Hela

2111 Words
Ao contrário de para eles, eu sou sua libertação” Ela está adulta agora. A garotinha com a foice tomou uma forma adulta. O vestido longo e preto descendo liso como um manto que cobre seus pés e mãos delicadas, pálidas e fantasmagóricas e molda-se ao corpo que parece uma estátua de gesso. O volume de seu decote quase nulo ainda sim existente e que me faz engolir em seco. O longo cabelo escuro indo até a cintura em fios que parecem um véu de tão esticados e me fazem querer tocá-los como os de Iker, seus olhos como poços sem fundo dos quais não há escapatória e só a fria incumbência de seu ofício. Linda. Mortalmente linda. Eu poderia escrever poemas para ela agora. Ela ainda segura sua foice, impiedosamente, esquartejando os demônios que tomam a sua frente como se nada fossem e sujando a lâmina prateada da sua foice com um líquido viscoso preto que se assemelha a diesel. Embaixo dessa ponte que balança, oscila e sacoleja há um rio de larva e a sensação de morrer queimada não me é agradável. O calor é insuportável, uma quentura que é só indescritível que não te atinge mas te faz sentir um pão no forno. Os gritos que alcançam meus ouvidos parecem de um coro atormentado. As risadas demoníacas. Eu noto que os pés dela estão acorrentados, os pés da Morte estão presos ao Inferno. As pessoas temem a Morte, mas ela é indescritivelmente bela, fantasmagórica e pálida. Estes indivíduos temerosos sobre a única certeza inerente a vida a veem como as amarras finais da existência e culmina o resultado dos seus esforços como vivos: O nada! A viagem sem volta! O esquecimento perpétuo e a putrefação! Tantas pessoas cuidam dos corpos quando vivas e no fim não podem levar consigo algo no qual empenharam tantas das suas horas, dias, meses e anos aprimorando. Mas os saberes e os estudos, eu me pergunto se esses ficam na alma como impressões finais que ficaram na mente, o conhecimento me soa como algo forte demais para ser apagado mesmo quando somos resumidos ao nada que vem depois do pós vida, se existir um pós. Há uma graça nas pessoas que se dedicam ao corpo esquecendo-se de suas mentes e alimentando a ideia de que a endorfina da atividade física que traz bem estar momentâneo distrai da verdade inabalável do fim. É meio sádico que tenham se empenhado tanto em vaidade exterior e tudo no que trabalharam no físico seja extinto num piscar de olhos. Os que temem a Morte nada mais temem que o vazio da existência que resulta no culminar das várias experiências humanas ou mesmo nenhuma que no fim é só o fim, o corpo bonito e a bela carcaça apodrecendo cheio de larvas e se decompondo sem mais o que o vivifica no chão ou se tornando cinzas aos que preferem ser cremados. E a Morte sendo o belo ser que é não discerne ninguém, feios, bons, velhos, jovens, maus, bonitos, ricos ou pobres... é isso o que mais me fascina nela. É isso que me faz querer fazer a ela um cortejo. Não há tabus, não há senso de moral, há apenas a ceifa e sua fome voraz por tudo o que existe e está no mundo e não burlou o ciclo. Estou no Inferno, mas se isso me causa qualquer alívio que exista um Paraíso não sei bem. Gostaria de dizer que ver o Inferno me faz acreditar mais em Deus ou no criador. E olha que eu me considero uma pessoa crédula. Quer dizer, minha filosofia não é niilista e o conceito de bem e m*l sempre foi algo com o qual com todas as forças me agarrei. Mas e agora? Agora que só o que quero é reencontrar os que perdi e ignorar o fardo que me foi incumbido e a cruz que tenho que carregar? O sofrimento é romantizado e talvez o niilismo sirva como uma verdade c***l que contenha o ego que exige que haja algo mais porque contemplar a inexistência depois da Morte é insuportável a um extremo que deixa qualquer pessoa insana. Ou será que o sofrimento te fortalece? Te dá uma garra para suportar