Certeza.
Segundo o dicionário, “s.f. convicção, segurança plena e total, conhecimento certo e absoluto, estabilidade, ausência de inconstâncias, aquilo sobre o qual não há dúvida, evidente, caráter que é certo”.
Segundo minha própria definição é tudo que eu tinha e não tenho mais.
A gente faz nossas escolhas, planos baseados nas certezas que temos, construímos nossa visão de mundo, justiça a partir daquilo que acreditamos e temos como verdade, se alguém mexe nessa base todo o resto desmorona, não fica pedra sobre pedra.
Era assim que me sentia.
Eu tinha meus momentos de decisões tomadas um tanto quanto precipitadas, eu sei, mas na maioria das vezes eu planejava e planejava muito, então quando me via nessa condição de questionar minhas ações nem sono mais me vinha. Primeiro vinha a dúvida, depois a culpa, depois os questionamentos e depois uma tentativa desesperada de voltar aos motivos inicias que me levaram a tomar aquela decisão naquele momento, aí acontecia de conseguir me convencer da minha posição inicial, todo esse processo se repetia infinitas vezes durante o dia, mas com mais intensidade a noite. Me martirizei com a indecisão de procurar o Davi pra conversar ou não, cheguei a ensaiar o discurso, mas voltei no meio do caminho porque foi no meio do caminho que o processo das incertezas começou de novo. Uma hora eu tinha certeza de A e na outra certeza de B.
Agora, imagina minha surpresa que durante esses dias de lutas internas eu fiquei sabendo através da minha amiga que o Davi havia viajado, voltou de volta para Nova York, coisas pra resolver dissera ela. São nesses momentos que os seus fundamentos caem.
Daí, só te resta se agarrar àquilo que você tem, seus projetos e ambições, se são muitos ou não nem importa, importa é que são eles que te completam e te fazem maior, magoada ou não a Amanda de hoje é muito maior do que a Amanda de meses atrás.
Mas que o Davi me fazia uma falta, ah fazia! Aquele sentimento de inacabado, de coisas a se dizer era r**m demais. Quantas vezes eu discursei sozinha uma resposta à nossa última conversa, quantas vezes eu quis dizer o que eu não disse naquele dia, as coisas não eram como ele havia pintado, se não eram como eu achei que fossem também não era do jeito que ele dizia ser.
Eu queria ter dito isso na cara dele, queria muito, mas ele foi embora e aí eu fiquei apenas com o arrependimento.
Beca nem conversava de Murilo comigo, achava injusto falar da felicidade dela pra mim, Murilo nem falava mais de Davi, tinha entendido e aceitado nossos ressentimentos, nem me disse nada da viagem, embora nos víssemos com frequência nos corredores do prédio, quando Beca ia encontrar com Murilo nem me avisava, era como eu sabia aonde ela ia, pra todos os lugares ela dizia, menos quando estava com ele, nem nas sextas e finais de semana ela era dele, esses dias ela guardava pra mim, pra onde eu quisesse ou não ir, com o tempo eu fui pedindo pra que ela fosse fazer algo com o Murilo que eu ficaria bem sozinha.
Fazia uma semana que eu havia descoberto que o Davi estava em Nova York, eu ainda lidava com a ausência definitiva dele quando o pai dele me ligou, assim de repente, como não quer nada. Inicialmente foi boa a sensação que aquele contato me causou, depois revivi todo o rompimento com minha mãe, meu relacionamento com o Davi e questionei o porquê dessa procura.
Eu já havia aguentado as merdas da minha mãe, não estava a fim de aguentar as merdas do pai do Davi também, eles que resolvessem entre si e não me perturbassem, mas ao invés de dizer isso fui educada, o m*l das trouxas, não saber dizer não, bom, de qualquer forma ele era meu tio e não havia feito m*l algum para mim, não poderia ser rude ou rejeitar o convite de encontrar com ele que logo chegaria à Belo Horizonte. Não disse mais nada do que isso, nada sobre o filho, nada sobre minha mãe, nada sobre o que queria, apenas que estava chegando e que queria me ver.
Ele saberia de tudo? Ele saberia do quê?
Se eu não sabia o que ele sabia minha função era ficar quieta, ouvir mais, ficar na minha, assim a chance de me entregar seria menor, deixar ele mostrar até onde sabe sobre tudo que houve e qual sua posição sobre tudo isso, ofensa eu não recebo mais, críticas também não, se a intenção do meu tio for repetir o discurso da minha mãe ia ouvir mais do que ela, minha fase de passiva da minha própria vida havia passado, agora quem fazia minhas próprias escolhas era eu mesma e ninguém era obrigado a concordar.
E nem sei até onde era uma boa ideia encontrar meu tio agora, ainda doía tanto, a raiva, a saudade e a culpa endureciam o que havia restado do meu coração, Davi havia ido embora e eu nunca disse tudo que deveria ter dito, agora eu estava assim inflada de todas as palavras que não saíram, elas pesavam, me corroíam, minavam toda minha vivacidade. Não sei se me faria bem, mergulhar ainda mais nessa merda toda.
Mas por outro lado fazia parte da nova vida que eu queria pra mim saber enfrentar tudo de frente, assumir minhas atitudes e consequências, embora eu falhe miseravelmente quando se trata do Davi eu precisava pelo menos conseguir executar isso em alguma parte da minha vida.
Foi por isso que decidi ligar e marcar no sábado que eu sairia mais cedo do restaurante, marquei em um café ali perto mesmo.
Tio Augusto estava casual com uma blusa polo e bermuda, me aguardava sozinho e à seco, nenhuma bebida sobre a mesa. Sorriu quando me viu, sorri de volta.
- Você está diferente desde a última vez que te vi. – disse ao me abraçar. – Parece mais, não sei, sisuda.
- São as obrigações, tio. – brinquei. – Último período da faculdade não é brincadeira.
- Sei que não é, mas sei que você dá conta do recado.
- Não aposta muito alto, não, não quero te ver perdendo por minha causa.
- Você sempre foi muito determinada, me lembro quando garotinha você ficava horas fazendo trabalhos escolares durante os almoços de família e quando dizíamos pra você ir brincar e largar um pouco os cadernos você dizia “não, tio, eu tenho muito pra melhorar”. – encheram de lágrimas os meus olhos, eu me lembro muito bem desse tempo, na escola em que eu estudava os professores davam estrelinhas por tarefas executadas e no fim do mês quem tinha mais estrelinhas ganhava um presente que era entregue na reunião de pais, o rosto da minha mãe se iluminava diante das amigas mães quando eu era a premiada. Era o meu momento de glória. – Davi ficava muito bravo quando eu e a mãe dele te usávamos como exemplo, mas sempre funcionava. – ele riu.
- Eu era bem exagerada. – acompanhei o riso dele. – Mas com o tempo eu aprendi a arte da malandragem também.
- Duvido! Você é uma menina de ouro, Amanda, não tenho dúvida alguma de que irá muito longe ainda.
- O problema do longe é que demora muito pra chegar, eu já vou estar muito feliz se chegar a algum lugar perto. – sorri.
- Você sorri, mas seu sorriso não toca os olhos. – mudou o tom da conversa sem aviso, me olhou sério, porém doce, queria saber o que eu não revelava, querer saber, provavelmente, era a causa desse encontro.
- Estou um pouco cansada, tio, só isso, acabei de sair do trabalho. – desviei.
- Você tem estágio hoje?
- Não, eu trabalho em um restaurante aqui perto.
- Em um restaurante? Por quê? – franzia a testa agora.
- Porque sim. – me esquivei.
- Amanda, é melhor que cheguemos logo ao ponto principal. Não sei o que está havendo, mas sei que está acontecendo alguma coisa. Você e sua mãe brigaram e por mais que perguntemos ela não diz nada. Vim ver como você estava e te encontro abatida e cansada. O que está acontecendo, Amanda?
- Você realmente não sabe?
- Não, deveria saber?
- Eu e minha mãe brigamos, é definitivo. Ela me renega como filha e eu a renego como mãe.
- Isso é absurdo!
- É o que acho quando eu penso no que deveria ser um relacionamento entre mãe e filha, mas eu não tive outra opção, o caminho da minha felicidade é um só e ele não passa por ela ou pelo que ela acha que é melhor pra mim.
- Amanda, ela é sua mãe! – ele permanecia chocado, inocente ainda pra saber quem era minha mãe.
