Pesadelo Narrando
Cinco anos.
Cinco anos olhando pro mesmo teto sujo, ouvindo os mesmos barulhos de ferro batendo, gente gritando, homem enlouquecendo aos poucos. Cinco anos contando o tempo não pelo calendário, mas pelas cicatrizes novas que aparecem dentro da gente.
Peguei doze anos de pena. Doze.
E quem acha que isso me quebrou não entende nada sobre mim.
Tô preso, mas nunca deixei de ser dono do morro do Vidigal.
Eu não escolhi ser dono do morro.
Eu o herdei.
Meu pai mandava no Vidigal muito antes de eu entender o que aquilo significava. Cresci vendo respeito, medo e silêncio abrirem caminho por onde ele passava. Pra mim, ele não era o traficante temido. Era só meu pai. O homem que me ensinou a olhar nos olhos, a não abaixar a cabeça pra ninguém e a nunca prometer o que não pudesse cumprir.
Ele morreu quando eu tinha dezoito anos.
Ainda lembro daquele dia como se estivesse acontecendo agora.
Meu pai estava indo pra serra com a minha mãe. Era pra ser um fim de semana tranquilo. Eles precisavam respirar, sair um pouco da tensão do morro, fingir que eram só um casal comum. No meio da estrada, o carro foi perseguido. Não sei até hoje se foi polícia, rival ou armadilha encomendada. Só sei que o carro perdeu o controle e despencou na ribanceira abaixo.
Quando cheguei no hospital, o cheiro de sangue e álcool me deu vontade de vomitar. Médicos correndo. Gente gritando. Minha mãe desacordada numa maca. Meu pai… parado demais.
Teve um traumatismo craniano.
Essa palavra me destrói até hoje.
Assinei papel sem entender direito. Minha mão tremia, mas meu rosto não. Nunca chorei ali. Não dei esse gosto a ninguém. Segurei tudo dentro do peito, como aprendi a fazer desde cedo.
Minha mãe sobreviveu por milagre. Fraturas, cirurgias, meses de hospital. Ela acordou perguntando por ele. E fui eu quem teve que dizer que ele não ia voltar.
Foi naquele dia que eu deixei de ser só um moleque criado no morro.
Foi naquele dia que o Pesadelo nasceu.
Assumi o que era dele. O morro, os homens, as decisões. Tinha gente que achou que eu ia cair rápido. Que eu não aguentaria a pressão. Que era só questão de tempo até alguém tentar tomar tudo de mim.
Tentaram.
E falharam.
Aprendi cedo que sentimento é fraqueza. Que confiar demais custa caro. Que amar errado mata. Me tornei frio porque o mundo me ensinou assim. Cada ordem que dei, cada escolha dura, cada vida perdida… tudo virou pedra dentro de mim.
Hoje dizem que eu não sinto nada por ninguém.
E quase acredito nisso.
Quase.
Porque existe uma pessoa que ainda consegue ver algo além da armadura. Uma única pessoa que atravessa qualquer muralha que eu levante.
Minha mãe. Minha rainha.
Com ela, eu não consigo fingir. A voz falha, o peito aperta. É o único momento em que eu viro só filho. Só homem. Só alguém que sente falta de um abraço.
Faz cinco anos que eu não sinto o cheiro dela.
Cinco anos sem o toque das mãos dela no meu rosto.
Cinco anos sem ouvir pessoalmente dizer que vai ficar tudo bem.
A gente conversa pelo celular. Eu faço questão de ligar toda semana. Às vezes mais. Ela reclama, sempre a mesma coisa, que tá com saudades, que quer vir me ver.
Mas não é seguro ela vir me visitar. Não aqui. Não desse jeito. Aqui dentro, qualquer fraqueza vira arma. E minha mãe é a maior fraqueza que eu tenho.
Só sei de uma coisa: falta pouco.
Mais um ano.
E quando eu sair daqui, vou abraçar minha mãe como nunca abracei ninguém. Vou pisar no meu morro como homem livre. Vou resolver tudo que ficou pendente.
Aqui dentro, tudo funciona na base do dinheiro e do medo. E eu tenho os dois. Já tentei comprar juiz, promotor, quem fosse preciso para reduzir minha pena. Nenhum aceitou. Não por moral, isso aqui não existe, mas porque pra eles é mais vantajoso eu continuar preso.
O que eles não entendem é que jaula nenhuma segura quem nasceu pra mandar.
A nota que eu pago pra ter algumas regalias aqui dentro não tá escrita em lugar nenhum. E eu pago sem reclamar. Porque conforto, nesse inferno, é poder.
Minha cela é só minha. Porta reforçada, colchão melhor do que muita gente lá fora tem. Chuveiro com água quente, coisa rara por aqui. Comida separada, trazida de fora, porque eu não como essa lavagem que eles servem pros outros presos. Uma p**a por semana, limpa, escolhida, silenciosa. E o mais importante de tudo: meu celular.
Sem celular, eu não mando nem na minha própria respiração.
Com ele, eu mando em tudo.
Mesmo preso, nada acontece no Vidigal sem passar por mim. Nada sobe, nada desce, nada muda. Cada esquina, cada boca, cada entrada… tudo passa pela minha palavra. Quem segura as pontas lá fora é o Galego. Meu sub. Meu parceiro. Homem de confiança, desses que não se acha fácil.
