Capítulo 40 - O Abismo entre nós

1897 Words
[CONTINUAÇÃO DAS VISÕES DE BRYAN / O RESGATE NA FLORESTA](#) Eles chegaram ao lugar conhecido como A Toca. Uma caverna grotescamente transformada, uma antiga usina de mineração abandonada que encontrara uma segunda vida como um grande e popular boate para lobos, um antro de excessos escondido no ventre da montanha. Naquela noite, porém, a música que costumava vibrar pelas paredes de pedra havia cessado, substituída por um silêncio pesado e profanador. O pesadelo de Bryan se materializou não na floresta aberta, mas no quarto mais recôndito e privativo desse lugar amaldiçoado, um cubículo que ainda cheirava a cigarro, suor, sangue e maldade. E foi lá, entre as paredes de pedra áspera e uma luz neon vermelha que agora ecoavam gritos abafados e uivos de dor, que a visão que o assassinou por dentro se desenrolou: o corpo de Mia, inerte, nu e horrivelmente machucado, estava envolto por uma poça do próprio sangue escuro e espesso que brilhava com a luz fraca do ambiente e manchava o chão de cimento com sua profanação. O rosto dela estava virado para cima, os olhos abertos mas completamente sem vida, vidrados e vazios, como dois lagos congelados sob um céu nublado. Seus traços estavam contorcidos em uma máscara final de agonia, um registro eterno e silencioso do horror indizível que ela havia suportado nas mãos daqueles três lobos, até o momento em que seu coração, esmagado pela dor, pelo terror e pela violência, simplesmente parou de bater. E, na visão que não apenas rasgou, mas despedaçou sua alma em farrapos, os três lobos—os autores daquela profanação final—ainda se moviam sobre ela, suas sombras grotescas profanando o que já estava eternamente quebrado. A adrenalina de Bryan, já envenenada pela dor cataclísmica do elo rompido, transformou-se em uma fúria cega e destrutiva, uma tempestade primordial que varreu qualquer resquício de humanidade racional. Ele não era mais um homem, nem mesmo um lobo; era a própria vingança feita carne e osso. Em segundos, os grunhidos de satisfação bestial dos predadores foram abafados pelos uivos de caça, guturais e assassinos, dos lobos Blackwolfs. A vingança não foi uma batalha; foi um abate divino. Os lobos que a atacaram foram desfeitos, suas vidas extintas em uma coreografia de garras e dentes tão brutal quanto o crime que cometeram. Foram rasgados, desmembrados, suas carnes tornadas oferenda à violência que ousaram perpetrar. Não houve tempo para transformações ou defesas; apenas o julgamento final e sangrento do Alfa enfurecido e da Alcateia. Mas o horror era absoluto e soberano: o coração dela não batia mais. O uivo que saiu da garganta de Bryan não era um som, era a materialização da própria agonia. Um lamento primitivo, dilacerante, que não pertencia a um homem, mas à fera que vê o próprio universo desmoronar. Era o som de uma estrela entrando em colapso, o gemido da terra ao ser rachada ao meio, e ecoou pelas paredes da caverna como uma nota fúnebre que congelou o próprio ar. Seu tio Alexander e seu irmão mais velho Rafael, os médicos da alcateia, estavam ajoelhados no altar de sangue, suas mãos—normalmente firmes como aço—tremendo de um desespero visceral enquanto comprimiam o peito frágil e ensanguentado de Mia. Minutos se arrastaram como séculos sob um líquido pesado, cada segundo uma facada na esperança, que bruxuleava como uma vela à beira do vento. Bryan assistia, um espectro paralisado, o gosto de ferro e morte já uma parte permanente de seu paladar. Era a segunda vez que ele presenciou e sentiu a sua companheira perdendo a vida. E então, depois de uma eternidade suspensa no vácuo, um milagre frágil e tênue. Um arquejo, mais sutil que o bater de asas de uma mariposa, um suspiro que o mundo quase não permitiu. O pulso de Mia, sob os dedos de Alexander, era um fio de vida, tão tênue que parecia feito de luz de lua, mas era vida. Ela estava viva. O Bryan adolescente, que havia prendido a respiração desde o primeiro uivo, finalmente expirou, o ar entrando em seus pulmões como um bálsamo cortante. O alívio que o varreu não era doce; era uma onda brutal e esmagadora, que carregava consigo o peso de uma culpa eterna e a cicatriz invisível daquela noite—uma marca que ele carregaria para sempre, agora grudada à gratidão selvagem por ela ainda respirar. A Mia adulta, agora espectadora de sua própria tragédia, sabia, com a clareza cortante de quem sente a reverberação daquela dor como uma ferida antiga e m*l suturada, que havia cometido erros monumentais com ele, erros cujo preço foi pago em sangue e alma por ambos. **FIM DO FLASHBACK** De repente, a névoa densa e pegajosa das memórias, que cheirava a pinheiro podre, ferro e o mofo úmido da caverna, se dissipou. A realidade retornou não como um amanhecer suave, mas como um choque elétrico, e Mia foi arremessada de volta ao presente. Os lençóis de seda macia sob seus dedos não eram mais o chão áspero e ensanguentado daquele cubículo; o cheiro que dominava o ar não era de morte e depravação, mas o perfume amadeirado e seguro de Bryan. Eles não estavam mais naquele inferno. Ele os havia transportado para a cama, um ato de cuidado mesmo enquanto descarregava o vulcão de seu passado nela. Agora, estavam envoltos em um silêncio que era uma entidade viva, pesada e pulsante com uma nova e avassaladora compreensão. O choro que a derrubou não veio com delicadeza. Foi uma torrente desesperada, um rio furioso de lágrimas que brotou do mais profundo de seu ser. Cada gota salgada era um lamento por toda a crueldade que havia sido revivida nos olhos de