coisas que você antes não se julgava capaz quando você o supera... é duro superá-lo, mas depois que você supera o sofrimento e ganha, a paz interior é aos poucos instalada na alma de pensar que você desconhece seu próprio potencial? Afinal, por que sofremos? Contudo se não sofrêssemos a vida seria um vazio descomunal. Tão complexo. Será que por querer uma existência mais fácil e sem sofrimento, por querer cortejar a Morte, isso faz de mim alguém sem esperanças? Sou alguém vazia? Alguém que enxerga a realidade como uma engrenagem sádica e pessimista fazendo assim com que sem querer e mesmo tendo visto o que Dante descreveu na Divina Comédia, no fim, o nada é só o nada? Ou será que ver a Morte como uma consequência da vida e uma contraparte me torna justamente capaz de aceitá-la como algo natural? O que nós humanos somos sem a morte? Se todos fôssemos imortais sem a benção de Deus e a promessa do fim das dores o que seria do mundo? Sofrimento incessante, interminável e dilacerante? Um inferno ainda em vida. O que pessoas como Kai, os vampiros, que burlaram a Morte e as regras do universo sentem em ter que se alimentar de outros para que a Morte seja satisfeita? É um preço justo? O sangue é a vida! Só que para Kai viver era preciso o sangue de outras criaturas. Como ele se sentia sobre viver, não envelhecer, mas em troca outra coisa ter que morrer para ele vencer a Morte? Não vencer de fato, mas ludibriá-la? Gostaria de poder perguntá-lo como foi a existência dele como um deus da carnificina. Eu percebo que parei de andar pela ponte que balança. Morte me encara, impaciente, então toma meu pulso e me guia até chegarmos ao monte e ao fim do ponte, meus pés se firmam no barro do quase monte que se ergue sobre o rio de larva. A mão dela continua no meu pulso. Nossos olhos se encontram. Eu gosto dela, seu toque é frio como o de Kai, apesar de protetor e quase maternal com quem a entende e a vê não como o verdadeiro fim, mas uma porta para um novo começo da existência. Contudo eu não sou uma suicida. Difícil explicar o que é estar perto dessa bela entidade cósmica cuja melancolia e vontade de cumprir meu último desejo me comovem. Nós duas continuamos a caminhar, eu apenas a sigo e a deixo me guiar. Morte sempre me observa com se para se certificar de que estou atrás dela. Ela com certeza não conseguiria libertar alguém do Inferno se disso dependesse não olhar para trás. Um sorriso vem aos meus lábios por lembrar-me do mito de Orfeu e a ordem dos deuses do submundo para que não olhasse para trás para poder ter sua amada de volta. Quando se olha para trás e não se concentra no caminho da frente, quando o passado é o que te molda e você não morre para ele, você está preso como Morte as correntes do inferno. Porque contemplar o passado é ver uma coisa imutável, mas o presente, o próprio nome já diz, é um presente poder vivê-lo e seguir para o futuro. A vida por si só é uma dádiva. Em algum momento minhas pernas pareciam cansadas. — Demetria... — A Morte me chama. — Oi. — A respondo ainda divagando. — Está com medo? — Questionou-me amorosamente quase. — Com medo de mim? A voz dela é tão linda, doce, infantil quase apesar de ter uma eloquência materna, contraditória, mas tudo na vida não é paradoxal? Ouvir a Morte chamar seu nome te faz ter um ímpeto de viver estranho. Como ter medo de alguém como ela? Mas algumas pessoas a temem e eu não as culpo também. — Não medo. — Respondo assim. — Apenas curiosidade com o que vem após você. Ela sorriu, assentiu com a cabeça e coçou o queixo, então me mirou como se avaliasse a veracidade das minhas palavras e parecendo notar algo que desconheço, Morte me estendeu a mão como se estivesse se apresentando. Aceitei sua mão gelada. — Sou Hela. — Morte disse calma, quase como se me dissesse para chamá-la assim para não haver tanto temor