Capítulo 4
PILOTO NARRANDO
Depois do Jacaré me encher o saco por causa da garota filha da putä, mandei ele vazar e fiquei na minha frente boa, até chegar a hora de fazer os meus corres. Subi na moto e dei partida. Jacaré já tava me esperando com aquele sorriso de quem sabia que o “rolê” ia ser tenso. Tinha um nóiä me devendo, e eu não ia deixar passar. No meu morro, ninguém fica de gracinha. Se eu deixo um achar que pode, no dia seguinte é todo mundo testando a minha paciência. Geralmente eu deixo isso com o Jacaré e os vapores, mas esse nóiä tava achando que era o tal e eu ia mostrar como que eu resolva essas porräs, não que ele não soubesse, mas acho que ele tava achando que tem peito de aço.
Jacaré tava quieto no caminho, o que era raro, mas eu sabia que ele tava só se preparando pra zoar depois. E quando chegamos, o nóiä tava lá, sentado num canto, fingindo que não sabia que eu tava indo atrás dele.
Piloto — Fala aí, arrombadö. Tá devendo, né? — a minha voz saiu baixa, mas todo mundo ao redor ficou quieto. O silêncio que eu gosto.
Zeca levantou as mãos, começando aquele discurso de sempre, cheio de desculpas e promessas vazias.
Zeca — Não consegui ainda, piloto. Mas semana que vem...
Piloto — Semana que vem? — Cortei, me inclinando pra ele. — Tu acha que tá falando com quem? Banco? — Falei sacando a minha arma e colocando bem no meio da testa dele.
Ele ficou mudo, o olhar dele alternando entre mim e Jacaré, que tava encostado na moto dele, rindo baixo.
Zeca — Eu já tenho uma parte do dinheiro, tá aqui — Ele falou batendo a mão no bolso na bermuda.
Piloto — Vou deixar uma coisa clara. Se tu não me pagar até amanhã, não vai ter semana que vem pra você. Entendeu?
O nóiä balançou a cabeça tão rápido que achei que fosse desmaiar e eu abaixei a minha arma. Jacaré deu um passo à frente, pegando o dinheiro que o cara tinha no bolso como uma “garantia”.
Jacaré — Isso aqui vai servir de entrada. O resto, amanhã. — Jacaré sorriu, mas eu sabia que ele tava só alimentando o medo do cara.
Resolvido, subimos de volta nas motos. O giro tinha sido rápido, mas suficiente pra mostrar que aqui ninguém me tira de otáriö.
Jacaré — Bora na quadra tomar uma gelada? — Jacaré sugeriu enquanto arrancávamos.
Eu não tava muito no clima, mas acabei cedendo. Talvez uma cerveja me ajudasse a esfriar a cabeça.
Quando chegamos na quadra, o lugar tava cheio. Moleques jogando bola de um lado, uns casais conversando no canto, e aquele cheiro de churrasco misturado com o som de risadas e música baixa. Jacaré foi direto pra barraca de cerveja, enquanto eu dava uma olhada no ambiente.
E foi aí que eu vi.
A tal Bianca.
Ela tava sentada numa mesa com a Camila, moradora aqui do morro desde pequena e o Rafael, filho da minha madrinha. Ele tava rindo de alguma coisa que ela falou, e, pior, ela também. A marrenta que tinha subido até a minha boca mais cedo, cheia de atitude, agora tava ali, rindo e sorrindo como se o mundo fosse perfeito. Nem parecia a mesma pirralha de mais cedo com cara de brava.
Minha mandíbula travou, e eu senti um calor subir pelo corpo. Não era ciúme. Não podia ser. Era irritação.
Jacaré — Tá olhando o quê, patrão? — Jacaré apareceu do meu lado, já com uma garrafa na mão.
Piloto — Cala a boca.
Ele seguiu o meu olhar e começou a rir antes mesmo de falar qualquer coisa. Nesse momento, a tal Bianca falou algo e os três mudaram de mesa.
Jacaré — Ah, entendi. Tá putö porque a marrentinha tá lá com o Rafa? Relaxa, cara. Ela só tá sendo simpática.
Piloto — Simpática? — Me virei pra ele, a minha voz saindo mais baixa, mas com uma força que ele conhecia bem. — Cala essa porrä da boca antes que eu te dê um tiro na sua cara.
Jacaré riu ainda mais. Ele sabia que eu não ia fazer nada, pelo menos não com ele.
Jacaré — Tá bom, tá bom. Não vou falar mais nada. Mas, Piloto, tá na cara que essa garota mexeu com você.
Ignorei o comentário dele e voltei a observar. Ela tava de costas pra mim, mas Rafael não. Ele me viu e levantou a mão em um cumprimento. Não respondi. O meu foco tava todo na Bianca, nos sorrisos que ela dava, na forma como parecia à vontade com ele.
Jacaré, claro, não ficou quieto por muito tempo.
Jacaré — É engraçado, né? Ela tava toda marrenta com você mais cedo. Agora tá aí, rindo e jogando charme pro Rafa. Nem parece a mesma pessoa.
Meu punho fechou involuntariamente, mas eu me controlei. Não ia dar esse gostinho pro Jacaré.
Piloto — Vai pegar outra cerveja pra mim.
Ele deu de ombros e saiu, ainda rindo baixo.
Enquanto esperava, continuei observando. Rafael tava dizendo alguma coisa, gesticulando com as mãos, e a pirralhä parecia fascinada. Eu conhecia aquele olhar. Ela estava gostando. Isso me incomodava mais do que eu tava disposto a admitir.
Quando Jacaré voltou, me entregou a garrafa e se apoiou na mesa ao meu lado.
Jacaré — Então, qual é o plano?
Piloto — Não tem plano.
Jacaré — Ah, claro que tem. Você não é de deixar as coisas assim.
Dei um gole na cerveja, tentando ignorar o que ele dizia. Mas ele tava certo. Eu não era de deixar nada passar. E ver a pirralhä ali, rindo e se abrindo com alguém que não era eu, tava me corroendo por dentro.
Piloto — Só tô esperando.
Jacaré ergueu as sobrancelhas, surpreso.
Jacaré — Esperando o quê?
Piloto — Ela olhar pra cá.
E, eventualmente, ela olhou. Não foi imediato, mas aconteceu. O olhar dela encontrou o meu por um breve momento, e eu vi a confusão nos olhos dela. Como se ela não entendesse por que eu tava aqui, por que eu tava olhando.
Mas ela desviou, voltando a se concentrar no Rafael.
Isso só me irritou mais.
Piloto — Vamos embora.
Jacaré piscou, surpreso, mas não questionou. Ele sabia que eu já tava no meu limite.
Enquanto saía da quadra, sabia que essa história com a pirralhä tava longe de acabar. Ela podia rir com o Rafael o quanto quisesse, mas, eventualmente, ela ia perceber uma coisa: nesse morro, tudo passa por mim.
E isso incluía ela.