Bryan, por toda a dor silenciosa e os sacrifícios invisíveis que ele havia carregado sozinho, um fardo de mártir que ela nunca soube que ele suportava. Ele a abraçou então, não como uma gaiola, mas como um porto em um maremoto, apertando-a contra seu peito como se suas próprias forças pudessem soldar os pedaços quebrados de ambos. O som abafado de seu pranto contra o algodão de sua camisa era a única música no quarto, uma sinfonia de dor compartilhada. Mia e Bryan permaneceram ali por um tempo incalculável, entrelaçados não apenas em braços e pernas, mas na própria névoa das lembranças, duas almas navegando pelo mesmo oceano de sofrimento. Suas vidas inteiras pareciam ter sido esculpidas pela tragédia, uma maldição anunciada desde o berço, desde o momento em que nasceram marcados e destinados um ao outro em um conto de fadas sombrio. Reviver tudo e, finalmente, enxergar o abismo do lado dele fez com que uma torrente de pensamentos conflitantes inundasse Mia: a complexidade do passado, as camadas infinitas de dor e m*l-entendidos, agora se desdobravam como um pergaminho antigo diante de seus olhos. No entanto, o peso denso de sua própria mágoa, uma rocha no fundo de seu estômago, não se dissolveu. A compreensão não era absolvição. Depois de longos minutos onde a única linguagem era a respiração sincronizada e o calor compartilhado da dor, ela se afastou gentilmente do abraço de Bryan. O calor dele ainda impregnava sua pele, um conforto familiar que agora carregava a nuance amarga de uma verdade recém-descoberta e a fragilidade de um futuro incerto. Ela respirou fundo, o ar condicionado do quarto enchendo seus pulmões como um líquido gelado, enquanto tentava organizar o turbilhão de emoções que brigavam por dominância dentro de seu peito. — Eu preciso de tempo pra processar tudo isso, Bryan. E você precisa ter paciência. — A voz dela soou baixa, rouca pelo choro, carregada de uma vulnerabilidade que a fazia parecer menor. Seus olhos cinza, lavados pelas lágrimas, encontraram os azul-aço dele, que a fitavam com uma intensidade quase dolorosa, o medo da perda dançando visivelmente por trás da fachada de força. — Temos muita mágoa e ressentimento um pelo outro. Camadas de gelo que levaram anos para se formar. Isso não vai se resolver da noite para o dia. Ele a olhava, sua expressão um campo de batalha entre a apreensão e uma esperança quase desesperada, tão frágil quanto o arquejo de Mia na caverna. Alguns segundos pesados se passaram, preenchidos apenas pelo sussurro da respiração de ambos. Então, Bryan respondeu, a voz rouca da emoção contida, mas firme em sua determinação: — Tudo bem. Vamos lá tomar café e ver nossos filhotes. Precisamos passar um tempo com eles... — Ele oferecia a âncora da rotina, do mundo real, do porto seguro que eram os filhos, um refúgio contra a tempestade emocional. Antes que Mia pudesse se levantar da cama, rompendo definitivamente o campo magnético que os mantinha unidos, ele a segurou novamente. Seus dedos não a agarraram com força, mas roçaram seu braço em um toque leve, um zumbido elétrico carregado de uma intenção profunda e de uma súplica silenciosa. — Mas Mia, saiba de uma coisa — ele sussurrou, a voz um fio de som carregado de toda a sinceridade de que era capaz. — Eu quero, eu preciso que você me permita ser melhor para você. Não o homem que fui. Não o garoto assustado. Quero te amar como nunca consegui antes, inteiramente, sem medo, sem reservas, com tudo que resta de mim. Ele se aproximou dela então, não com a urgência predatória de outrora, mas com uma ternura que era uma novidade perigosa e bela. O calor do seu corpo a envolveu como um manto, um gesto silencioso que pedia reconciliação, que pedia um recomeço. O beijo que ele depositou em seus lábios foi leve, suave como o pouso de uma pena, mas profundamente sincero em sua entrega. Não havia a ânsia da posse, o fogo da fúria ou o gelo da vingança. Havia apenas uma promessa. Uma promessa silenciosa, carregada do peso de todos os seus arrependimentos e de tudo que ele ainda desejava, desesperadamente, reconstruir das cinzas. Mia sentiu o gosto da verdade dele—amarga como café forte, mas inexplicavelmente doce pela esperança que continha. Bryan sentiu cada respiração presa dela, cada micro hesitação no beijo; e dentro dele, uma esperança crescente fervilhava, tão intensa que era quase uma dor física: ele lutaria por ela, sempre, custasse o que custasse, até o fim dos seus dias. Cada gesto, cada toque, era uma promessa desesperada cravada em sua própria alma: ele não desistiria. Ele faria diferente dali para frente. — Eu espero que isso seja verdade. — Mia murmurou contra seus lábios, mas as palavras, por mais sinceras que soassem, não conseguiam tocar a fé cega e absoluta que ele parecia depositar nela, na possibilidade deles. Dentro dela, a verdade era uma pedra fria e imóvel. Por mais que ele quisesse, por mais que lutasse com unhas e dentes e a própria alma, a esperança fervorosa dele não tinha o poder de apagar o passado. Nada, nada justificava a escolha consciente e repetida dele de se fechar, de machucar, de puni-la como ele Fez no passado. Ela sabia, sentia nas próprias cicatrizes da alma, e por mais que seus beijos e promessas fossem sinceros naquele momento, dentro de Mia, ele não bastava. A desconfiança era um peso físico, um colar de ferro ao redor de seu pescoço, e a estrada para a cura parecia longa, solitária e incerta. E, no fundo de seu coração, ela ainda não sabia se queria, de fato, chegar à linha final ao lado dele.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD