Questão de tempo

910 Words
Na esquina principal do morro, entre as vielas coloridas e cheias de vida, ficava a padaria onde Lara trabalhava. Era pequena, mas era o coração das manhãs da comunidade, onde as pessoas iam buscar pão quentinho e conversar sobre a vida. Lara, com seu sorriso doce e disposição para ajudar, fazia o ambiente ser ainda mais acolhedor. Seu dia começava antes do sol nascer. Preparava as prateleiras, organizava o balcão e já atendia os primeiros fregueses antes das seis. Trabalhava sem reclamar, sempre com uma palavra gentil para todos que passavam pela porta. Mesmo em um lugar onde o perigo era uma constante, Lara parecia viver em uma bolha de tranquilidade. Sua mãe, Dona Iraci, a educara com rigor, sempre lhe ensinando os perigos que rondavam o morro. — Minha filha, ouça bem o que eu vou te dizer — Dona Iraci repetia constantemente. — Esses bandidos aí podem ter todo o dinheiro do mundo, mas nunca vão trazer paz pra sua vida. Não quero você envolvida com nenhum deles, ouviu? E Lara ouvia. Mantinha distância. Não fazia amizades com os homens do movimento, não aceitava brincadeiras e evitava qualquer olhar mais demorado. No entanto, a vida no morro era imprevisível. Lara já tinha percebido que não era apenas os moradores comuns que frequentavam a padaria. Alguns vapores e homens do movimento também apareciam para tomar café ou levar lanche para seus turnos. Ela sempre os tratava com o mesmo respeito e formalidade, sem se envolver. Mas nos últimos tempos, ela notou que Matheuzinho, o nome em ascensão no morro, estava passando por ali com mais frequência. — Bom dia, Lara — ele disse certa manhã, encostado no balcão com um sorriso fácil que arrancava suspiros por onde passava. — Bom dia — respondeu ela, com o mesmo tom neutro que usava para todos. Lara sabia quem Matheuzinho era e o que representava. Seu nome já ecoava como o novo dono do morro. Sua mãe sempre dizia que o poder podia ser sedutor, mas ela mantinha firme sua postura. Matheuzinho era educado, nunca passava do limite. Mas sua presença parecia mais frequente, e seus olhos demoravam-se um pouco mais sobre Lara do que em qualquer outra coisa na padaria. Lara fingia não perceber, mas no fundo não conseguia ignorar. Entre servir os fregueses e organizar as bandejas, encontrava-se pensando na frequência com que ele surgia e no tom sempre leve e brincalhão de suas palavras. Será que estava imaginando coisas? Ou seria apenas mais uma pessoa do morro tentando tratar todos com respeito? Ela se prometeu que não deixaria aquilo tomar espaço em sua mente. Sua mãe tinha razão. A última coisa que Lara queria era ser vista como mais uma moça envolvida com a liderança. Mal sabia ela que sua tranquilidade estava prestes a ser testada, e seu caminho acabaria cruzando o de Matheuzinho de maneiras que nem ela nem sua mãe poderiam prever. O sol escaldante parecia pesar ainda mais nas ladeiras do morro, mas Lara, como sempre, subia apressada, com uma sacola cheia de pães e um pouco de farinha para a padaria. Ela seguia em seu próprio mundo, pensando nos compromissos do dia, até que uma voz grossa a chamou. — Lara! Ela parou por um segundo, virando-se lentamente. Era Elias. Ele estava encostado na parede, com aquele sorriso convencido que sempre trazia um incômodo à comunidade. — Lara, você cresceu — disse ele, sem rodeios, enquanto a analisava da cabeça aos pés. — Tá uma bela mulher. Ela ergueu as sobrancelhas, cruzando os braços. — Bom dia pra você também, Elias — respondeu seca, já se virando para continuar seu caminho. — Que tal sair comigo? — disse ele, dando dois passos à frente, tentando bloquear sua passagem. Lara parou, respirou fundo e se virou para encará-lo. — Eu não saio com traficante. Elias soltou uma risada que soou mais ameaçadora do que divertida. — Cê sabe com quem tá falando, garota? — perguntou, aproximando-se um pouco mais. — Sei, sim. Por isso tô dizendo. Ela olhou-o firme, sem baixar a cabeça, o que o deixou visivelmente desconcertado. Elias não estava acostumado a ouvir negativas, muito menos de alguém como Lara, que era discreta e evitava qualquer tipo de confusão. Ele deu um passo para o lado, abrindo caminho, mas com um brilho nos olhos que denunciava suas intenções. — Um dia você vai mudar de ideia, Lara. É questão de tempo. Ela nada respondeu, apenas apertou o passo, descendo a ladeira sem olhar para trás. Elias ficou parado ali, assistindo-a partir. Seus punhos cerrados demonstravam sua irritação. Desde que Matheus havia assumido o comando do morro, Elias já sentia que sua influência havia diminuído. Ele sabia que os moradores não gostavam dele, mas ser rejeitado por Lara, ainda mais com tanta firmeza, o atingia em um lugar sensível: seu ego. — É só uma questão de tempo — murmurou para si mesmo, dando de ombros e descendo o morro. Mais tarde, porém, ao saber que Matheus tinha conversado com Lara no baile alguns dias atrás, Elias sentiu o estopim do ciúme acender. Para ele, aquilo já não era só sobre a garota da padaria, mas sobre Matheuzinho estar roubando tudo o que, na sua visão, deveria ser dele — respeito, admiração. E enquanto Elias remoía seus próprios sentimentos, Lara tentava esquecer o breve encontro, sem saber que estava no centro de uma disputa que poderia colocar muito mais em jogo do que ela imaginava.
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