Capítulo 3

1635 Words
Selma narrando Dois meses depois Eu sempre fui uma mulher forte. Criada no Alemão tinha que ser a vida aqui não é fácil, aprende cedo que a vida não dava mole pra ninguém. Mas também a firmeza de quem segurava o mundo nas costas. A única pessoa com quem eu dividia as minhas dores mais profundas era minha irmã, Giovana, uma mulher sonhadora que, anos atrás, partiu rumo à Síria com o Samir, com a esperança de construir uma vida nova. Eu nunca entendi direito o porquê daquela escolha, mas respeitei. Só que o destino nem sempre respeita nossos planos. A guerra, a confusão, a violência… tudo chego antes da promessa de paz. Giovana foi mais uma das vítimas invisíveis de um conflito sem nome no coração do mundo. A notícia da morte veio fria, por mensagem, mas o luto veio quente, me queimando por dentro. Mais do que a dor, o desespero: Giovana deixou duas filhas Layla e Rana sozinhas, num país em ruínas. Eu não penso duas vezes. Fiz o que uma tia de verdade faria. Mexi em tudo que tinha, vendi o que pôde, mas não era o suficiente. Foi aí que tomei a decisão mais arriscada de minha vida: procuro a Boca e faço um empréstimo. Cinco mil na mão. "Só pra completar a passagem e uns documentos", disse. "Depois eu pago, juro." O dinheiro serviu pra trazer as meninas, mas desde então, a lanchonete nunca volto a andar. As vendas caíram, os custos subiram… e a dívida ficou. Agora, com Layla e Rana no Brasil, a missão viro sobrevivência. Cada dia é um jogo de equilíbrio: manter a lanchonete aberta, esconder das minhas sobrinhas e da minha filha o perigo que me ronda, e tentar levantar o resto da grana antes que a cobrança vire tragédia. Eu olho para as meninas dormindo no quartinho dos fundos e pensa: — "Valeu a pena. Mas será que eu vou aguentar até o fim?" A lanchonete estava quase vazia naquela tarde abafada. O cheiro de óleo quente misturado com pão pairava no ar. Eu limpava o balcão com calma, tentando esquecer que o relógio corria e junto com ele, a dívida. A porta abriu devagar, Tito entrou, passo firme, o rosto sério. Não precisava falar nada. Só a sua presença já fazia o ambiente pesar. Eu levanto os olhos e forço um sorriso cansado. — Tito… quer um café? Ele não respondeu. Apenas encosto no balcão, cruzo os braços e falou direto: — Vim pelos dois mil que falta, Tia. Já passo do prazo. Eu largo o pano e solto um suspiro pesado. — Eu sei, meu filho… eu sei. Mas as vendas tão fracas, o gás subiu, e o fornecedor não perdoa. Não tô com esse dinheiro agora…, mas eu vou dar um jeito. Palavra de mulher. Tito fico em silêncio por alguns segundos, olhando ao redor da lanchonete. Depois passo a mão no rosto, visivelmente cansado. — O problema… não sou eu, Dona Selma. O problema é o Hades. Ao ouvir esse nome, eu empalidece. — Ele tá de olho em quem atrasa. Já mando recado. E se ele achar que você tá enrolando... — Não tô enrolando, Tito — cortou ele, firme, mas com medo nos olhos. — Eu só preciso de uns dias. Eu pago. Nem que eu venda o freezer. Tito assentiu devagar, mas não parecia convencido. — Eu vou falar com ele. Tentar segurar a bronca mais um tempo. Mas te prepara, Dona Selma… Hades não gosta de palavra, ele gosta de resultado. E com isso, Tito viro as costas e saiu pela mesma porta, deixando o sino tilintar atrás dele. Eu fico parada, o pano ainda na minha mão, sentindo o peso do nome que tinha acabado de ouvir. O meu tempo tava se esgotando. Depois de um tempo o Tito voltou — Dona Selma... falei com o Hades. — E aí? Ele deixou estender o prazo? Tito balança a cabeça, sério — Nada disso. Ele foi claro: ou a senhora paga... ou vai pro desenrolo. — Mas Tito, eu tô tentando! Só preciso de mais dois dias, só isso... — Não tem mais dois dias, Dona Selma. Ou o dinheiro aparece... ou quem aparece é o problema. A porta rangeu e o sininho tilintou. — Tia! — disse Layla com um sorriso leve, entrando com um sorriso no rosto. — Que foi? A senhora tá com uma cara assustada... Eu forço um sorriso, limpando as mãos no avental. — Não foi nada, minha filha... só calor mesmo. Antes que Layla pudesse perguntar mais, Tito, que ainda estava encostado num canto da lanchonete com o copo d’água na mão, solto uma risada seca. — Ah, então essa é a mina que veio de fora, né? De outro país... a tal da sobrinha Dona Selma? Layla virou-se surpresa, meio desconfiada. — Sou eu. Algum problema? Tito deu um passo à frente, o olhar mais