Mayara Campbell
Acordo antes mesmo do despertador tocar.
O silêncio da casa é quase reconfortante, mas dentro de mim, o barulho nunca cessa. Me levanto, amarro o cabelo de qualquer jeito e sigo para a cozinha. Começo a preparar o café como uma rotina automática, como se seguir a ordem das tarefas me salvasse do caos que me habita.
Enquanto o cheiro do café preenche o ar, minha mente insiste em voltar para aquele momento. Aquele dia. Aquela briga.
"SUA VAGABUNDA."
"PUTA."
"DESGRAÇADA."
"AMALDIÇOADA..."
As palavras dele ainda martelam nos meus ouvidos como se tivessem sido ditas agora. Sinto o estômago revirar. Meus dedos tremem ao mexer na colher. Me sinto suja. Imunda. Um erro de pessoa. Um lixo humano em forma de mulher.
O café fica pronto. Levo a xícara até a mesa e subo devagar. Entro no quarto esperando encontrá-lo dormindo, mas Gustavo já está acordado, rolando distraidamente o feed do celular.
Aproximo-me, tentando ignorar o medo que me corrói. Me inclino, busco seus lábios com os meus. Ele vira o rosto. Me recusa como se eu fosse uma doença.
Insisto. Meus dedos tocam sua mão e a guiam até meus s***s. Um último apelo. Um pedido mudo, desesperado, para ele lembrar que um dia me desejou.
— NÃO. — ele diz, firme e frio.
— Gustavo, por favor... me perdoa. Eu juro que isso nunca mais vai acontecer. Eu cometi um erro, um único erro... será que não mereço nem uma chance? Eu sou tão desprezível assim?
Ele larga o celular com força sobre o colchão.
— Me trair não foi um erro. Foi uma escolha. Você escolheu isso. Agora faz o favor de sair daqui. Vai buscar meu café. E acorda o Anthony.
— Gustavo, eu fui fraca... eu... eu só queria atenção... eu...
— NÃO ME TRAIU? Foi só conversa? Até quando vai se enganar com essa desculpa barata? — ele se altera, levantando a voz.
As lágrimas escorrem antes que eu consiga segurar. Eu odeio isso. Odeio chorar. Mas não sei como parar.
— De novo isso, Mayara? — ele revira os olhos. — Você parece uma criança mimada chorando o tempo inteiro. Eu detesto quando você chora por tudo. É insuportável.
— Me desculpa... — sussurro, quase engolindo as palavras entre soluços.
— Pelo menos tenta não fazer isso na frente do Anthony. Já não basta o que ele tem que aguentar. Se poupa, mas principalmente, poupa ele. Da vergonha.
Sinto um soco no peito. Engulo o resto do choro e balanço a cabeça.
— Tá certo.
Saio do quarto destruída. Entro no quarto do nosso filho, respiro fundo e coloco um sorriso falso no rosto.
— Filho, hora de acordar. Já tá na hora da escola.
Anthony resmunga, e eu o ajudo a levantar. Preparo sua roupa, deixo tudo pronto. Depois volto para a cozinha, pego a xícara que preparei mais cedo e levo o café para Gustavo na cama. Como uma empregada obediente. Como uma sombra.
Ele nem agradece.
Me visto. Prendo o cabelo de novo. Coloco o tênis. Hoje eu vou para a academia. Não porque quero. Mas porque já paguei e me obrigo a cumprir pelo menos isso.
Talvez, entre um abdominal e outro, eu esqueça por trinta segundos que estou quebrada por dentro.
Mas no fundo... sei que não vou.
(******)
Entro na academia, coloco os fones de ouvido, subo na esteira... mas tudo parece embaçado. Meus pés se movem, mas minha mente está a quilômetros dali.
Gustavo.
Sempre ele.
Tento focar. Contar as repetições. Respirar como mandam. Mas não adianta. Meu corpo está presente, mas minha cabeça está num looping de dor, culpa e palavras que me ferem como lâminas.
Desisto rápido. Finjo que treinei o suficiente e volto pra casa. Ainda tenho almoço pra fazer, a casa pra arrumar e, daqui a pouco, preciso buscar o Anthony. A rotina sempre vence.
Enquanto varro a casa, coloco o arroz no fogo e dobro roupas, as horas voam. Tomo banho, visto qualquer coisa e vou a pé buscar meu filho.
Sim, a pé.
Porque sou burra demais pra aprender a dirigir.
Foi o que Gustavo disse. E talvez ele esteja certo.
"Limitada", ele costuma dizer. "Mentalmente lenta".
Talvez eu seja. Talvez eu sempre tenha sido.
Anthony sai da escola e sorri quando me vê. Sorrio de volta, mesmo que esteja em pedaços. Voltamos pra casa de mãos dadas. Ele ainda é meu. Meu pequeno.
