A notícia correu pelo morro como um chamado à guerra: Zé Preto vai reunir todo mundo na quadra. Ali, entre a poeira do chão batido e o eco das batidas de funk que sempre marcavam o lugar, o coração da comunidade pulsava. Não era qualquer reunião. Todos sabiam que Zé Preto não andava bem e que aquilo significava algo importante.
Matheus chegou com seu habitual porte confiante. Vestindo camisa preta, corrente reluzindo no peito, parecia o retrato do futuro da liderança. Elias, ao lado dele, permanecia em silêncio, mas seus olhos vagavam, analisando os rostos e o clima tenso ao redor.
A quadra foi enchendo de moradores, aliados do movimento e figuras importantes do morro. Vapores, olheiros, seguranças – todos estavam lá. As crianças que brincavam na borda da quadra foram puxadas pelos pais, que esperavam para ouvir o discurso.
Zé Preto apareceu pouco depois, andando devagar, com o peso dos anos e da saúde em ruínas refletido nos passos lentos. Dois homens o ajudaram a subir na mesa improvisada no centro da quadra, e o silêncio caiu.
Ele olhou para a multidão, seus olhos cansados escaneando os rostos que dependiam dele há anos. Levantou uma das mãos, sinalizando que iria começar a falar.
— É uma vida pesada essa que a gente vive aqui — começou ele, com a voz rouca, mas cheia de firmeza. — Eu fui um moleque de rua, igual muitos aqui. Não tinha nada, ninguém acreditava em mim. Mas, com esforço, eu tomei o morro. Transformei isso aqui numa comunidade que os outros respeitam. Vocês sabem disso.
Houve murmúrios de aprovação na plateia. Pessoas acenavam com a cabeça, lembrando os tempos em que Zé Preto teve que se impor com força para proteger a comunidade.
— Mas o tempo passa. E a gente envelhece, cês tão vendo que eu já não tô como antes... — Ele fez uma pausa, tossindo levemente, enquanto um segurança o amparava. — Essa quebrada precisa de alguém pra continuar no comando, e precisa ser alguém de confiança. Alguém que sabe fazer isso crescer, mas sem deixar ninguém pra trás.
Os murmúrios cessaram. O ar ficou pesado. Todos sabiam o que estava vindo.
— Esse alguém é o Matheus. — Zé Preto virou o olhar firme para ele, e depois para os outros. — Esse moleque cresceu comigo, aprendeu comigo. Hoje, eu passo o comando pra ele. Ele é o novo dono desse morro.
Um burburinho percorreu a multidão. Alguns acenavam com aprovação, outros cochichavam entre si, tentando processar a mudança. Matheus, por sua vez, manteve a calma, mas por dentro sentia o peso da responsabilidade caindo sobre seus ombros.
Zé Preto fez um sinal com a mão, pedindo silêncio novamente.
— Sei que muita gente vai falar, vai duvidar, vai querer testar ele. Mas eu conheço Matheus. Ele é firme. Ele sabe o que faz. E eu conto com cada um de vocês pra apoiar ele, porque o morro só é forte se a gente estiver junto.
Os olhos de todos se voltaram para Matheus, que agora estava sendo chamado ao centro da quadra. Ele subiu na mesa ao lado de Zé Preto, e o morro prendeu a respiração.
— Primeiro, eu quero agradecer ao Zé Preto. Porque se hoje eu tô aqui, é por causa dele. Ele é mais do que meu chefe. É um pai pra mim. — Matheus olhou para Zé Preto com respeito sincero, antes de virar para os outros.
— Mas o que ele falou é verdade. Eu não cheguei até aqui sozinho, e não vou carregar isso sozinho. Eu conto com cada um de vocês, assim como vocês podem contar comigo. Isso aqui não é sobre o meu nome, é sobre a comunidade. Sobre a gente crescer e proteger o que é nosso.
A fala de Matheus provocou uma onda de aplausos. Era claro que ele sabia como cativar.
Do outro lado da quadra, Elias assistia a tudo com o rosto endurecido. As palmas e os gritos de aprovação para Matheus eram como agulhas espetando seu ego. Ele forçou um sorriso falso, mas a verdade era que o discurso só reforçava sua sensação de deslocamento.
Ele pensou nos anos em que esteve ao lado de Zé Preto, nas vezes em que arriscou a vida. E agora era só Matheus. Sempre Matheus.
E enquanto os moradores comemoravam a transição de poder, Elias permaneceu em silêncio, alimentando sua própria conspiração.
O som pesado do funk vibrava pelas paredes da comunidade. Lá em cima, no baile, os moradores celebravam como há muito tempo não se via. O morro tinha um novo comando, e para muitos, aquela festa era um renascimento, uma promessa de dias mais prósperos.
Matheus estava rodeado de aliados e admiradores, mas ele sabia que liderança era mais do que respeito ou festa. Era confiança, e ele não podia carregar o peso sozinho.
Caminhando pelo baile, seus olhos encontraram Elias, que estava isolado em um canto, observando o movimento enquanto mexia na garrafa de cerveja em suas mãos. Ele tinha um sorriso pequeno no rosto, mas o olhar distante e cheio de pensamentos.
Sem hesitar, Matheus se aproximou. Ele abriu os braços e puxou o amigo para um abraço firme.
— Irmão, você sabe que não cheguei aqui sozinho. Você é meu braço direito, sempre foi, e isso não vai mudar. Eu e você, Elias. Nós dois vamos liderar esse morro. Juntos.
Elias parou por um momento, surpreso. Ele olhou para Matheus e viu sinceridade nos olhos do amigo, mas algo dentro dele hesitava em acreditar. Mesmo assim, um sorriso surgiu em seu rosto, mais para esconder o que realmente sentia do que por pura felicidade.
— Tô contigo, irmão. Sempre estive — respondeu ele, retribuindo o abraço com força.
Naquele instante, o baile pareceu mais distante. Apenas os dois importavam, os dois moleques que cresceram juntos na rua, que juraram cuidar um do outro.
Quando o abraço se desfez, Matheus puxou Elias para o meio da festa. Com um sorriso confiante, ele subiu em uma das caixas de som e levantou sua garrafa.
— Ei, família! — gritou ele, e o som da música parou enquanto todos olhavam para ele. — Esse morro não é só meu, não. Quem tá comigo desde o começo é o Elias. O cara que tá sempre ao meu lado. O braço direito do comando. Juntos, nós dois vamos levar esse morro pra outro patamar.
A multidão gritou e aplaudiu, levantando seus copos e garrafas em aprovação. Elias, agora no centro das atenções, manteve o sorriso, mas por dentro sentia o peso do momento. As palavras de Matheus soavam verdadeiras, mas ele não conseguia evitar o incômodo ao ver o quanto todos olhavam para Matheus com admiração e respeito que ele não sentia ser seu.
A festa continuou em alta. Porém, nos cantos escuros da mente de Elias, o ciúme e a raiva se escondiam como uma sombra.