Capítulo 04

1953 Words
Barbara narrando Sabe aquele dia que você tá cansada, exausta de corpo, mente e alma? Aquele dia que você já desistiu de tudo, que sente o peso do mundo inteiro em cima do seu ombro, esmagando? Pois é. Esse foi o meu dia. Desde o momento em que aquele babaca do Coringa saiu lá de casa, depois de meter o fuzil na cara da minha mãe e deixar meu irmão em pânico, eu não tive um segundo de sossego. Eu tava desesperada, correndo feito doida atrás de vender minha moto. Ela era meu xodó, linda, bem cuidada, cromada, o maior orgulho meu, mas dane-se. Eu precisava daquele dinheiro. Eu só tinha 24 horas pra levantar o valor inteiro e salvar minha família daquela humilhação. Passei o dia inteiro de um lado pro outro, sem parar nem pra comer. Fui nos meninos do morro, nos da barbearia, nos pais dos meus alunos, nas mães, nas marmitas de bandido que sempre estavam circulando por ali. E a resposta era a mesma, de todo mundo: “p***a, Bárbara, só vou receber o PG no final de semana. Segura até lá? Aceita uma parada em troca?” E o que eles ofereciam não chegava nem perto do que eu precisava. Eu sorria sem graça, engolia o choro e seguia, com a cabeça latejando. Cada vez que alguém balançava a cabeça dizendo “não dá”, era como se uma martelada quebrasse mais um pedaço de mim por dentro. Já era fim de tarde, o sol lá embaixo, tingindo o céu de laranja, quando o Lobo me chamou. Eu tava tão no automático que quase nem percebi ele acenando. Parei ali, na beira da viela, e encarei. O Lobo tinha aquele jeito constrangido, meio sem graça. — Qual é, branquinha? Pô… eu tentei impedir o Coringa de ir lá. Tu sabe como ele é, né? Joga sujo, principalmente quando toca no teu nome — ele disse, coçando a nuca, os olhos fugindo dos meus. Eu respirei fundo, senti o peito doer. O Lobo é gente boa. Sempre foi. Lutou comigo muitos anos, quando a gente ainda era moleque. Ele tinha tudo pra ser atleta também, lutar fora, ganhar dinheiro limpo com a força que tinha. Mas escolheu a vida do crime. Os motivos? Só cabem a ele. Eu nunca quis saber. Acabou que nossos caminhos se afastaram quando ele começou a se envolver cada vez mais, fazendo missões, sumindo dias e dias. Mas o respeito e a cordialidade entre nós sempre ficaram intactos. — Fica tranquilo, Lobo. Eu tô tentando levantar esse dinheiro — falei, tentando passar firmeza, mas a voz saiu mais baixa do que eu queria. — Branquinha, se até o último minuto tu não conseguir… não deixa de falar comigo antes de chegar nele. Eu vou te ajudar. Depois tu levanta essa grana com calma e me devolve. Porque eu sei que não adianta eu te oferecer isso dado, tu não vai aceitar — ele falou com aquele jeito quase resignado, já me conhecendo bem demais. Sabia que eu ia correr até o último minuto, e sabia também que eu jamais aceitaria dinheiro assim, de mão beijada. Eu soltei o ar devagar, tentando engolir o nó que subia na garganta. — Eu vou dar meu jeito, Lobo. Tu me conhece, eu sempre dou meu jeito — respondi. Ele me olhou com aquele semblante pesado, como quem queria fazer mais, mas entendia que comigo não adiantava. Não era orgulho. Era só a forma como eu fui moldada. Eu não gostava de ficar na mão de ninguém, nunca gostei. Sempre lutei pelas minhas coisas. E, sinceramente, se a minha mãe tivesse me falado da situação desde o início, nada disso estaria acontecendo. Eu não estaria correndo assim, nem desesperada desse jeito. Teria vendido a moto antes, pegado bico extra, dado um jeito sem precisar chegar nesse ponto. Quando levantei o olhar, vi ele. O Muralha. c*****o, que homem. Um deus grego, esculpido à mão. Ombros largos, peito gigante, tatuagem escapando pela gola da camiseta. Que homem gostoso. Não dava nem pra negar. Mas eu não tinha cabeça pra isso agora. Nunca nem troquei uma palavra com ele. Ele sempre foi aquele cara que passava rápido pela favela, vinha resolver o que tinha que resolver e sumia. Sempre rodeado de bandido, com o semblante tão sério que parecia esculpido em pedra. As poucas vezes que o vi, confesso, foi de se admirar. Uma bela vista, mas eu tinha problemas demais pra me permitir pensar em homem. Segui na minha correria, mais doida do que antes. Já era quase noite, o céu escurecendo rápido, e eu continuava de porta em porta, quase implorando pra vender minha moto. Mas nada. Parecia que o universo fazia questão de me f***r. Então, sem ter mais pra onde ir, fui pro único lugar que me acalma: minha sala. O centro comunitário. O lugar onde eu dou aula pras crianças, onde tem meu saco de porrada, meus tatames, meu cheiro, minha essência. Eu mandei minha mãe parar de me ligar, avisei que só voltaria pra casa quando arrumasse a p***a da grana. E eu tava falando sério. Eu só ia voltar quando resolvesse aquilo. Entrei, joguei o saco de porrada no chão e comecei a descarregar tudo que tava entalado em mim. Cada soco era um “não” que eu tinha escutado. Cada chute era a cara do Coringa me ameaçando. O som do impacto ecoava pela sala vazia, misturado com meu fôlego descompassado. Eu já tinha perdido a noção do tempo, tava ali há sabe-se lá quantas horas. Até que, no meio de um golpe, me veio uma lembrança. Algum tempo atrás, num dos campeonatos que organizei aqui no morro, um cara me abordou. Falou sobre uma luta clandestina, que pagava muito dinheiro. Disse que eu me sairia bem, que era luta livre, valia tudo. Eu, na hora, neguei. Disse que esse mundo não era pra mim. E não era mesmo. Eu sempre quis a luta limpa, justa, o tatame, o ringue oficial, o juiz. Mas naquele momento, o desespero falou mais alto. A necessidade faz a pessoa. Eu precisava daquela grana, não tinha mais alternativa. E mesmo sabendo que ia me sujar, que talvez me arrependesse pro resto da vida, foi ali, no chão do meu tatame, sozinha, ofegante, com a mão ardendo de tanto bater no saco, que eu tomei a decisão. A necessidade me fez. Não era orgulho, não era coragem. Era fome. Era medo. Era a p***a da sobrevivência que me empurrava. Eu me sentei no chão, encostei a cabeça no saco e fechei os olhos. Senti o suor escorrer pelas têmporas, o corpo inteiro pulsar, eu não tinha escolha, a minha decisão estava tomada, eu tinha que fazer aquilo… Eu me levantei do chão do tatame com o corpo todo doendo. Não era só o corpo, não. Era a alma latejando, como se estivesse sendo espremida, sugada, implorando pra eu desistir e me jogar num canto. Mas eu não podia. Fui até o meu celular, que tava largado em cima do banco, peguei ele com a mão trêmula e comecei a procurar o número do cara. O contato que eu tinha guardado ali fazia meses, mas que eu nunca pensei realmente em usar. Fiquei encarando aquele nome salvo por tanto tempo que minha visão embaçou. Meus dedos suavam, escorregavam na tela, o coração batia tão alto que parecia um tambor dentro da minha cabeça. “É isso, Bárbara. Ou é isso, ou tua família vai pagar.” Respirei fundo, fechei os olhos, e toquei em “ligar”. O celular chamou umas três vezes antes dele atender, e quando atendeu, veio aquela voz asquerosa, carregada de falsa doçura que me fez revirar os olhos na hora. — Bárbara, que surpresa a sua ligação, minha princesa… a que devo a honra? — ele falou, arrastando as palavras num tom nojento, que me lembrava c*****o velho, mesmo ele não sendo velho de fato. Era o jeito. Aquele jeito escorregadio de quem tá sempre pensando em quanto pode lucrar com o próximo. Eu prendi o ar por um segundo, contei até três pra não desligar na cara dele e perdi a paciência rápido: — Tem data? Hoje? Preciso de uma luta em 24 horas. — Falei seca, direto, sem rodeio, sem dar espaço pra ele jogar o papo furado dele. Ele deu uma risada. Uma risada baixa, meio gutural, que me deu nojo na hora, me fez querer lavar o ouvido. — Ah, Bárbara… que urgência é essa? — ele falou, e eu pude imaginar o sorriso escroto dele do outro lado da linha. — Esse teu jeito apressado só me dá mais vontade de te ajudar. Mas olha, por coincidência do destino, tenho sim algo pra hoje. Mando um carro te buscar daqui a uma hora. Esteja preparada. A grana é alta, minha linda. Pode mudar tua vida. Antes que eu pudesse responder qualquer coisa, ele desligou. Só ficou o bip prolongado me ensurdecendo. Naquele mesmo instante, as lágrimas brotaram dos meus olhos como se tivessem guardadas há dias, presas num dique que finalmente se rompeu. Eu larguei o celular, me apoiei no espelho da sala e deixei o choro vir. Chorei alto, chorei com o peito. Chorei por tudo. Pela minha mãe, pelo meu irmão, pela minha moto, pelos meus sonhos, pela minha dignidade que eu tava prestes a colocar num ringue sujo, no meio de um monte de animal apostando, gritando, torcendo pra me ver sangrar. Mas era pela minha família. Tudo era pela minha família. Eu me olhei no espelho, ainda com o rosto molhado. Encarei cada marca no meu corpo. O corte antigo perto da costela, as cicatrizes miúdas nos joelhos, o inchaço no ombro direito, sempre um pouco mais alto por causa da lesão. Eu poderia ter ido tão longe. Eu sei disso. Eu tinha talento. Tinha disciplina. Mas o destino é c***l e não quer saber de quem merece. Ele só passa por cima. Hoje, nada disso importava. Não importava se meu joelho ia aguentar, se o ombro ia sair do lugar, se eu ia sair dali andando ou carregada. O que manda na máquina é a cabeça. E a minha cabeça só via uma coisa: o Coringa na porta da minha casa, o fuzil na cara da minha mãe, o meu irmão chorando na cadeira de rodas, sem entender p***a nenhuma. Eu ia entrar naquele ringue, fosse lá o que fosse, e ia sair com o dinheiro. Ia sair campeã. Nem que pra isso eu tivesse que vender minha alma. Abaixei o rosto, respirei fundo, e fiz o que sempre fiz quando precisava me recompor. Fechei as mãos em punho, pressionei contra o peito e falei baixo, pra mim mesma: — Você já passou por coisa pior. Você é a rocha dessa p***a toda. Não vai ser hoje que tu vai quebrar. Levantei o rosto, sequei as lágrimas com a palma da mão, e deixei o olhar endurecer. Quando me olhei de novo no espelho, vi a Bárbara que eu conheço. Aquela que não se entrega, não importa quantos golpes a vida dê. Eu ia lutar. E dessa vez, não era por medalha, não era por troféu. Era pela minha casa, pela comida na mesa, pela segurança da minha família. Era pra mostrar pro Coringa que eu não precisava dar nada pra ele além do dinheiro. Eu só saía do ringue hoje com a p***a da grana na minha mão. Nem que fosse com o corpo em frangalhos, o sangue lavando meu rosto e o gosto de ferro na boca. Porque dignidade, a minha, ninguém ia comprar, e eu não ia dar o coringa o direito sobre a minha vida.
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