Cadeias Invisíveis

896 Words
KEYLA A pilha de fotos na minha frente parecia um altar do passado. Eu e o Eduardo, jovens, com sorrisos que não chegavam nos olhos. O casamento, com meu vestido apertando a barriga de grávida. As férias na praia, ele com uma cerveja na mão, eu tentando disfarçar a infelicidade. Cada foto era uma corrente me puxando pra um lugar que eu não queria mais voltar. Peguei o isqueiro, a mão tremendo. A primeira chama tocou no papel e começou a se espalhar, devorando nossa imagem. As lágrimas escorreram quentes pelo meu rosto, mas não era de saudade. Era de alívio. Era de luto por uma vida que nunca tinha sido realmente minha. Queimei tudo, uma por uma, até só sobrar um monte de cinzas pretas no fundo da pia. Era simbólico demais. Tava queimando minha prisão. Aí, a porta bateu. Era o Douglas. Ele entrou todo animado, mas a expressão dele mudou quando me viu, com o rosto manchado e a pia cheia de cinzas. — Mãe, que que foi? Por que você não tá feliz com a volta do pai? Por que tá queimando as fotos? — ele perguntou, a voz carregada de uma confusão que partiu meu coração. Meu Deus, como eu ia explicar? Como eu ia dizer pro meu filho que a felicidade dele significava a minha destruição? Que eu não aguentava mais a ideia de voltar a ser a esposa do Eduardo, de deitar naquela cama e sentir o cheiro de outro homem na minha pele, o gosto do Ben ainda na minha boca? — É… é que é complicado, filho — gaguejei, limpando o rosto apressadamente. — A gente… eu preciso de um tempo, entende? Dez anos é muito tempo. As coisas mudam, as pessoas mudam muito. Ele não entendeu. Como ia entender? Ele só via o pai herói voltando pra casa, a família se reunindo. Ele não via as correntes. — Tempo pra que, mãe? O pai tá voltando! A gente vai ser uma família de novo! — Douglas isso não tem nada com você, é sobre eu e seu pai. — eu disse dando um fim no assunto. O Douglas se levantou frustado, andando de um lado ao outro. — Eu encontrei isso no carro do Ben. Como foi parar lá? — Ele disse chamando minha atenção. Ele balançava a minha pulseira, a que ele mesmo me deu. Que eu perdi no carro do Ben um dia desses. — Ele... — eu aguentei — ele me encontrou no pé do morro com sacolas pesadas e me ajudou. Você nunca me ajuda com as compras. Ele ergueu e abaixou as sobrancelhas, como quem diz "ok" e me entregou a pulseira. Ele foi na cozinha e eu suspirei pesado. Assim que ele foi embora, eu não aguentei e peguei o celular. Precisava do Ben. Precisa ouvir a voz dele, sentir o cheiro dele. Combinei um encontro rápido no beco atrás da igreja, o nosso lugar. Quando ele chegou, eu tava toda tremendo. — Ben, isso tá me matando por dentro — soltei, as palavras saindo entre lágrimas. — Precisamos terminar. Antes que o Eduardo chegue. Antes que o Douglas descubra. É o melhor pra todo mundo. Isso que estamos vivendo é... é completamente errado. A expressão dele endureceu na hora. Os olhos, que às vezes ficavam doces pra mim, viraram gelo. — Terminar? — a voz dele saiu um rosnado baixo. — Você é minha desde aquela primeira vez na sua cama, Keyla. Desde que você me mostrou o que era prazer de verdade. Você acha que eu vou deixar você voltar pra aquele merda? Não. Você. É. Minha. Ele me puxou contra ele, e o beijo não foi de despedida. Foi de posse. Foi de fome. Suas mãos agarravam minha cintura com uma força que ia deixar marca, e eu, fraca, me entreguei. Era errado, era perigoso, mas naqueles segundos, era a única coisa que fazia sentido. A gente se perdeu naquele beijo, esquecendo do mundo, do perigo. E foi aí que eu vi. Lá, na ponta do beco, uma silhueta, parecia demais o Douglas. Parado, imóvel, nos observando. O meu coração parou no meu peito. A gente se afastou na hora, rápido, e ele sumiu na escuridão. Mas o estrago tava feito. Ele ou quem quer que seja, tinha nos visto. A noite foi a pior da minha vida. Sozinha na cama, abracei a camiseta que o Ben tinha deixado pra trás outra vez. Cheirei o perfume dele, o cheiro de homem, perigo, poder, de amor proibido que tinha virado meu oxigênio. Cada respiração era uma facada. Eu amava aquele menino. Amava de um jeito que nunca amei ninguém. Mas amava meu filho também. E ali, no meio daquela guerra, eu tava machucando todo mundo. No dia seguinte, fui até a rodoviária. Comprei uma passagem de ônibus para São Paulo. Só de ida. Data: um dia antes da soltura do Eduardo. Entre ser a mãe que meu filho merece e a mulher que meu amante precisa, eu só via uma saída — desaparecer. Era covarde? Era. Mas era a única forma de não ter que escolher. De não destruir a família do meu filho com as minhas próprias mãos. De não ver o ódio no olhar do Ben se eu escolhesse meu filho. Eu ia embora. Ia sumir. E talvez, assim, todo mundo pudesse ser feliz sem mim.
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