com a alcunha “ Morte” . Hella, é o nome que os nórdicos deram a deusa da morte que fica em Helheim. — Eu sou o fim, mas também uma nova jornada para vocês humanos. A matéria do corpo se desfaz, o próprio Mestre disse isso “ A carne para nada serve, o espírito é o que vivifica”, mas a energia que é a consciência ou a alma, os pequenos átomos em seus milhões, seguem para outros planos quando são leves e não se tornam densos de arrependimentos, para ganharem novas experiências e entendimentos. Quando acontece de almas pesarem, elas se tornam assombrações na Terra na qual esteve ou em Tretagon. Entenda que o céu e o inferno ainda não são o pós morte até que o Filho do Homem regresse, ou se preferir, até que a Fênix venha buscar seus eleitos. Há outros planos de evolução antes disso tudo, novas chances de se aprimorar as consciências. Planos em que se busca aprimoramento das almas humanas e as vezes não humanas como os seres sobrenaturais quando por algum motivo alcançam a Morte e não tentam me ludibriar. — Você tem raiva quando tentam ludibriar você? Coisas como os deuses da carnificina ou se preferir... os vampiros? — Eu sou incapaz de conter meu ímpeto. — Ou alguém como eu que se tornou imortal acidentalmente. — Demetria, não te odeio até porque você não é parasita da vida de ninguém, mas sim te observar aqui me deixa chateada. Quando tocou a adaga do infinito, sua energia dentro desse corpo tornou-se atemporal, você venceu o Tempo e venceu a Morte. É meio que um tombo para o meu ego, senhorita. — Ela confessou rindo um pouco parecendo não estar mesmo chateada. — Contudo, os deuses da carnificina, outros seres humanos que em alguns momentos não estavam prontos para ceifa têm que morrer para eles viverem. Eles vaidosamente se tornaram os anjos da morte. Os vampiros na Terra, os deuses da carnificina em Tretagon e vários outros nomes nos universos alternativos que existem. — A voz ganhou sombria eloquência, os olhos inominável raiva e chamas e a mão livre se fechou em punho. —Acha que isso é justo? Sangue é vida! — Ela disse numa confissão. — Graças ao sacrifício do Filho do Homem na Terra, e em Tretagon da Fênix, que me venceram, assim como outros tocados pelo criador em diferentes planos de existência, as almas humanas também não ganham fim, mas eu sou seu portal para outra existência. Só que perceba que não foi por medo de mim que Jesus e Adam se sacrificaram, foi pelo mais puro amor que se impuseram ao sofrimento e me deram seu sangue e alimentaram minha revolta contra Adão e Eva que me criaram como consequência de sua consciência adâmica que é o fruto da perdição que os trouxe inteligência, mas afastou-os do Pai. E o Criador me odiou quando me viu nascer porque eu significava o fim do que ele amava e então ele me deu seu filho como se assim dissesse que a sua forma que também me amava e cedia a si mesmo para conter minha fúria. — Isso é lindo. — Eu consegui dizer. Morte suspirou, eu vi lágrimas se formarem nos olhos dela: — Sim, é. É por isso, que mesmo que os corpos físicos não possam viver, devido ao Tempo e a mim, que somos consequências, como um acordo entre mim e o criador as consciências continuam a existir e eles as aprimora para que possam alcançá-lo. Eu me arrepio inteira com essa fala. — Você viu Deus? Ela riu ao que parece da minha ingenuidade pelo modo que seus olhos lindos se voltaram para os meus como se buscasse paciência e ela me respondeu: — Ele está em tudo, criança. É impossível não vê-lo. Mas se fala de um Deus velhinho, vigiando a Terra lá de cima, não é assim que funciona. Ele é tudo. Ele é criação, a destruição, o Alpha, o Ômega, o princípio e o fim. Eu nasci dele, assim como o Tempo, apesar de sermos a consequência da desobediência, ainda somos parte do todo, assim como ele.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD