Muralha narrando
Eu tava puto. Sentado ali, com a pilha de papéis espalhada pela mesa, o cheiro de suor velho e cigarro impregnando a sala do Coringa, conferindo conta por conta, anotação por anotação, e encontrando erro atrás de erro. Não era nada gritante, nada que saltasse aos olhos num primeiro relance, mas quem é criado no crime, quem conta dinheiro desde antes de aprender a somar na escola, sabe exatamente quando tem coisa errada. E eu sabia. Eu sentia.
Levantei o olhar pra ele, largado numa cadeira, se abanando com um papel como se fosse a p***a de um barão, a perna tremendo sem controle. Eu tava tão no limite que só de ouvir a voz desse filho da p**a meu sangue fervia.
— Bora, Coringa! Levanta dessa p***a desse chão, c*****o! — gritei, a voz explodindo pela sala abafada. — Tá achando que aqui é o quê? Hotel? Spa? Tem o quê, é frouxo agora? Se liga, c*****o! Fica aí igual merda no chão pra quê? Levanta e me mostra essa merda direito!
Ele se levantou meio devagar, ajeitando o colarinho suado, o sorriso aquele mesmo de sempre — aquela boca aveludada, aquele jeitinho de quem acha que convence qualquer um. Mas não me convencia, não. Só me dava mais nojo.
— Relaxa, Muralha… isso aqui é só besteira do Tatu. Moleque não sabe somar nem com calculadora na mão. Tá vendo? — ele me mostrou o papel rabiscado, o dedo tremendo. — Aqui tá certo, já conferi de novo. O caixa fecha, o dinheiro tá circulando, o morro tá produzindo que é uma beleza.
Eu nem respondi, só peguei o papel da mão dele e joguei de volta na mesa. Cruzei os braços, olhando de cima pra ele. O Lobo tava do meu lado, silencioso, o semblante duro. Ele não precisava falar pra eu saber o que tava passando pela cabeça dele. O Lobo sempre foi direto, reto, e se tava quieto é porque sabia que era meu momento de conduzir a conversa.
— Tu fala bonito, né, Coringa? Sempre falou. Esse teu jeitinho manso, essa p***a dessa fala mole… tu engana muito o****o por aí com isso. Mas comigo não cola. — cheguei mais perto, tão perto que vi o suorzinho brotar na testa dele. — Essa p***a desse morro aqui é minha. Esse dinheiro é meu. Cada centavo que roda aqui passa pela minha mão. Então não me vem com balela, nem tenta me ganhar no papo. Eu não sou esses trouxa que tu acostumou a enrolar.
Ele deu aquele sorriso torto, quase carinhoso, mas o olhar denunciava o medo. Passou a mão pelo cabelo, respirou fundo, tentando se recompor.
— Muralha… meu chefe… tu sabe que eu sou teu. Eu faço o dinheiro girar, mantenho a boca rodando dia e noite, não deixo faltar nada pra rapaziada. Se tem algum erro aí, é coisa pequena, detalhe bobo. Eu resolvo rapidinho, sem tu precisar esquentar essa tua cabeça.
— Não tô esquentando a cabeça, não. — falei, minha voz saindo firme, quase fria. — Só tô deixando bem claro pra ti, Coringa: não faz merda. Esse morro aqui gira bonito porque eu permito, porque eu confio. Mas minha confiança não é eterna, não. Tu conhece minha fama. Sabe como meu pai me criou. Então é isso: mantém o fluxo, não inventa moda, e garante que meu dinheiro chegue limpo. Só isso.
— Pode deixar, patrão… tu confia em mim, pô. Sempre confiou. Eu nunca te dei motivo pra pensar o contrário. — ele insistiu, a voz num mel escorrendo, mas o peito subindo e descendo mais rápido do que devia.
O Lobo deu um passo pra frente. Ele não ia aguentar ficar quieto por muito tempo.
— O papo é esse, Coringa. Eu vou ficar em cima. Vou revisar tudo com os moleque, dia sim, dia também. Tu não te incomoda, não, né? — eu perguntei , mas era quase uma provocação.
O Coringa engoliu em seco, deu uma risada frouxa, olhou pros lados como se buscasse cumplicidade que não existia.
— Claro que não, p***a… tá tranquilo. Pode ficar em cima à vontade, irmão. Meu trampo é limpo. Não tem o que esconder.
Eu soltei um riso curto, quase um sopro pelo nariz. Dei dois tapinhas no ombro dele — fortes, pra ele entender que não era afago — e me afastei meio passo, mas sem desgrudar o olhar.
— Então é isso, Coringa. Trabalha tranquilo, mas trabalha direito. E lembra quem manda nessa p***a. Quem faz o dinheiro chegar até tua mão sou eu. E quem pode cortar esse dinheiro também sou eu. Fica ligeiro.
Ele balançou a cabeça rápido, o sorriso voltando com força, quase desesperado.
— Tamo junto, Muralha. Sempre. Tu é o dono dessa p***a toda, meu chefe. Eu sei bem disso.
— Ainda bem que sabe. — falei, seco.
Fiz sinal pro Lobo, que me acompanhou até a porta. Antes de sair, lancei mais um olhar pro Coringa. Ele ficou parado, com o peito ofegante, os olhos fixos em mim, como se tentasse adivinhar o que eu tava realmente pensando. Mas ele não ia saber. Nunca ia. Eu era filho do homem que construiu isso tudo. O homem que me ensinou a falar pouco e observar muito. E o Coringa, por mais que se achasse, não passava de um grão de areia no meu sapato.
Do lado de fora, o Lobo me alcançou. Não precisou falar nada, mas eu vi no olhar dele que ele também estava no limite.
Eu saí daquela sala do Coringa com o sangue ainda fervendo, mas sem demonstrar nada pra quem estivesse me olhando. Por fora, eu era pedra — o mesmo semblante duro, o mesmo olhar indiferente que meu pai carregava quando precisava botar cada pilantra no lugar. Por dentro, a cabeça trabalhava a mil. Eu já tava costurando um assalto fazia tempo, o assalto que ia trazer uma carga pesada de dinheiro, e eu ia botar o Coringa bem no meio da rota, com tudo monitorado do jeito que só eu sei fazer. Eu precisava que ele sentisse confiança, que continuasse agindo do mesmo jeito, se afundando cada vez mais no próprio veneno. Porque pra mim, não bastava só matar. O Coringa tinha que se destruir por conta própria, pra todo mundo ver. Esse era o tipo de lição que meu pai gostava de deixar: bandido que passa a perna em cima do comando não morre rápido. Ele se entrega aos poucos, fica pequeno, vira pó diante de quem o seguia. Era assim que eu queria destruir esse filho da p**a, porque ele é completamente previsível, e é por isso que eu ia fazer da morte dele ser histórica pra ele aprender que não está lidando com qualquer um.
Ele não é meu único inimigo, nem o primeiro a me roubar, e nem o último a tentar, mas todos os meus inimigos não estão vivos para contar história, mas eu tô…
Quando saí pra rua, o Lobo me acompanhou. Fiz sinal pra ele me seguir até o carro, e a gente entrou, pedi pro motorista dar partida e sair dali. Não queria conversa plantada no meio do morro, não queria olhar curioso nem ouvidos ligeiros. Levei ele pra um lugar neutro, umas quatro ruas abaixo, perto de uns galpões velhos que eu já conhecia bem — não tinha movimento, não tinha orelha seca pra prestar atenção no que não devia. Quando o carro parou, mandei o motorista rodar o quarteirão e deixei só nós dois ali.
Ficamos em silêncio por alguns segundos. Eu só encostei o corpo no banco, respirei fundo, ajeitei o braço apoiado na janela e olhei pra frente, enquanto o Lobo ficava ali do meu lado, tenso, mexendo nos dedos, como se tentasse achar a melhor forma de começar. Resolvi ajudar.
— Qual era o papo que tu queria dar em mim, Lobo? Lá não era lugar pra isso. Agora fala. — soltei direto, sem rodeios.
Ele respirou fundo, virou o corpo na minha direção e apoiou o braço no encosto do banco, com o rosto sério, carregado. Eu via no olhar dele que o bagulho pesava.
