Leonardo Calazans nĂŁo estava acostumado a sentir medo.
Mas naquela manhã, ele o reconheceu pela primeira vez em anos — não como pânico, mas como um incômodo fundo, um pressentimento ácido, como se o chão sob seus sapatos de couro italiano começasse a ceder.
O nome de Raul voltara aos sussurros dos corredores corporativos.
A matĂ©ria de LetĂcia estava prestes a ser publicada em nĂvel nacional, e sua equipe jurĂdica já alertava:
— “Se o áudio for autenticado, não podemos impedir a publicação. A liberdade de imprensa vai proteger ela.”
Leonardo desligou o telefone e passou a mão pelos cabelos com força.
> "Eles acham que podem destruir o que eu construĂ."
"EntĂŁo eu destruo primeiro."
Ele pegou o celular e discou um nĂşmero sigiloso.
— Tenho uma lista de jornalistas. Quero dossiês falsos circulando até amanhã. Distorçam. Invertam. Paguem. E inventem algo sobre ela também. A Dama de Vermelho. Mostrem que ela é só mais uma oportunista.
— Alguma restrição?
— Nenhuma. Quebrem ela na reputação, se não puderem tocar no corpo.
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Enquanto isso, no apartamento simples e silencioso, Atena acordava antes do sol nascer.
Fazia dias que o medo era constante. Mas naquela manhĂŁ, havia algo diferente em seu peito:
Clareza.
Ela passou os dedos por uma tela em branco, encaixada no cavalete.
Há meses não pintava nada novo. Nada com verdade. Mas agora... havia algo saindo de dentro dela, como lava quente de um vulcão contido há anos.
Começou devagar. Tons de azul e branco.
Depois traços mais vivos. Vermelhos, mas não violentos.
A imagem ainda era abstrata, mas pulsava.
Era a imagem de algo novo nascendo.
Ela ainda não sabia o que — mas não era dor.
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Noah, ao acordar, a encontrou ali, concentrada, suja de tinta, sorrindo sozinha.
— Achei que você nunca mais fosse pintar — disse ele, encostando-se no batente da porta.
— Nem eu. Mas... o medo mudou de lugar.
— Como assim?
Ela virou-se para ele, os olhos mais calmos do que nos Ăşltimos meses.
— Antes eu morria de medo do que ia acontecer se eu enfrentasse o Leonardo. Agora, tenho medo do que aconteceria se eu não enfrentasse. Se eu deixasse tudo isso me consumir pra sempre.
Noah se aproximou. NĂŁo a tocou. SĂł a observou.
— VocĂŞ nĂŁo vai ser sĂł lembrada como vĂtima, Atena.
— Eu sei. Porque agora, eu mesma tô escrevendo a minha história.
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Do outro lado da cidade, LetĂcia sentava-se diante de um cafĂ© velho, o notebook aberto, e o cursor piscando sobre o tĂtulo do prĂłximo artigo.
Ela respirou fundo. Sabia o que aquela matéria significaria.
Era a queda de um império.
Mas o preço seria alto.
E, por isso, enviou a seguinte mensagem a Matheus:
📲 “Está pronto? Porque quando isso sair… não vai ter volta.”
Ele respondeu em menos de um minuto.
📲 “Eu esperei minha vida inteira por isso. Vamos até o fim.”
Na manhĂŁ de quinta-feira, as redes sociais explodiram com uma nova “reportagem exclusiva” publicada em um dos maiores sites de entretenimento do paĂs.
TĂtulo chamativo:
📰 “A verdade sobre a misteriosa Dama de Vermelho: dançarina, amante e oportunista?”
A matéria usava fotos antigas da boate — algumas em trajes provocantes, outras borradas — e sugeria que Atena era uma figura “enigmática” que “poderia estar manipulando um jovem universitário” e “se promovendo em cima de uma acusação frágil”.
> “Fontes próximas afirmam que ela já se envolveu em trocas de favores dentro da boate.”
“Especialistas questionam o uso polĂtico de sua histĂłria.”
“Coincidência demais que tudo isso surja quando ela se aproxima de um bolsista modelo.”
O texto nĂŁo dizia nada diretamente. Mas dizia tudo.
Insinuava. Plantava. Contaminava.
Noah leu cada linha com o sangue gelando.
Atena também.
— Ele tá tentando me apagar publicamente — disse ela, largando o celular sobre a mesa.
— Não. Ele tá desesperado. E todo mundo que já foi esmagado por ele vai perceber isso agora — respondeu Noah.
Mas ainda assim... doĂa.
Atena se trancou no quarto por horas. NĂŁo por vergonha. Mas para nĂŁo gritar.
> Ela havia trabalhado tanto para ser vista como algo além do que vestia. E agora, o mundo voltava a reduzi-la ao que Leonardo queria que ela fosse: um produto quebrado, descartável, fácil de desacreditar.
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Enquanto isso, LetĂcia e Matheus acompanhavam o impacto do texto.
— Ele fez o movimento esperado — disse LetĂcia. — Agora vem a parte boa: a reação.
— Já tem jornalistas de verdade desmentindo a matéria. E...
— E?
Matheus abriu o celular. Mostrou uma mensagem.
Era de um nĂşmero desconhecido.