sério agora, quase didático. — Então presta atenção, gringa... a fita é a seguinte: tua tia deve uma grana pra Boca. Dois mil. Se ela não pagar, vai ser cobrada. E aqui, cobrança não vem com boleto. Vem com consequência. Layla ficou paralisada por um instante, o sorriso sumindo, olhando pra mim com os olhos arregalados. — Tia... isso é verdade? Eu abaixo a cabeça, envergonhada. — Eu precisei pegar o Dinheiro pra pode trazer você e Rana para ca — Agora o relógio tá correndo. Se o dinheiro não aparecer... a próxima visita não vai ser minha. Vai ser um vapor para levar a senhora. O sol já começava a sumir por trás do morro quando Tito voltou à lanchonete, Eu limpava o balcão com movimentos lentos, e Layla, sentada num canto com o olhar perdido, ainda tentava digerir a ameaça que tinha ouvido horas antes. Tito não espero convite. Entro direto, encosto no balcão e falou com frieza: — Tenho uma proposta que pode livrar tua tia dessa. Layla levanto o olhar, tensa. — Que proposta? Tito puxo uma cadeira, sento com calma e baixo o tom da voz, mas sem perder o peso nas palavras. — Visitar o Hades… na cadeia. Visita íntima. Levar uma quentinha com o "brinde" dentro. Droga escondida no fundo da marmita. Se tu entrar e sair sem problema, tua tia tá livre. E você ainda leva cinco mil. Layla arregalo os olhos, e o meu estômago virou. — Visita íntima?! Droga… e se eu for pega? Tito cruzou os braços, a encarando firme. — Pelo risco... a Boca banca um advogado, se der r**m. E vinte mil se a missão der certo. Cinco na mão, quinze depois da entrega. Eu, ouvi tudo, levo a mão à boca, em choque. — Não, minha filha… não! A gente dá um jeito! Mas Layla já não ouvia direito. Tito levantou-se devagar, olhando pra nos duas. — Pensa aí. Mas não demora. O relógio da favela não espera ninguém. E saiu pela porta. A noite caiu pesada no Alemão. As luzes da lanchonete piscavam, uma delas já queimada, como se refletisse o estado de espírito de quem estava aqui dentro. Layla caminhava de um lado pro outro atrás do balcão, o coração disparado, as mãos frias. eu, sentada numa cadeira velha, chorava em silêncio, como se cada lágrima tentasse impedir a escolha da minha sobrinha. — Não faz isso, minha filha… — sussurro a ela, a minha voz embargada. — Isso não é vida pra você. Você não entende esse mundo... Layla paro, respiro fundo, e olho a para me com firmeza. Pela primeira vez, parecia maior do que o medo. — Eu também não entendo o que é ver a senhora desesperada, devendo pra gente que resolve tudo com bala. Eu não vim pro Brasil pra enterrar ninguém. Eu seguro o braço dela, suplicando. — Mas é perigoso demais… — Eu sei. Mas já penso o que eles podem fazer com a senhora se eu não for? O silêncio respondeu por mim. A noite avançava lenta no Alemão. A lanchonete estava fechada. Layla, encostada no balcão, olhava fixo para Tito. O rosto dela ainda carregava traços de medo, mas a sua voz saiu firme. — Eu topo. Eu, sento numa cadeira ao lado, balanço a cabeça com os olhos marejados. Não queria que ela passasse por isso por culpa minha. — Não, minha filha… por favor, não faz isso. Eu dou um jeito, eu falo com alguém…, mas isso não. Layla olho pra mim com carinho, mas também com uma decisão já tomada. — Tia… a senhora já fez tudo por mim e pela Rana. Agora é a minha vez. Se é isso que vai tirar a gente desse buraco, então eu vou. Tito observava tudo em silêncio, braços cruzados, expressão neutra. Depois de alguns segundos, ele falou: — A primeira visita é sábado. Direto em Bangu. Layla sentiu um frio subiu pela minha espinha, mas manteve a postura. — E até lá? — Amanhã cedo eu trago os papéis — disse Tito. — Precisa assinar pra entrar como visita íntima. O nome já tá na lista, só falta o protocolo e tua digital. A papelada cobre tudo. Se cair, a Boca garante advogado. Mas tem que seguir tudo à risca. Eu levanto num impulso, as lágrimas escorrendo pelo meu rosto. — Isso não é vida! Vocês tão tratando minha sobrinha como moeda de troca! Ela não entende esse mundo! Tito olho pra me com um misto de respeito e dureza. — Dona Selma… eu entendo sua dor. Mas foi a senhora que puxou o fio quando pegou o dinheiro. Agora não tem mais como voltar atrás. Só tem como pagar. Layla segurou a minha mão, apertando com força. — Vai ficar tudo bem. Eu prometo. Mas até ela sabia que, dali pra frente, nada mais seria simples.
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