— Muralha, vou te falar na moral. O que tá acontecendo lá no morro não tá batendo com o que sempre foi, não. O Coringa… — ele fez uma pausa curta, passou a mão no queixo. — O jeito que ele trata os moradores, tá errado. Ele tá extrapolando, tá metendo medo demais em quem não deve. Tá cobrando aluguel com ameaça, tá botando fuzil na cara de mãe de família. Isso não é conduta de frente do teu morro. Não é o que tu pai ensinou e não é o que tu pratica.
Eu fiquei só ouvindo, o maxilar travado, o coração mais calmo do que antes. Era bom escutar aquilo vindo do Lobo, confirmava o que eu já tava vendo. Mas quis cavar mais fundo, pra ver se ele ia até o fim.
— mas o que, lobo ? O fluxo do morro, tá a milhão, e o caixa…?
Ele balançou a cabeça devagar, olhou pro chão, depois voltou a me encarar.
— Não vou entrar nesse mérito, Muralha. Não dessa forma. O que eu tô te dizendo é: fica mais atento, dá mais incerta lá. Não é difícil tu descobrir o que tá rolando. Mas de mim, tu não vai ter informação completa. Não vou ser eu que vou entregar, porque eu cresci com o Coringa. Se um dia der r**m pra mim, ou pra minha família que mora lá, vai ser tudo do mesmo jeito.
Eu fiquei quieto. Só fiquei olhando pra ele, respirando fundo, sentindo aquela mistura de respeito e irritação. O Lobo tinha esse defeito — ou essa virtude, dependendo do ponto de vista. Era leal demais a quem tinha dividido infância com ele. Eu sabia o peso disso. Mas acima de tudo, precisava que ele lembrasse pra quem era a lealdade principal.
— Então é isso, Lobo? Tu vai deixar o comando às cegas por causa de amizade?
Ele fechou a cara, engoliu seco, mas não desviou o olhar do meu.
— Não, Muralha. Não é isso. Eu só tô te dizendo pra fazer o que tem que ser feito, porque tu é o dono dessa p***a. E eu sei que tu vai achar o que tiver que achar. Eu não sou dedo-duro. Não sou X9 de quem cresceu comigo. Mas também não sou cego. E é por isso que eu vim te dar esse papo. Faz do teu jeito. Tu é inteligente, é frio, vai pegar.
Fiquei olhando ele por uns segundos longos, e ali eu vi o peso do que ele tava me passando. O Lobo podia não entregar o Coringa na bandeja, mas também não ia acobertar. Isso, pra mim, já bastava. O resto, era comigo.
Antes dele abrir a porta do carro, botei a mão no braço dele, firme, o puxei de volta pro banco. Olhei nos olhos dele, deixando meu tom sair mais baixo, mas ainda tão duro quanto antes.
— Lembra só de uma coisa, Lobo. Antes do Coringa, antes de qualquer amizade, tem o comando. Tem meu pai, tem meu nome, tem minha história. A lealdade aqui não é pra homem nenhum, é pra bandeira que a gente carrega. Tu tá comigo nisso, ou não?
Ele me encarou de volta, respirou pesado, e balançou a cabeça com aquele jeito sério dele.
— Eu tô contigo, Muralha. Tu sabe disso. Eu só não vou ser o cara que vai apontar o dedo. Mas eu acho que hoje ficou nítido, né ? Eu não preciso nem apontar…
Soltei o braço dele, dei dois tapinhas no ombro e deixei ele sair. O Lobo fechou a porta do carro, se afastou pela calçada com aquele jeito dele, meio desconfiado, meio atento a tudo. Fiquei assistindo ele sumir, e aí me recostei no banco outra vez, deixando o peso de tudo desabar dentro de mim. Eu já sabia o que precisava fazer, só não era o momento ainda. Mas quando fosse, ia ser do meu jeito. Frio, calculado, certeiro. Igual meu pai me ensinou.
Porque no final das contas, nessa p***a de jogo, ou tu cumpre teu papel ou vira exemplo.
Continua…