Infância no morro.
O sol castigava as vielas do morro naquela tarde, mas Matheus e Elias corriam descalços pelas ruas de terra, rindo como se nada mais importasse. Os dois, inseparáveis desde que conseguiam se lembrar, compartilhavam não só as brincadeiras, mas também o mesmo sonho que ecoava nas vozes ao redor: serem grandes no morro.
Eles pararam em frente à birosca do Seu Antônio, uma pequena venda que ficava no topo da ladeira principal. De lá, os garotos tinham a visão perfeita da praça central, onde os homens mais respeitados do morro passavam suas tardes, cercados por motos, ouro no pescoço e olhares de admiração.
— Tá vendo, Elias? É assim que eu vou ser — disse Matheus, apontando com o queixo para o grupo de homens. Ele tinha só dez anos, mas o tom em sua voz era sério demais para um garoto daquela idade.
— Eu também, ué! A gente vai mandar no morro um dia — respondeu Elias, apertando os olhos para enxergar melhor. Ele sempre tentava acompanhar o entusiasmo de Matheus, mas lá no fundo havia algo a mais: um desejo de ser maior, de ser reconhecido, até mais do que o amigo.
Zé Preto, que na época ainda estava em plena forma, sentava-se no centro daquela roda como um rei no trono. Era o "cara" do morro naquela época, o líder que todos respeitavam. Matheus e Elias o observavam com olhos brilhando, admirando o jeito firme com que ele comandava conversas, dava ordens e fazia promessas para os moradores.
— Você acha que ele sabe nosso nome? — Elias perguntou, a voz carregada de admiração.
— Claro que sabe! Todo mundo vai saber um dia. Ele vai ver que a gente não é qualquer um — Matheus respondeu, com uma confiança inabalável.
Um dos homens do grupo percebeu os dois garotos olhando e acenou para eles, dando um sorriso largo. Era Zé Preto. Ele piscou para as crianças e fez um gesto para que se aproximassem. O coração de Matheus disparou, mas ele foi o primeiro a descer correndo a ladeira, seguido de perto por Elias.
— Vocês são filhos de quem mesmo? — Zé Preto perguntou quando os dois chegaram, a respiração ofegante.
— A gente não tem pai, só mãe — disse Matheus com firmeza, enquanto Elias permanecia em silêncio, observando o homem de perto.
Zé Preto deu uma risada curta.
— Isso aí. Vocês só precisam de coragem. E quem sabe obedecer hoje, pode mandar amanhã. Fiquem de olho e aprendam. O morro não perdoa os fracos.
Aquela frase ficou na cabeça dos garotos enquanto subiam a ladeira de volta para casa. Para Matheus, era a confirmação do que já acreditava: ele tinha que ser grande. Para Elias, era um lembrete de que, para chegar ao topo, era preciso mais do que força. Era preciso ser esperto.
E assim, entre brincadeiras e ambições, os dois plantaram as sementes de uma amizade que se transformaria no alicerce — e também na ruína — de suas vidas.
Nos dias seguintes, Matheus e Elias passaram a imitar tudo que viam Zé Preto e os homens do grupo fazerem. Pegavam paus e fingiam que eram fuzis, lideravam as outras crianças do morro como se fossem soldados e faziam as “operações” imaginárias, cada um em um canto das vielas escuras.
— Eu sou o chefe, Elias. Você vai ser o meu parceiro — Matheus dizia, com autoridade.
— Parceiro nada! Eu também posso mandar, tá ligado? A gente divide o morro, metade pra mim, metade pra você! — Elias retrucava, sempre desafiando o amigo, mesmo nas brincadeiras.
Mas, apesar das discussões infantis, eles sempre terminavam rindo, compartilhando o mesmo pedaço de pão ou uma Coca-Cola comprada com as moedas que juntavam. A amizade era tão sólida quanto os muros de concreto do morro, pelo menos naquela época.
Foi numa tarde chuvosa que o encanto infantil deles encontrou pela primeira vez a dureza do mundo onde sonhavam entrar. Enquanto brincavam próximos à birosca de Seu Antônio, um som abafado ecoou pelo morro. Um estampido. Gritos seguiram o barulho, e logo o tumulto tomou conta das vielas.
— É tiro, Matheus! — Elias exclamou, seus olhos arregalados.
Matheus segurou Elias pelo braço e puxou-o para trás de um muro, mas em vez de tremer, ele espiava, curioso, a origem da confusão. Do alto da viela, viram dois homens correndo, suas armas brilhando sob a chuva. Atrás deles, Zé Preto caminhava com passos firmes, acompanhado de outros dois homens, e o som que vinha de trás parecia de passos mais pesados.
— Eles são monstros — murmurou Elias. Sua admiração estava tingida de medo.
— São fortes — corrigiu Matheus. Ele não conseguia tirar os olhos de Zé Preto, que parou na esquina, acendeu um cigarro e simplesmente esperou. Logo, um outro grupo apareceu arrastando os dois homens que haviam tentado fugir.
— Assim se faz no morro. Justiça é rápida — Matheus murmurou, como se estivesse aprendendo a regra número um de um manual invisível.
Mais tarde, a notícia se espalhou. A dupla era de um morro vizinho, tinham desrespeitado Zé Preto, e agora ninguém jamais ousaria fazer o mesmo. Matheus estava fascinado, mas Elias m*l conseguia esconder o impacto daquela cena.
— Cê ainda acha que é fácil, Matheus? Ainda quer ser o "cara"? — ele perguntou naquela noite, enquanto os dois voltavam para suas casas, usando um único guarda-chuva pequeno que nada protegia.
— Não é fácil, Elias — Matheus respondeu com convicção. — Mas eu não vou ser ninguém nesse morro. Vou ser o cara.
Elias apenas assentiu, mas não disse nada. Para ele, o sonho ainda era o mesmo: chegar no topo. Mas naquela noite ele começou a se perguntar se teria coragem de seguir o caminho que Matheus estava tão determinado a trilhar.
E assim, aos poucos, o destino ia moldando não só os caminhos de dois meninos sonhadores, mas também os papéis que desempenhariam em uma tragédia que já começava a ser escrita nas vielas daquele morro.