MATEMÁTICO
Cara, o pátio da prisão é um cinema de repetição. Todo dia o mesmo filme triste: uns caras jogando bola com umas folhas de caderno amassadas, outros fumando um bagulho duvidoso no canto, a torre dos guardas lá no alto, e o muro. Sempre o maldito do muro. Eu tô aqui, encostado na parede, olhando essa p***a toda, mas minha cabeça tá longe.
Tá nos números.
Sempre nos números.
Faltam mil oitocentos e vinte e seis dias. Ou mil oitocentos e vinte e cinco, se contar que hoje já tá quase no fim. Meus dedos batem na perna, uma batida seca, marcando o ritmo. Um, dois, três... cento e trinta e cinco. É meu mantra. A única coisa que me segura na linha. A data de saída. 18 de maio. Parece uma data de outro mundo, um conto de fadas que eu não devia acreditar, mas é a única coisa real aqui dentro.
Às vezes, eu fecho os olhos e me vejo lá no banco. Ar condicionado ligado no talo, o cheiro de café fresco, a minha bancada do caixa organizada, cada papel no seu lugar.
Eu era bom com números.
Sempre fui.
O problema é que eu era bom demais. O gerente viu isso. Me chamou pra um "esquema especial". Um desvio aqui, outro ali, ninguém ia notar.
Eu, um o****o, caí que nem um pato.
Pensei no Douglas, na Keyla, numa vida melhor, num carro novo.
Erro clássico de um pobre precisando de dinheiro rápido e fácil.
O único erro matemático da minha vida, e me custou dez anos.
O Douglas... meu filho. Tinha oito anos quando eu entrei aqui. Lembro do rostinho dele, assustado, sem entender por que o pai tava sendo levado. E agora? O que ele é? Ele é traficante. Braço direito do tal do Ben. O dono do morro agora.
O Ben.
Nunca botei os olhos nele, mas conheço a história. O Brutus, o pai dele, passou um tempo aqui comigo na mesma cela. Maluco quietão, mas duro na queda. Contou algumas coisas do filho, com um orgulho escondido na voz. Moleque criado pela madrasta, com educação e princípios, tomou conta do morro com 17 anos quando o pai foi preso. E o Brutus? O Brutus saiu. Não tinham provas concretas contra ele. O cara é dono do morro, traficante, assaltante, e até assumiu aqui pra mim que é assassino... e foi solto.
Algumas pessoas têm sorte.
Coisa que eu, Eduardo, o Matemático, nunca tive. A minha sorte foi ter caído, enquanto os espertos seguem em frente.
E a Keyla... ah, a Keyla. Ela é um espetáculo à parte. Sempre foi. Linda pra c*****o, aqueles olhos que te perfuram, um corpo que Deus desenhou na intenção de acabar com a paz dos homens. E era carinhosa, sabia? Me trazia um café quando eu chegava cansado do trabalho, lembrava dos nossos mesversários, aquelas coisas bestas que a gente faz quando é jovem e apaixonado. E na cama... p**a que pariu, na cama ela era fogosa. Uma fogueira. A mulher perfeita. E eu, o i*****l, joguei tudo fora por um punhado de nota que nem era minha.
E agora ela tá "solteira". Eu rio só de pensar. Solteira o c*****o. A gente é casado perante a lei! Assinamos papel, fizemos votos. Ela pode ter terminado comigo aquele dia, dentro dessa cadeia fudida, mas o papel ainda tá lá. Ela ainda é minha mulher. E a ideia de outro homem botando a mão nela, outro homem sentindo o cheiro dela, outro homem fazendo ela gemer... isso me deixa com uma raiva que é difícil de controlar. É um fogo no peito que só a minha soltura vai apagar.
Foi quando me chamaram.
Tinha chegado correspondência.
Documentos oficiais.
Minhas mãos até tremeram um pouco quando peguei o envelope. Abri com cuidado, meus olhos escanearam as linhas formais, os carimbos... e então eu vi.
Eu li.
Eu reli.
"Soltura em 45 dias. Bom comportamento. Superlotação."
Quarenta e cinco dias. Não eram mais quase dois mil dias. Era quarenta e cinco. Um mês e meio. O coração parece que quis sair pela boca. Uma onda de alívio tão grande que quase me derrubou.
Eu vou sair daqui.
Vou voltar pra rua.
A memória veio forte, sem pedir licença. A Keyla com quinze anos. Assustada pra c*****o com a gravidez, os olhos arregalados, mas com um fogo por trás daquele medo. A gente tinha transado umas três vezes só. Ela era tão jovem, tão gostosa, tão... pura. E eu, com meus trinta anos, me sentindo o homem, o responsável. Erramos juntos, mas naquela época, eu juro, eu já a amava.
Acreditei que a gente ia ser uma família feliz e unida pro resto da vida.
Agora, eu tenho uma chance. Uma chance de consertar a merda que eu fiz.
Sentei na cama, peguei um papel e uma caneta. A carta tinha que ser perfeita. Meticulosa, como eu sempre fui.
"Querida Keyla,
Sei que falhei como marido. Fui um i****a, um cego, e paguei um preço alto por isso. Esses anos na cadeia me fizeram entender muita coisa. A principal é que eu preciso, mais do que tudo, reconquistar você e o Douglas. Eu sei que terminou comigo, e entendo o porquê. A distância é uma merda, e eu não estava lá pra você e por vezes quando veio aqui as coisas não aconteciam. Mas isso vai mudar. Estou voltando pra você. Em 45 dias, estarei aí. E vou lutar, Keylinha. Vou lutar com unhas e dentes pra ser o homem que você merece. O homem que eu devia ter sido desde sempre.
Com saudades,
Eduardo."
Dobrei a carta com um cuidado extremo, como se estivesse manuseando uma relíquia, algo precioso que podia se desfazer a qualquer momento. Cada dobra era um passo em direção a ela.
— Tá com cara de quem ganhou na loteria, Matemático — o Jorge, o preso da cela do lado, comentou, encostado nas grades.
— Algo assim — eu respondi, um sorriso raro estampando meu rosto. — Minha mulher me esperou. Vou compensar o tempo perdido, vou ser um cara que ela merece.
Pela primeira vez em anos, senti o gosto doce da esperança. Era um sabor esquecido, quase estranho, mas que tomou conta de mim. Vai ser uma surpresa enorme pra Keylinha. Ela não tá esperando. Ela acha que eu ainda tô longe. Mas eu tô voltando. E quando eu botar os pés lá fora, a primeira coisa que eu vou fazer é correr pra ela.
Ela ainda é minha mulher.
E eu vou provar isso pra todo mundo.
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