Enquanto espero o Gustavo chegar, deixo o almoço pronto e fico quieta. Mas meu silêncio dura pouco. Eu sempre acabo falando. Sempre acabo pedindo perdão — como se isso apagasse o que fiz.
— Mulher chata do c*****o! Já falei que nunca vou te perdoar. Você escolheu essa situação. — ele diz ao entrar, sem sequer tirar a gravata.
— Amor... por favor, me perdoa. Vamos tentar recomeçar. A gente consegue, eu juro...
— Em que mundo você vive? — ele ri com desprezo. — Que homem perdoa uma mulher que conversava com outro cara? Você me destruiu, Mayara.
— Mas eu nunca te traí, nunca fui pra cama com ninguém. Só foi conversa... eu tava carente...
— Não acredito nisso.
— Gustavo, você foi o meu primeiro. E eu queria que fosse o último. Eu errei, sim, me deixei levar por um cara que foi gentil quando você me ignorava... Mas eu não sou uma vagabunda!
— Pra mim, é sim. Você perdeu o meu respeito. Pra mim, você não vale nada.
— Não fala isso, por favor... eu ainda tenho valor. Eu ainda tenho amor. Ainda tenho caráter...
— Já chega! — ele grita, irritado.
E eu só abaixo a cabeça. Porque ele tem razão. Pelo menos é o que minha mente repete.
Maldita hora em que comecei a conversar com o Lucas.
No trabalho, meu corpo está ali, vendendo peças de roupa, dobrando camisetas, sorrindo forçado pra clientes. Mas minha alma... está em casa. No olhar frio do Gustavo. No desprezo dele.
Mando uma mensagem pra ele. Mais uma.
"Me perdoa."
Ele responde: "Não."
Sinto o nó na garganta, mas respiro fundo. Não posso chorar aqui.
— Mãe, tá tudo bem? — Anthony pergunta baixinho, me olhando com aqueles olhos grandes.
Ele sente. Ele sempre sente.
Levo ele pro trabalho comigo porque não tenho como pagar babá. Tento esconder o caos da vida dele, mas... ele vê. Crianças veem tudo.
Às vezes penso que isso tudo é castigo de Deus. Que eu mereço. Que essa dor é só a colheita do que plantei. E que Gustavo tem razão: eu não tenho mais valor.
O dia passa devagar. Mas chega ao fim. Arrumo tudo, fecho a loja e voltamos pra casa. E tudo se repete. A rotina virou prisão.
Preparo o jantar, Anthony vai pro celular, Gustavo toma banho e se tranca no mundo dele. Depois, como de costume, me manda vídeos de mulheres lindas, sensuais, rebolando, provocando.
“Por que você não fica assim?”, ele pergunta.
Eu queria. Juro que queria.
Mas como?
Trabalho o dia todo, ganho uma miséria, ajudo nas despesas da casa, cuido de tudo. Não tenho tempo, nem dinheiro pra procedimentos estéticos, roupas novas ou lingeries caras.
E, ainda assim, tento. Mas ele não enxerga.
Ele diz que quer que eu seja sexy, mas também reclama que temos um filho. Que eu não posso andar de calcinha pela casa com o Anthony por perto.
E eu entendo.
Mas ele não entende nada.
À noite, deitamos. O quarto está escuro, silencioso. Eu viro de lado, me aproximo dele. Passo a mão pelo peito dele, tentando um carinho.
— Você não me quer mais? — pergunto, baixinho.
— Não. — seco, curto, c***l.
— Gustavo... eu sinto sua falta.
— Deveria ter pensado nisso antes.
— Por favor... — murmuro, tentando beijá-lo.
— Já vai começar?
— Eu te amo...
— Eu quero dormir, mulher. Cala a boca.
Ainda assim, eu insisto. Tiro a roupa devagar. Subo em cima dele, buscando um mínimo de conexão.
Ele fecha os olhos. Não de prazer. Mas de repulsa.
— Sai de cima de mim. — ele diz, empurrando com frieza.
Me visto devagar, com a alma estraçalhada.
— Gustavo, se você quiser, a gente pode tentar... ser como antes...
— Nunca mais seremos como antes. Você sujou tudo. Eu não consigo esquecer. Nem perdoar.
As lágrimas vêm de novo. E, dessa vez, nem tento segurar.
Choro tanto que chego a ficar sem ar. O peito dói como se tivesse levando uma facada invisível.
Tudo que eu queria era um abraço. Só um.
Mas ele vira pro lado, enrola a cabeça no travesseiro e dorme.
E eu? Eu fico olhando o teto, ouvindo o silêncio. Vendo as horas passarem.
E me culpando.
Mais uma vez.
Como sempre.