Capítulo 05

2251 Words
Bárbara narrando Eu não fui pra casa. Se eu fosse pra casa, minha mãe ia me encher de perguntas, ia começar aquele falatório na minha cabeça, carregado de preocupação, de culpa e de peso. E eu não podia lidar com isso agora. Eu precisava me manter inteira, ou pelo menos fingir que tava. Então eu fui pro banheiro do centro de treinamento mesmo. Entrei, tranquei a porta e me despi, sentindo cada músculo do meu corpo reclamar. Liguei o chuveiro gelado, deixando a água despencar com força sobre mim, como se pudesse anestesiar não só as dores físicas, mas também as inseguranças que latejavam no meu peito. Eu tremia, mas ao mesmo tempo sentia o gelo me dar coragem, endurecer o que dentro de mim ainda estava mole. Durante todo o banho, eu me encarava no reflexo embaçado do blindex. Revivia mentalmente toda a minha trajetória. Cada luta, cada campeonato, cada troféu que eu conquistei ao longo desses anos. As madrugadas treinando sozinha, os hematomas escondidos, as lágrimas engolidas. E também as derrotas, as poucas vezes que eu tive que engolir o gosto amargo de perder. Tudo isso construía quem eu era. Passei o olhar pelas cicatrizes espalhadas pelo meu corpo — o joelho que nunca mais foi o mesmo, o ombro que sempre ameaçava sair do lugar, os cortes antigos que já nem doíam mais, mas estavam ali pra lembrar que dor física nunca foi meu maior medo. Lembrei do dia em que meu irmão levou o tiro. Aquele dia partiu minha vida ao meio. Deixou ele preso pra sempre numa cadeira de rodas, e deixou a gente, eu e minha mãe, eternamente marcadas por uma bala que não nos acertou no corpo, mas destruiu tudo ao redor. Foi ali, naquele banheiro, sozinha, sentindo o frio cravar nos ossos, que eu tomei coragem de verdade. Ali, percebi que nada ia me parar. Não importava se era ilegal, sujo ou perigoso. Eu ia até o fim por eles. Saí do banho, me enxuguei devagar, quase como um ritual. Coloquei uma roupa extra que eu tinha no meu armário — um short, um top, depois uma calça larga por cima, um camisão velho, um tênis confortável. Fiz uma trança boxeadora no cabelo, bem firme, pra nada ficar no caminho. Peguei meu protetor bucal, enrolei minha faixa de mão e joguei tudo na bolsa. Antes de sair, me encarei no espelho uma última vez. Vi nos meus próprios olhos a faísca do ódio e da determinação que me guiariam naquela noite. Foi então que o celular vibrou. Uma mensagem. “O carro está a caminho.” Meu coração acelerou. Respirei fundo e mandei uma única mensagem pra minha mãe: “Fica tranquila que eu tô bem. Eu vou voltar pra casa com o dinheiro em mãos. Eu vou tirar a gente dessa. Amo vocês mais que tudo nessa vida.” Enviei, coloquei o celular no modo avião e guardei na bolsa. A partir dali, o mundo lá fora não existia mais. Só o meu objetivo. Fechei o centro, desliguei as luzes, tranquei com cadeado e comecei a descer as vielas do morro. O céu já tava completamente escuro, algumas luzes amareladas piscando nos postes quebrados. Foi quando, do nada, a moto do Coringa surgiu feito um demônio, quase me jogando pra cima. Ele parou bruscamente na minha frente, quase derrapando, e desceu já com aquele sorriso nojento estampado. Mas dava pra ver nos olhos dele que ele tava completamente fora de si, tão louco de droga que parecia que nem me reconhecia direito. — Tá indo pra onde, Bárbara? Teu tempo tá acabando… — ele falou, vindo pra cima de mim, o tom arrastado, perigoso. Eu fechei a cara na hora, dei um passo pra trás, mas firme, segurando o coração que queria sair pela boca. — Sai da minha frente, Coringa. Eu ainda tenho algumas horas até botar o dinheiro na tua mesa. E aí tu nunca mais vai falar ou fazer o que fez com a minha família — soltei com a voz carregada de raiva, mas sem tremer. Ele me olhou com aquele deboche imundo, como se fosse dono do mundo. Chegou tão perto que senti o bafo quente e ácido dele no meu rosto. Agarrou meu pescoço com força, me fez inclinar pra trás, ficando com os olhos grudados nos meus. — Você tá achando o quê, Bárbara? Tá achando que tá falando com quem? Eu sou o dono dessa p***a. E se tu não me pagar, eu