própria intensidade que eu trazia. E lá no alto, num canto escuro, vi Kael observando a despedida de longe, encostado no capô do carro preto. Ele não veio até a gente. Só ficou olhando. A distância entre nós, naquele momento, era carregada de promessa — não romântica, não exatamente — mas de algo que anunciava consequência. Ele me viu olhar e, por um breve segundo, um canto do rosto dele mudou, quase um reconhecimento. Depois ele virou para o outro lado, como se tivesse decidido que cuidar era prudente, mas se aproximar era risco desnecessário. Eu desci a ladeira com Júlia, o peito apertando e a cabeça cheia. A visita que eu prometera ser curta terminava se esticando em possibilidades e perigos. No meu cérebro, uma frase ecoava, miúda e insistente: cuidado. Mas havia outra, abafada e sorrateira, que dizia: e se for só começo? A noite fechou sobre a favela como uma promessa. E eu, que havia vindo para fugir, descobri que estava entrando num lugar onde eu podia — de novo — me perder. Nem sempre é preciso vontade para se perder; às vezes basta ser vista. E Kael, com aquele olhar pesado de quem conhece guerra, acabara de me ver inteira. E isso… doía, dava medo, e também fazia sentido. A visita não só quebrou o gelo: quebrou algo em mim que eu não sabia que precisava quebrar. E eu, com os olhos ainda molhados de memórias recentes, percebi que talvez não quisesse colar tudo de volta do mesmo jeito.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD