Capítulo 04 : Entre Muros

1384 Words
Carol Nunca pensei que minha vida viraria um labirinto sem saída, uma prisão de luxo no alto do morro da Rocinha. Por fora, tudo parece bonito: uma casa grande, com vista para o mar, quartos espaçosos, móveis caros. Mas por dentro… é só silêncio, frieza e controle. Gabriel me mantém cercada por muros que não se veem, mas que pesam sobre mim como correntes. Eu tento me adaptar, juro que tento. Acordo todos os dias bem cedo, faço café, organizo a casa mesmo com a presença de duas mulheres que ele paga pra isso. Tento não me perder no vazio que esse lugar me causa. Tento esquecer que fui forçada a isso. Que aceitei esse casamento para salvar meu irmão. Mas como se esquece que está dormindo ao lado de um homem perigoso, frio e imprevisível? Gabriel quase não fala comigo. Só observa. Seus olhos escuros me acompanham por cada canto da casa. Não sorri, não pergunta como estou, e quando fala, é com autoridade. Comando. A única coisa que vejo nos olhos dele é posse. E o pior é que ele é lindo. Isso me enfurece mais ainda. Hoje, ao acordar, peguei minha mochila com o jaleco dobrado, meu crachá do estágio e tentei sair sem fazer barulho. Fazia dias que eu não tocava naquele uniforme. Desde o casamento forçado, fiquei enclausurada. Mas hoje não. Hoje era dia de reagir. Desci as escadas em silêncio, rezando para que ele não estivesse acordado. — Onde você pensa que vai? — a voz dele cortou o silêncio como um raio. Fria. Rígida. Eu congelei no meio do corredor. Lentamente me virei, com a mochila nos ombros, e o encarei. Ele estava no batente da porta da cozinha, sem camisa, segurando uma caneca de café. O olhar escuro cravado em mim. Sem emoção. Só controle. — Vou pro meu estágio. Preciso cumprir as horas pra conseguir meu diploma. Ele bebeu mais um gole, sem pressa. Depois falou: — Você não vai. — Como assim eu não vou? — desafiei, dando um passo à frente. Ele se aproximou, lento, como um predador. A caneca agora abaixada, a tensão no ar tão densa que era difícil respirar. — Mulher minha não trabalha. Nem estuda. Eu te sustento. Você não tem mais essa necessidade. — Eu tenho, sim. Isso é meu sonho! — exclamei, a voz trêmula de raiva. — Não vou abrir mão de tudo por sua causa. Eu não sou sua propriedade! Os olhos dele escureceram ainda mais. — Mas é minha mulher. E enquanto morar debaixo do meu teto, vai seguir minhas regras. — Eu não pedi esse casamento, Gabriel! — Mas aceitou — ele rebateu, aproximando-se mais. — Aceitou quando não tinha saída. Agora aguenta as consequências. Senti o chão faltar. O coração batendo rápido demais. Eu podia até fingir que estava forte, mas por dentro… tudo em mim estava implodindo. — Você está me prendendo — murmurei, engolindo o choro. — Isso aqui é uma prisão. Eu salvei meu irmão e me condenei. Gabriel largou a caneca na mesa ao lado, o barulho seco me fazendo estremecer. Ele se colocou bem na minha frente, próximo o suficiente para que eu sentisse o calor do seu corpo e o cheiro do seu perfume amadeirado. — Você vai aprender a ser minha mulher, Carol. Do meu jeito. Aqui em cima, quem manda sou eu. E você... você vai se comportar como se deve. — E se eu desobedecer? Vai me bater? Vai me matar? Ele ergueu uma sobrancelha. Chegou ainda mais perto. — Eu não bato em mulher. Mas sei muito bem como fazer alguém se arrepender. Eu o empurrei. As mãos trêmulas, os olhos marejados. — Você é um covarde, Gabriel! Um homem que precisa prender uma mulher pra tê-la. Isso não é amor. Isso é doença! Ele sorriu. Um sorriso frio, irônico, como se minhas palavras não passassem de vento. — Amor? Eu nunca falei de amor, Carol. Eu falei de posse. Você é minha. Isso basta. Virei as costas, indo em direção à porta, sentindo o peito explodir de fúria. Mas antes que eu alcançasse a maçaneta, ele segurou meu braço com força. Seus dedos apertaram a ponto de doer. — Você não vai sair dessa casa vestida assim. Nem agora. Nem nunca. — Solta meu braço! — gritei, tentando me soltar. Ele me empurrou contra a parede, sem brutalidade, mas com firmeza. A respiração dele estava pesada. O olhar firme, como se estivesse no controle total da situação. — Vai ser do meu jeito, Carol. Enquanto você estiver aqui, vai obedecer. Se quiser fugir, tente. Mas saiba que ninguém sobe ou desce esse morro sem minha ordem. Ninguém te tira daqui. Lutei contra ele com os olhos, porque o corpo já estava cansado demais. Ele me soltou e virou as costas, voltando para a cozinha como se nada tivesse acontecido. Eu fiquei ali, encostada na parede, sentindo o coração em cacos. Odiava ele. Odiava esse lugar. Odiava a mim mesma por ter concordado com esse casamento. Mas mais do que tudo... eu sentia medo. Porque havia uma parte de mim — uma parte pequena, sufocada e vergonhosa — que sentia algo além de ódio. Algo que me dava nojo. Passei o resto do dia trancada no quarto. Recusei a comida. Ignorei as funcionárias da casa. Fiquei olhando pela janela, vendo a comunidade pulsar lá embaixo. Ouvia as músicas que vinham das vielas, os gritos das crianças, os barulhos dos rádios tocando funk. O morro vivia… e eu morria por dentro. No fim da tarde, ouvi passos na escada. Meu corpo enrijeceu, reconhecendo o ritmo pesado da caminhada dele. A porta se abriu sem cerimônia. Gabriel entrou sem pedir permissão. Ele nunca pedia. — Levanta. Vamos jantar. Eu continuei sentada na cama, de braços cruzados, olhos fixos na janela. — Não estou com fome. Ele se aproximou lentamente. — Você vai descer. Vai jantar comigo. Vai fingir que essa merda toda está normal. Porque se não fizer isso, eu vou até lá embaixo, puxar o Rafael pela gola e trazer ele pra morar aqui em cima. E aí você vai ter companhia pra essa prisão. Me virei na hora, com os olhos arregalados. — Você não faria isso. — Quer pagar pra ver? Levantei, o peito subindo e descendo. Tinha vontade de jogar a cadeira na parede, de gritar, de fugir… mas eu sabia. Sabia que se batesse de frente com ele de novo, quem ia sofrer seria meu irmão. *** O jantar foi silencioso. A mesa arrumada, os talheres brilhando, as velas acesas como se estivéssemos em um restaurante chique. Mas ali só havia silêncio, tensão, e dois corpos que se odiavam. Ou tentavam. Gabriel comia tranquilo. Seus olhos vez ou outra subiam para me encarar. Eu mantinha a cabeça baixa, mastigando sem vontade, odiando cada segundo daquilo. — Você tem que entender uma coisa, Carol — ele começou, limpando a boca com o guardanapo. — Aqui no morro, ninguém pode saber que você é um problema. Ninguém pode ver você me desafiando. Se fizer isso, perde o respeito. E eu não posso permitir. — Então o que eu sou? Um troféu de fachada? Um bibelô pra você exibir? — Você é minha mulher. Isso já diz tudo. Revirei os olhos, jogando o guardanapo sobre o prato. — Então me trate como uma. Ele sorriu de canto, como se minhas palavras fossem engraçadas. Depois se levantou e caminhou até mim. — Isso depende de você. — E se eu quiser me separar? — Aqui em cima, não existe divórcio. Existe morte. Escolhe. Engoli em seco. Ele se afastou e saiu da sala com calma. A mesma calma de quem tem o controle de tudo e todos. Naquela noite, chorei até dormir. O travesseiro abafando os soluços, o corpo encolhido no canto da cama. Gabriel não veio para o quarto. Ele dormia no andar de baixo, como sempre. Mas mesmo sem estar ali, a presença dele me esmagava. Estava em cada parede daquela casa. Em cada silêncio. Em cada ordem velada. Eu não sabia até quando suportaria. Mas uma coisa era certa: se ele achava que eu ia me dobrar fácil, estava enganado. Ele podia ser o dono do morro, mas eu ainda era dona de mim. E isso, ele não ia tirar.
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