Ele segura o morro como se fosse meu braço direito fora do corpo.
Fui preso numa invasão pesada. Daquelas, que eles fazem questão de mostrar na televisão para fingir que o Estado existe. Subiram com tudo. Helicóptero, blindado, tropa especializada. Cinco dias de invasão.
Cinco dias.
Meus homens já estavam mortos de cansaço. Bala acabando. Casa caindo. Criança chorando. Morador ferido. O morro virou um caos. E quando chegou no quinto dia, o recado veio claro: se eu não me entregasse, eles não iam recuar.
Eu nunca fui covarde. Nunca.
Mas também nunca fui burro.
Me entreguei.
Não por medo deles, mas pelo meu povo. O Vidigal é minha casa. E eu não ia deixar virar cemitério só para alimentar ego de polícia.
Saí algemado, cabeça erguida, sabendo que aquilo ali era só um intervalo. Cadeia pra mim sempre foi isso: pausa. Nunca ponto final.
Só que cinco anos cansa.
Cansa ouvir promessas de advogado que não cumpre. Cansa esperar juiz que não assina. Cansa saber que sua vida está andando lá fora enquanto você fica parado aqui dentro.
Falta pouco mais de um ano pra eu cumprir o tempo mínimo. Mas eu já tô de saco cheio. Cansado de fingir paciência. Cansado de dormir ouvindo homem chorando do lado. Cansado de grades.
Ou eu saio pela porta da frente…
Ou eu saio pelo buraco na parede.
E alguém vai sangrar nessa história.
Me levantei do colchão e fui até o chuveiro. A água quente bate nas costas e por alguns segundos eu fecho os olhos, fingindo que não tô aqui. Fingindo que tô em casa, no alto do morro, olhando o Rio de cima, sentindo o vento bater no rosto.
Mas a realidade volta rápido.
Meu celular vibrou em cima da cama. Mensagem do Galego.
— Chefe, deu um problema.
Problema.
Essa palavra nunca vem sozinha.
Pego o celular, sento, respondo curto:
— Fala.
Ele demora alguns segundos. Galego não costuma demorar. Quando demora, é porque tá pensando como falar.
— Advogado entrou em contato para avisar que mudaram as regras da visita íntima.
Meu maxilar trava.
— Como assim?
— Agora só entra esposa registrada.
Eu fico em silêncio. Não porque não entendi, mas porque entendi demais.
Isso não é regra.
Isso é provocação.
Eles sabem que esse tipo de coisa me atinge. Sabem que mexer com visita íntima é mexer com poder. Aqui dentro, quem não recebe visita perde respeito. Perde status. Perde controle.
Eles querem me enfraquecer.
Dou uma risada curta, sem humor.
— Desde quando isso?
— Desde essa semana.
— E desde quando eu sigo regra?
— Dessa vez tão batendo o pé, chefe.
Fecho os olhos. Respiro fundo.
Beleza.
Se querem brincar, a gente brinca.
— Então arruma uma esposa.
A resposta demora. E quando vem, vem pesada.
— Já pensei nisso… mas tem que ser alguém limpa. Sem ficha. Sem problema.
É aí que meu cérebro começa a trabalhar.
Casamento.
Uma assinatura.
Um nome no papel.
Não é amor. Nunca foi.
É estratégia.
— Você conhece alguém? — pergunto.
— Conheço uma menina.
— Fala.
— Marcela.
O nome não me diz nada de imediato. Mas Galego não fala o nome à toa.
— Quem é?
— Amiga da Lara. Faz faculdade, mas vai precisar de dinheiro já que foi despedida hoje.
Eu fico quieto. Ouço. Analiso.
Isso muda tudo.
Gente desesperada é gente previsível.
E a previsibilidade é vantagem.
— Ela já sabe? — pergunto.
— Não. Mas precisa de dinheiro.
Encosto a cabeça na parede fria da cela.
A imagem começa a se formar na minha mente. Uma garota comum, precisando de ajuda. Alguém que aceite um acordo porque não tem escolha.
— Ela vai aceitar?
— Se você pedir… vai.
Não gosto dessa frase. Não por pena, isso eu não sinto mas porque poder demais sempre cobra preço.
— Chama ela. Hoje à noite.
— Beleza.
Desligo.
Fico alguns minutos parado, olhando pro nada. Não penso nela como mulher. Não penso nela como esposa. Penso nela como solução.
Só isso.
Mas alguma coisa… incomoda.
Talvez seja o nome.
Talvez seja saber que vou puxar alguém inocente pra dentro do meu mundo.
Afasto o pensamento. A fraqueza não combina comigo.
Ainda assim, sinto uma pontada estranha no peito. Rápida. Incômoda.
Ignoro.
Levanto, coloco a camisa, ajeito o cabelo no reflexo torto do espelho de metal. O homem que me encara de volta não parece preso. Olhar frio. Postura firme. Cicatrizes que contam histórias que ninguém ousa perguntar.
Eu mando até daqui.
E hoje, mais uma vez, a vida vai provar isso.
Marcela ainda não sabe…
Mas a partir de hoje, o destino dela cruza com o meu.
E ninguém cruza o meu caminho sem sair transformado.