📲 “Não posso aparecer. Mas trabalhei com Leonardo. Tenho documentos. Ele tentou me comprar também. Se me garantirem p******o, eu falo.”
Assinava com um nome inesperado: VerĂ´nica Camargo.
— Quem Ă© ela? — LetĂcia perguntou.
Matheus respondeu lentamente.
— Foi assessora de imprensa dele por três anos. A responsável por “limpar” a imagem dele cada vez que algum escândalo surgia.
LetĂcia sorriu, mas sem alegria.
— Se ela falar... a imprensa toda vai ter que ouvir. Porque ela conhece a máquina por dentro.
— E já começou a desmoronar — disse Matheus, sério. — E quando isso acontecer... a Atena vai deixar de ser manchete. Vai ser referência.
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Naquela noite, Atena olhou para a prĂłpria imagem refletida no espelho.
Ela usava moletom e tinha o cabelo preso com uma caneta.
Nada nela parecia poderoso.
Mas pela primeira vez em muito tempo, nĂŁo se sentia diminuĂda.
— Me reduziram, me dobraram, me chamaram de tudo — murmurou sozinha. — Mas ainda tô aqui. E agora, eu não vou mais sumir.
Pegou o celular. Ligou para LetĂcia.
— Você disse que eu podia ficar nos bastidores. Mas acho que tá na hora de eu aparecer também.
LetĂcia sorriu do outro lado da linha.
— Bem-vinda à guerra.
O encontro aconteceu em uma cafeteria discreta, no subsolo de um prédio comercial. Nenhuma câmera. Nenhuma imprensa. Apenas três pessoas sentadas em volta de uma verdade que, até então, só existia nas sombras.
Verônica Camargo não era como Matheus esperava. Jovem, elegante, discreta. Usava óculos escuros mesmo em ambiente fechado e mantinha o casaco fechado até o pescoço, como se estivesse fugindo de um vento que só ela sentia.
LetĂcia colocou o gravador sobre a mesa.
— Está pronta?
Verônica assentiu, sem hesitação.
— Trabalhei com Leonardo Calazans por três anos. Entrei como assistente, saà como cúmplice. Me pagavam para limpar. Apagar rastros. Inventar histórias. Enviar notas à imprensa para desviar a atenção sempre que uma denúncia surgia. Inclusive aquela da dançarina. Lorena.
Matheus apertou o maxilar.
— O que você sabe?
— Que ela foi difamada com base em material que eu mesma editei. Recebi fotos fora de contexto, criei relatos fictĂcios. Ele me entregava tudo pronto. Eu sĂł “plantava” nos veĂculos certos. E recebi bĂ´nus por cada manchete que saĂa com a palavra “instável”, “desequilibrada” ou “interesseira”.
LetĂcia nĂŁo interrompeu. SĂł gravava. Calmamente. Com a precisĂŁo de quem colhia dinamite.
— E sobre Raul? — Matheus perguntou.
VerĂ´nica respirou fundo.
— Nunca o conheci pessoalmente. Mas vi a ficha mĂ©dica dele. Acessos negados. Tratamentos ocultos. O garoto sofria crises de pânico severas e foi registrado em clĂnicas privadas sob nomes falsos. Tudo monitorado por Leonardo. E... eu vi Leonardo assinar a transferĂŞncia do irmĂŁo para uma unidade psiquiátrica privada dias antes do sumiço.
SilĂŞncio.
LetĂcia desligou o gravador.
— Isso é o suficiente para uma bomba. Se você topar entrar como fonte oficial.
VerĂ´nica hesitou.
Depois, tirou os Ăłculos. Os olhos estavam marejados.
— Cansei de limpar a sujeira dele. Quero ser parte da queda.
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Enquanto isso, Atena se preparava para o impensável.
LetĂcia havia conseguido um espaço exclusivo com uma jornalista respeitada — nĂŁo uma “fofoqueira” de internet, mas alguĂ©m sĂ©ria, Ăntegra, que cobria casos de a***o e violĂŞncia há anos.
A entrevista seria gravada no dia seguinte. Seria editada, humanizada, sem espetáculo.
Atena nĂŁo daria respostas. Ela contaria sua histĂłria. Pela primeira vez. Em sua voz.
Noah estava com ela no estúdio improvisado. A equipe era pequena. Só luzes suaves, uma câmera e um gravador.
Ela estava nervosa. Mas nĂŁo hesitante.
— Pronta? — perguntou a repórter, com delicadeza.
Atena olhou para a lente.
Respirou fundo.
E entĂŁo disse, com voz firme:
— Meu nome é Atena Montez. E essa é a última vez que alguém vai contar minha história por mim.
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Do outro lado da cidade, Leonardo observava a tela do computador, onde uma nova manchete já estava sendo redigida.
> “Dama de Vermelho quebra o silêncio e expõe bastidores de um sistema podre.”
Ele fechou o laptop com força.
Cerrou os dentes.
Ligou para alguém.
— Chegou a hora de atacar fora da mĂdia.
— O que quer que façamos?
Leonardo respondeu com frieza:
— Quero que ela sinta o medo fora da tela.
> Porque o fogo nĂŁo destrĂłi o que Ă© forte.
Mas consome quem nĂŁo sabe queimar.