- E a pessoa que queria que eu voltasse a namorar com o cara que eu peguei transando com outra porque ele tem dinheiro e influência, a pessoa que ameaçou me levar de volta para Vila dos Anjos se eu não voltasse com ele, tirou todo o dinheiro da minha conta e está – desculpe o palavreado, tio. – se fudendo pra como eu estou vivendo agora que estou por minha conta.
- Sua mãe fez isso?
- Fez.
- Ela não está te mandando nenhum dinheiro?
- Não.
- Mas como? Aquela casa é sua!
- Que casa? – que casa? Do que é que ele está falando?
- A casa em que vocês moram! Em Vila dos Anjos! – agora ele parecia mais revoltado.
- Como assim a casa é minha?
- Seu avô fez um acordo com o pai do cara que engravidou sua mãe, aquela casa fazia parte do acordo, era uma herança adiantada pra você.
- Eu nunca soube disso! – agora a desinformada era eu.
- Seu avô exigiu várias coisas pra eles, ele nunca teria deixado esse assunto ser resolvido de outra forma, foi um baque pra eles quando sua mãe engravidou, ele foi atrás e fez com que o pai do garoto se responsabilizasse por você, o acordo consistiu em ajuda financeira adiantada e eles estariam isentos de te registrar e de pagar pensão mensalmente.
Eu me sentia enjoada, enojada e perplexa. Como eu nunca soube sobre nada disso? Como essas pessoas decidem sobre mim e nunca me questionaram ou me deixaram saber sobre a decisão deles e o que eu pensava dela?
- Não pense m*l do seu avô, Amanda, ele dizia que você não precisava do nome de um cara que nunca fez esforço pra fazer parte da sua vida.
- Mas e o que eu acho que eu preciso? Quem se importou em me perguntar?
- Você nem tinha nascido quando esse acordo foi feito.
- Não estou questionando o acordo, tio! Eu tenho 23 anos agora, quem é que se preocupou com o que eu queria? Quem foi que me perguntou como eu me sentia? Ninguém nunca me disse que eu tinha uma casa! Mentiram pra mim a respeito do meu pai e eu nunca nem soube o nome dele! Fizeram o que acharam melhor pra mim quando eu não podia decidir, mas quando eu já tinha idade o suficiente não me perguntaram se estava tudo bem pra mim.
- Eu entendo, pensei que você soubesse de pelo menos parte dessa história, mas quando seu avô morreu você ainda era muito nova, Amanda. E pra ser sincero, eu concordo com ele, esse cara nunca quis fazer parte da sua vida.
- Eu nunca tive o interesse de procurá-lo antes, tio, agora é que eu tenho menos ainda, mas eu poderia ter escolhido receber pensão, esse acordo não tem validade jurídica alguma, eu tinha o direito de receber, mas o que me disseram é que ele estava morto.
- Você não precisa da pensão dele, eu sou seu tio vou te ajudar, além de conversar com sua mãe sobre essa insanidade que ela está fazendo.
- Tio, eu não quero seu dinheiro, eu não quero o dinheiro da minha mãe e também não quero nada de um estranho. Quero viver minha vida do jeito que eu quiser e nunca mais ter que ouvir as coisas que eu ouvi da minha mãe, nem dela e nem de ninguém, estou prestes a me formar e daqui pra frente todas as minhas conquistas vão ser só minhas, é isso que eu quero.
- E o seu estágio? Como você está conciliando tudo?
- Não é fácil, mas eu dou conta. Não sou a primeira e nem a última a fazer tripla jornada.
- Mas você não precisa.
- Se eu quiser fazer da minha vida o que eu bem entender eu preciso sim.
- Eu te admiro pela sua força, Amanda, mas tudo isso me deixou bem indignado. O Davi não está em BH esses dias, mas ele e o sócio estão passando um tempo por aqui. – cada vez que eu ouço esse nome é uma facada nova no coração. – Ele pode te ajudar com qualquer coisa que você precisar, Amanda.
- Obrigada por se preocupar, mas está tudo bem.
- Não, eu vou ligar pra ele hoje mesmo e saber quando ele volta...
Aah quando ele volta? Também queria saber...
- ... tio, não precisa, me deixa resolver isso sozinha. – e por isso eu dizia também sobre o Davi. – Por favor.
- Tudo bem, mas eu vou conversar com sua mãe, nada disso tem cabimento e me desculpa por tocar no assunto sobre seu pai.
- Eu tenho que te agradecer por isso, ninguém nunca me disse nada sobre esse assunto, foi importante eu saber alguma coisa sobre minhas origens mesmo que isso não tenha mudado nada no meu sentimento por ele.
- Eu preciso ir agora, minha querida, mas saiba que ligarei pra ter notícias suas, se cuide.
- Obrigada, tio, pelo cuidado, essa conversa foi importante pra mim.
Depois que tio Augusto foi embora eu ainda fiquei parada na calçada por um tempo assimilando tudo que foi dito ali naquela conversa.
São tantos os buracos na minha história que eu me pergunto se eu tinha alguma chance de me sentir completa. Não tenho pai, tenho uma mãe omissa, desde que me entendo por gente eu estou nessa missão impossível de agradar ou ser aceita, nunca tive lugar no mundo além do lugar que a Beca me emprestou. Meu namoro com o Lucas durou lá seus dois anos, mas era aquele namoro de fim de semana, de ligar às vezes durante a semana pra perguntar se estava tudo bem, eu nunca fiz do Lucas meu lugar no mundo, ainda bem, a traição dele doeu, mas foi fácil me recuperar. Foi o Davi que mexeu com as estruturas podres da minha vida, foi com ele que eu tive vontade de mergulhar de verdade e acabei enxergando meus pés presos. Eu vi inseguranças que eu não sabia que tinha, vi o medo que não sabia que tinha, foi aí que eu vi o buraco que nunca tinha visto antes, essa incompletude é o que me impede de procurar o Davi e de resolver as coisas com ele, porque as coisas nem sequer estão resolvidas comigo mesma.
Não tenho problemas de auto estima, nunca tive, o meu problema é outro, é não ser dona da minha própria vida, é até outro dia ter que tomar decisões baseadas naquilo que as pessoas esperavam de mim, alguém que não pode escolher com quem quer se relacionar sem precisar se esconder não tem como viver de verdade suas próprias decisões. Hoje eu sei que eu sou o meu lugar no mundo e o que eu estou fazendo agora é correndo atrás de que ele fique um lugar melhor. Eu estou me completando.
Só depois disso eu posso lidar com o Davi, só depois eu posso lidar com o que eu sinto em relação a tudo que aconteceu.
O que o meu tio me contou me irrita porque é mais uma prova de como eu tenho sido coadjuvante da minha própria vida, aos 23 anos eu descubro que tenho uma casa! Aos 23 anos eu descubro que o pai que eu nunca nem soube o nome me deu uma casa antes que eu nascesse.
Eu nunca quis saber sobre esse pai, quando criança eu até perguntava pra minha mãe, mas ela nunca gostou dessas perguntas então eu parei de perguntar, agora eu questiono se não foi pela minha mãe que eu decidi não saber dele quando pude, quantas outras decisões não foram tomadas também baseadas no que minha mãe queria ou achava que era o melhor?
Fui lentamente me afastando do restaurante onde estávamos e caminhando de volta para casa. A noite estava fresca, contrastando com o calor que fazia mais cedo, mas dentro de mim as informações chacoalhavam tanto que eu nem conseguia prestar atenção ao meu redor.
A necessidade que está me corroendo e ninguém entende é a de olhar toda a minha vida, desde o comecinho e decidir de verdade o que é melhor pra mim, do que é que eu preciso ou não, de quem é bem vindo em minha vida ou não acrescenta em nada. Eu estou cansada, estou triste, estou ferida, mas eu estou colocando minha vida em seu próprio eixo. Não é fácil, mas precisa ser feito.
E talvez uma atitude que eu preciso tomar é a de aprender a me defender e a defender meus direitos, me disseram por muito tempo o que eu deveria escolher e me pisaram quando não aceitei, então agora seria a hora de colocar os pingos nos is.
Peguei meu celular e liguei de volta para o meu tio, ele atendeu rápido.
- Sobre a casa, se ela é minha eu quero receber aluguel por ela. Você pode me ajudar com isso?