Capítulo 2

3055 Words
Sou toda orgulhosa, cada pedaço de mim o é, eu sei disso e sei bem, mas saber disso não vai me fazer deixar de ser. Não é assim que defeitos funcionam. Você se olha no espelho, se enxerga, vê dentro de você, mas mais do que se ver você se entende, as peças encaixadas fazem sentido tanto quanto as peças desencaixadas. É uma história todinha escrita na pele, nos nervos, no coração e na cabeça e é você quem sabe se ler, só você. O que o Murilo me disse não mudou em nada meu posicionamento diante dessa situação com o Davi. Ele esperava o quê? Que vir me dizer que o Davi terminou assim que começou a se envolver comigo me faria correr de volta para ele? Datas, protocolos só fazem a diferença em processos burocráticos, não em relacionamentos, quando o atestado de solteiro do Davi foi homologado não me interessa. Me interessa é aquele primeiro almoço, quando ele se lembrou da cachoeira e não me disse nada sobre a Emily, me interessa é quando eu vi o nome dela no visor do celular dele e ele disse que era a secretária, me interessa todas as vezes em que ele me fez acreditar que sua preocupação era apenas com a nossa família e nunca me disse a verdade, me interessa quando ele pediu que eu confiasse nele, mas nunca abriu o jogo comigo. Ter sido sincero com ela não anula não ter sido sincero comigo. Era a honestidade dele que eu esperava, ninguém é meio honesto, você não pode decidir com quem dizer a verdade e com quem mentir e esperar confiança de volta. Nada disso quer dizer também que eu agi corretamente, no dia seguinte minha própria consciência me afirmava o contrário. Peguei pesado? Peguei, mas não estou aqui pra atirar flores em quem me taca pedras, não vou bancar a racional quando é a dor que me domina por inteira. Davi não me procurou todos esses dias, não serei eu a procurá-lo, mas a Beca sim ficou balançada com a aparição do Murilo, se fez de fortona, mas chorou feita criança no colo da mãe. Tia Vânia, coitada, adiou a viagem de volta para Vila dos Anjos, tio Álvaro voltou sozinho e fomos as três para nosso apartamento. - Você já conversou com ele, Rebeca? - Conversar o quê? Sabe quantas horas ele ficou pendurado no telefone comigo todos esses dias e sabe em qual delas ele me disse sobre a prima? Nenhuma! Ele era o principal interessado em não acobertar o Davi, mas o instinto de proteção masculina nunca falha. – dizia em meio às lágrimas, eu já nem chorava mais depois que a Beca começou a molhar o colo da tia Vânia. - Você nunca vai saber a versão dele dos fatos se não der uma oportunidade. - Aí é que está o problema, tia. – se viraram as duas pra mim. – Beca não quer saber a versão dele, porque tem medo de acreditar na versão dele e ficar no time contrário a mim. – olhei para aquela carinha doída. – Beca, eu e o Murilo não estamos em oposição, não se martirize por achar que assim você está sendo fiel a mim, pois não está, não há felicidade alguma em mim ao te ver assim. Sua mãe tem razão, vá conversar com ele se é isso que você está se mordendo pra fazer, se dizer umas verdades a ele vai te deixar de coração vazio, então vai e faça. - Mas já pensou na situação que isso tudo vai virar se por um acaso eu resolva perdoar o Murilo? - Não, não pensei. - Mandis! – ela dizia nervosa me dizendo que já havia rodado o filme completo em sua mente. – Como eu levo um relacionamento com o Murilo sem te forçar a conviver com o Davi? - Beca, você pode estar se esquecendo de um detalhe um tanto quanto importante, o Davi é meu primo, você com ou sem o Murilo não vai impedir a minha convivência com ele enquanto ele estiver no Brasil. A única diferença que me importa é se durante essa convivência eu vou ter que te ver sorrindo ou chorando. Os olhinhos dela brilharam em realização, como se alguém tirasse esse enorme peso das costas dela. - Beca, me diz uma coisa, quantos segredos meus você contou para o Murilo? O quanto da minha privacidade você abriu pra ele? - Nada, eu nunca diria nada. - Então, não cobre isso dele em relação ao Davi. Ela olhou para o chão pensativa. - O que você vai fazer agora? - tia Vânia já tinha percebido até a mudança na respiração dela que eu sei. - Não sei. - ela pensou. – não faço a menor ideia. - Você não precisa se decidir agora, deita esse cabeção no travesseiro que eu tenho certeza que amanhã você vai saber. Amanhã eu voltaria para o estágio e para a faculdade, eu teria meu tempo preenchido completamente. Manhã, tarde e noite tomados, sem tempo pra mais nada, nem pra lembranças, exatamente como eu precisava que fosse. *** Quarta feira foi o dia em que a Beca finalmente decidiu procurar pelo Murilo que não insistia mais, ela estava nervosa, eu sabia, ficou de aparecer por lá no finalzinho do expediente e apareceu, apertando os dedos de um jeito que nem parecia a minha amiga, passou primeiro na agência e me chamou, era o meu terceiro dia de volta ali e não tinha visto nem a sombra de Murilo ou Davi. - Você acha que ele está lá? - Só vai descobrir quando for. - E o que eu digo? - Diz a que veio, o que sentiu e essas coisas. – ela é melhor com essas coisas do que eu. - E se eu encontrar com o Davi? - Beca... – eu disse quase impaciente. - ... você é visceral, espontânea, não adianta nada ficar fazendo planos aqui quando você vai chegar lá e agir exatamente como você sentir que deve. Anda logo e entra agora nesse elevador. Ela foi. E por mais que eu estivesse feliz por vê-la se resolvendo eu passei o resto do dia e da noite de mau humor, era só meu terceiro dia e eu estava exausta com esse ritmo, passava meu tempo à espera do final de semana, mas aos finais de semana eu trabalharia também, já sentia que colocaria meus estudos de lado e isso não é algo que eu goste de fazer. Voltei para casa às onze e meia da noite sabendo que teria que estar as sete da manhã na faculdade. Abri a porta de casa e me deparei com a Beca sentadinha no sofá a minha espera, com as mãos no joelho e tudo, o rosto não deixava transparecer muita coisa, depois do restaurante tinha até me esquecido dela e do Murilo, tinha me esquecido até vê-la ali. Me sentei no outro sofá, olhando de frente pra ela. - E aí, como foi? - Estranho, fácil, dolorido, triste e ao mesmo tempo caloroso. - Muitas coisas pra uma conversa. Me conta. – e ela abriu o bico, não parou nem pra respirar, me contou como foi difícil vê-lo de novo, mas que eu estava certa e ela disse tudo que queria dizer há dias, ele se explicou, pediu desculpas, pediu também que ela entendesse as atitudes dele e implorou pra que eles ficassem de fora do meu rolo com o Davi. - Você respondeu o quê? - Que eu precisava pensar, mas na verdade eu precisava conversar com você. - O que você sentiu quando conversou com ele? - Saudades, só saudades. - Então você já tem a resposta. - E você? Tenho te achado tão triste. - Não se preocupe comigo, só estou cansada, é muita coisa acontecendo ao mesmo tempo e é difícil de lidar. - Esse ritmo em que você está vai acabar te deixando doente, Mandis, sério mesmo reveja esse lance de trabalhar a noite, você sabe que mamãe está bancando todas as despesas do apê, ela mesma colocou todas as contas daqui em débito automático, com o dinheiro da sua bolsa você consegue viver até o fim do ano pelo menos. – esse tinha sido uma das últimas providências de tia Vânia antes de voltar finalmente para Vila dos Anjos no domingo passado. Eu não tinha mais como agradecê-la, mas ainda assim eu não podia deixar todas as minhas obrigações nas mãos dela, era responsabilidade minha correr atrás da minha independência e a grana do estágio dava para o básico, pra sobrevivência, qualquer saída eu precisaria pegar dinheiro emprestado e eu não quero isso. - Eu vou levando enquanto eu der conta, tem muita mulher aí que trabalha fora e ainda tem filhos pra cuidar, já estamos em agosto, só preciso que chegue dezembro. - E a sua monografia? - Gabriel tem me ajudado muito com alguns artigos, vou focar nisso durante o horário em que eu não estiver trabalhando no sábado e no domingo. - Eu me sinto uma preguiçosa te ouvindo falar desse jeito, não peguei um textinho sequer sobre meu TCC. – eu ri dela. - A necessidade é o que nos molda. – me levantei dando o assunto por encerrado, amanhã o dia começaria cedo novamente. Ela se levantou e me abraçou. - Não deixe a necessidade tirar o melhor da Mandis. Por favor. Não disse mais nada, foi para o quarto dela e eu fui logo depois para o meu, remoendo essa última frase. *** Quando eu me lembrava quem era o cliente da pesquisa em que estávamos trabalhando eu sentia aquela torcidinha no peito, doía um pouquinho até. - Você está preparada para a reunião? – Gabriel parava de frente para a minha mesa. Não. - Sim. Hoje, sexta-feira, teria uma pequena reunião com a empresa contratante, ou seja, Davi. Desde que fui avisada perdi meu rumo, não sabia como seria vê-lo depois de uma semana e meia separados e não tinha certeza se vê-lo pela primeira vez em uma reunião de trabalho seria uma experiência  tranquila. Sinceramente eu esperava que isso fosse demorar um pouco mais, que desse tempo de pelo menos calejar os ferimentos. Não deu. Só que ninguém aqui na agência sabia sobre o nosso envolvimento, sobre minha mãe, sobre nada e era assim que eu queria que continuasse, pra isso eu teria que ser durona, como o mar calmo que esconde suas correntes violentas e tem seus segredos submersos. Minha surpresa foi ver o Murilo chegando sozinho e cumprimentando meu chefe. - Amanda. – me cumprimentou assim que chegou, estávamos todos ainda no corredor. - Oi, Murilo, tudo bem? - Tentando ajeitar algumas coisas, mas bem sim. E você? - Eu estou bem. – estava nada, mas eu nunca assumiria. - Que bom. – me sorriu, sei lá se acreditava em mim ou não, só sei que entrei naquela sala de reuniões aliviada por ser ele ali e não o sócio. Foram nem quarenta minutos de falatório um tanto quanto desnecessário, mas eu estava lá de corpo e cabeça presentes, participativa, observadora, vendendo meu peixe como profissional. Murilo, logo se despediu e disse que precisava ir, mas estava satisfeito com o andamento das coisas, o restante permaneceu trocando ideias ao redor da mesa, foram uns cinco minutos depois que meu chefe percebeu que as anotações do Murilo tinham ficado pra trás. - Amanda, você poderia levar lá em cima até ele, são informações importantes que ele precisa discutir com o sócio. – nozinho no estômago se formou, estava sendo mandada para a cova dos leões e desarmada. Não pude negar, não se n**a com facilidade a chefe seu, principalmente quando você tem tanto a provar para ele. Peguei o papel e fui. As sensações que antecedem um momento desses não são facilmente descritas, dizer que minhas mãos suaram e meus batimentos aceleraram é florear muito o que eu estava vivenciando, nem era bonito esse estado, um suador pelo corpo todo e as pernas bambinhas, nem prestava atenção a nada. Hesitei quando cheguei ao andar deles, hesitei quando cheguei à porta deles, hesitei quando ouvi as vozes deles, nessa hora eu tremi pra valer, de um jeito que ficaria bem difícil me fazer de valentona, dei meia volta, me achei i****a por isso, dei meia volta de novo e entrei na sala de espera que estava vazia, nunca tiveram uma secretária por aqui. As vozes ficaram mais nítidas, vinham de uma das duas salas, me aproximei. - É i*****l eu ter que estar lá. - Você sabe o motivo. - O motivo mais i****a do planeta, i****a como você. - Você já me chamou de i****a vezes o suficiente. - Quem sabe assim você não deixa de ser! Eu me aproximei em silêncio, vir até aqui só não era pior do que vir até aqui quando eles estavam discutindo e eu tinha motivos para achar que eles falavam de mim. - ... não começa com isso de novo, Murilo! Eu já estava de frente pra porta, cheguei a desistir, mas não antes de ser vista, agora sair correndo iria me fazer parecer uma i****a e esse já era o título do Davi. Os dois me olharam surpresos, mantive meus olhos no Murilo, respirei e fui, estiquei os papéis para ele e disse a quê vim, Davi me olhava, eu sabia sem precisar olhar para ele, mas não disse nada. Murilo era o motivo de eu ter vindo, mas ele olhava de um para o outro e meio que gaguejava como se fosse um intruso ali. - Obrigado, Amanda. – recebeu a papelada. – Acho que vocês deviam aproveitar que estão aqui e conversarem. – ele ainda parecia perdidinho entre o Davi e eu. - Eu estou no meu horário de trabalho, tenho que voltar. – me apressei em voltar pelo mesmo caminho que vim, Murilo foi mais rápido e pulou na minha frente com as mãos levantadas como pedindo que eu parasse. - Murilo, para com isso, deixe ela ir. – ele soava bravo e aquilo me irritava, a voz dele tão próxima