vou ser teu dono também. Tu sabe que se eu quiser, eu faço da tua vida um inferno, não sabe? — ele cuspiu as palavras na minha cara, e ainda tentou passar a mão pelo meu corpo, deslizando o toque pra minha cintura. Num reflexo, desviei o corpo, empurrei o braço dele pra longe e rosnei: — Que eu saiba, essa p***a desse morro é registrado. Quer que eu vá dar queixa pro Muralha? Ele tava aqui pelo morro, não tava? — só de falar o nome do Muralha, senti ele tremer. O olhar dele vacilou um segundo. Mas a raiva foi maior, e ele me deu um tapa tão forte na cara que o mundo girou. Minha pele queimou na hora. Soltei o ar pesado, com o rosto latejando, e vi ele subir na moto de novo, sair rasgando morro acima, deixando só o ronco do motor ecoando nos becos. Engoli o choro, ajeitei a bolsa no ombro, e transformei aquilo em combustível. Cada lágrima que queria cair eu engolia e transformava em mais ódio, em mais foco. Continuei descendo até o pé do morro, onde o carro já me esperava. Vi o Lobo lá adiante, com uma novinha, e ele pareceu que ia me chamar, mas o carro parou na minha frente e eu entrei sem dar chance. Não queria falar com ninguém. Não queria explicação, consolo, nem olhar de pena. Só queria sumir, e só voltar com o meu objetivo nas mãos, e eu não ia permitir que ninguém me distraísse nesse momento. O motorista não disse nada. Nem boa noite, nem pra onde ia. Apenas arrancou, subindo a favela de volta e depois pegando a principal. Fiquei calada o caminho inteiro, o peito se comprimindo num aperto tão grande que parecia que ia explodir. Minha mente rodava em mil cenários: eu apanhando, eu ganhando, eu saindo de maca, eu voltando pra casa com o dinheiro. Eu tava com medo, claro que tava. Eu nunca tinha participado de nada assim, nunca fui pra luta clandestina, não sabia o que me esperava. Mas não tinha mais espaço pra medo. Tinha que enfrentar. Era peito aberto, fosse pro que fosse. Ali, no banco traseiro daquele carro silencioso, eu entendi o que era ser leoa de verdade. Porque quando a vida ataque o que é teu, não importa quão machucada tu esteja, tu vai ter que atacar de volta. O carro seguiu pela avenida principal, depois entrou por ruas cada vez mais escuras, cada vez mais apertadas. Asfalto foi virando paralelepípedo, depois terra batida, até começar a tremer o carro inteiro. O motorista não abriu a boca, só ficava com o olho fixo na estrada, uma mão no volante e a outra apoiada num rádio preso no colete. Eu segurava firme a alça da porta, não porque tinha medo do trajeto, mas porque minhas mãos não conseguiam ficar paradas. Tava elétrica por dentro, a cabeça rodando, o coração batendo tão forte que doía. Depois de uns vinte minutos, ele parou em frente a um galpão abandonado, desses velhos, cheio de tijolo aparente, telha quebrada, pichação e mato nas beiradas. A porta principal, enorme, tava entreaberta, com luzes coloridas escapando pelas frestas. Dava pra ouvir batida de música lá dentro, misturada com gritos, risadas e um burburinho que só podia significar aposta alta rolando. O motorista olhou pra frente, depois pro retrovisor, encarou meus olhos pelos espelhos e só falou, num tom seco: — Desce. Lá dentro te orientam. Eu balancei a cabeça, senti o estômago virar, e desci. A perna pareceu bamba no primeiro passo, mas logo firmei. Ajustei a bolsa no ombro, conferi se o protetor bucal e as faixas estavam lá, e caminhei até a entrada do galpão. Dois caras enormes, cada um com uma pistola presa na cintura, conferiram meu corpo de cima abaixo. Um deles abriu a boca num sorriso cínico. — E aí, boneca… vai lutar ou vai fazer plateia? — perguntou, cuspindo no chão logo depois. — Vim pra lutar. Falaram que alguém aqui ia me orientar — respondi sem paciência, só querendo passar logo. Ele fez um gesto com o queixo e outro segurança me chamou, apontando pro lado. Passei por eles sentindo o cheiro azedo de suor, cerveja velha e algo que podia jurar que era sangue seco. Lá dentro o barulho era pior. Um ringue improvisado ficava no meio do galpão, cercado por grades de ferro. Em volta, um monte de homem berrava, fumando, bebendo, agitando