me irritava. - Não, não, não, vocês precisam resolver isso. Agora! – o Murilo tinha até uma certa urgência na voz agora. Tentei passar por ele e ele fez como uma criança cercando a porta. - Murilo, eu preciso ir. - NÃO! p***a! Vocês são insuportáveis! Será que vocês não perceberam que todo mundo foi pra lama com essa história? Todo mundo fez merda aqui e agora é a hora que a gente tenta limpar esse festival de bosta que nós fizemos, eu corri atrás de limpar o meu, até a Beca está se esforçando também e vocês não fizeram nada! – alguém estava nervoso aqui. – É a hora de vocês começarem a limpar também, vocês dois cagaram tudo e ficam aí de braços cruzados. Então, se você quiser sair daqui vai ter que fazer o mesmo que fez com o Davi e me amarrar, c*****o! Uou! Não esperava por essa. Meu rosto ficou vermelho de vergonha. - Você não sabe de nada, Murilo! Não há nada pra resolver porque tudo já está resolvido! – gritei de volta. - Claro! Porque tudo está resolvido quando ela diz que está resolvido. – me irando ainda mais o Davi solta essa com seu sarcasmo. - Do que é que você está falando? – espumei. – Não venha de novo com seu papel de vítima. - É sempre isso pra você? A vítima e o vilão? - Vai dizer agora que eu tenho culpa? - Vai dizer que não me julgou e sentenciou do jeito que você quis sem ouvir uma palavra sequer do que eu tinha pra falar? – a cada pergunta sem resposta nossas vozes ficavam mais e mais altas. - ... e você tinha algo para falar? Porque não ouvi sua voz nenhuma vez por todos esses dias. - A escolha de se esconder atrás do seu orgulho e da sua razão foi sua! Eu tinha um milhão de motivos pra te pedir desculpas até você decidir agir como uma arrogante vingativa. Você nunca quis entender nada, fez o que quis e sumiu cheia de razão, eu ia atrás de você pra quê? - Você está todo putinho aí porque se sentiu humilhado, isso sim, e como o mimado e egoísta que é você só consegue enxergar seu próprio umbigo. - Até quando você vai ficar nesse pedestal isolada, Amanda? É isso que você acha? Que eu estou puto por ter sido humilhado? Você realmente acha que o ponto alto disso tudo foi ter me amarrado na cama pelado? Pra você tudo se resume a isso quem está no controle, quem é o mais forte, quem venceu. Pra você está tudo resolvido porque acha que pagou na mesma moeda. Orgulho do c*****o! “É sempre você contra o mundo, só que você não consegue ver que não é ter me amarrado na cama que me deixou puto, foi você ter me amarrado quando fingia que ia fazer amor comigo. O que me quebrou Amanda, é você ter decidido se vingar de mim em muito menos tempo que levou pra confiar, se é que alguma vez confiou.” “Eu nunca resisti a você, nem quando tentei e foi por isso que eu disse a Emily que não podia continuar com o que tínhamos logo depois que eu te beijei na boate. Eu nunca namorei a Emily, ela nunca teve nem metade do que eu te dei nesse único mês. Eu sabia que ela me esperava em Nova York, mas naquele dia do beijo eu me esqueci de que tinha que voltar. Não te contei sobre ela primeiro porque eu achei que você e eu não íamos acontecer, eram empecilhos demais entre a gente, mas dois dias depois eu estava de joelhos te chupando nesse escritório, completamente desesperado, você sempre escorregadia, uma incógnita pra mim, tive receio de tocar no assunto e você sumir depois de me chutar o saco mais uma vez e segundo porque é que tinha que contar? Ela aconteceu antes de você e nunca foi sério. Eu investi todo meu tempo tentando derrubar seus muros, Amanda, qualquer outra coisa se tornou insignificante, eu fiz de tudo pra entrar e isso não fez a menor diferença no fim.” “É por isso que não te procurei, não é por estar com raiva ou doído, é porque eu não fiz a menor diferença, eu posso ser um filho da p**a, mas eu sei quando o jogo acabou.” Pediu licença e saiu da sala, da própria sala, vê-lo com toda aquela raiva e decepção me chocou, fiquei imóvel, ali eu percebi que meu m*l humor não era cansaço, eu estava sentindo uma p**a falta dele. Quando ele saiu foi que percebi que estava sozinha, Murilo não estava na porta mais, jogou a bomba e fugiu, só acho que não era esse o fim que ele esperava.
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