notas altas nas mãos. Tinha cheiro de cigarro, maconha, carne assada num canto e algo metálico que era impossível ignorar. Era cheiro de sangue, puro. Fui guiada até um cantinho com bancos de madeira, onde algumas mulheres e uns caras mais jovens se preparavam. Tinha lutador se aquecendo, pulando corda, outro com o olho já roxo e um corte na boca sendo suturado na marra por um enfermeiro improvisado. Era aquele o “camarim”. O cara que me trouxe me entregou um elástico grosso e apontou pra um balde com água e gelo. — Última chamada pra preparar. Vamo logo que tu é a próxima. Fiz um aceno, sentei num banco, comecei a enrolar minha faixa na mão com calma, puxando bem apertado. Tentei não deixar o ambiente me engolir. O barulho das apostas rolando era quase hipnótico. “Cem na morena! Mil no grandão!” “Vai acabar no primeiro round!” “Ela tem cara de que não aguenta porrada!” Eu me fechei em mim. Lembrei do meu irmão, do sorriso dele. Da minha mãe, das mãos calejadas dela lavando a louça, do jeito que ela sempre tenta tornar as coisas mais leves pra gente, da forma como ela sempre tenta me agradar, e que eu sei que ela não queria nos colocar nessa situação. Fechei o punho, senti o sangue pulsar contra a faixa. Peguei o protetor bucal, coloquei na boca só pra sentir o encaixe, depois tirei. Fui até o balde com gelo, mergulhei as mãos e respirei fundo. Aquilo doeu tanto que meu corpo inteiro acordou. Quando tirei, senti as mãos latejarem, mas firmes. Um cara que parecia ser o organizador se aproximou. Usava terno, mas o colarinho aberto e a gravata torta mostravam que ele não era de escritório. Tinha uma cicatriz feia no pescoço. — Bárbara, né? — perguntou consultando um bloquinho. — Tu vai contra o Jorgão. O favorito da casa, entende? Faz o teu show, mas não enrola muito. Ninguém gosta de luta arrastada. Eu levantei o olhar e encarei ele com tanto ódio que o homem até sorriu de lado. — Eu não vim aqui pra fazer show, vim pra ganhar dinheiro. — respondi firme, seca. — Isso aí que eu gosto de ouvir. — Ele deu dois tapinhas no meu ombro, que me deram vontade de quebrar o braço dele. — Te prepara, que daqui a cinco minutos tu tá lá dentro. Ele saiu e eu fiquei ali, sozinha de novo, sentindo o peso do momento me atravessar como um soco no estômago. Eu nunca tinha estado num lugar tão sujo, tão carregado. Mas não ia me deixar intimidar. Não agora. Coloquei o protetor bucal, subi a perna no banco e comecei a alongar, sentindo cada músculo responder. Quando chamei minha mente pro lugar certo, ela foi direto pra imagem da minha mãe chorando com o fuzil apontado pra cabeça dela. Do meu irmão gritando, sem poder correr. Do Coringa me apertando pelo pescoço, dizendo que se eu não pagasse ele seria meu dono. E foi ali que senti nascer dentro de mim um ódio tão grande, tão puro, que virou combustível. Quando o cara voltou e fez sinal pra eu segui-lo até o ringue, eu fui. Fui sem tremer, sem vacilar, porque naquela noite, naquela p***a daquele galpão imundo, eu não ia só lutar pra ganhar dinheiro. Eu ia lutar pra devolver pra minha família o mínimo de dignidade que eles mereciam. Eu ia lutar pra que o Coringa nunca mais tivesse motivo pra me encostar a mão. Eu ia lutar por cada lágrima que minha mãe derramou e por cada sorriso que meu irmão perdeu. E ali, pisando naquele chão sujo, ouvindo o cheiro do sangue de outras pessoas ainda vivo no ar, eu prometi pra mim mesma: eu só saía dali depois de esmagar quem estivesse na minha frente. Nem que fosse a última coisa que eu fizesse. Não me importava se era homem ou mulher, se era favorito ou não. Eu vim pelo dinheiro, mas o que me movia era o meu sangue… Quando eu terminei a minha oração, e abri os olhos eu dei de cara com o muralha ali, sua cara ao me ver foi indescritível, como quem nunca imaginou me ver num lugar desses, mas na verdade, nem eu nunca me imaginei aqui… Mas agora eu não podia pensar nisso, eu tinha um brutamonte pra derrubar, e eu só podia parar quando ele estivesse no chão, debaixo dos meus pés, apagado depois de tanta porrada.
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