O calor voltava à cidade, ainda era primavera, mas o vento batia diferente no meu rosto ou era eu quem o recebia diferente, eu mudava mais rápido que as estações. Me orgulhava disso.
Depois do que meu tio contou sobre a casa decidi tomar a decisão que me pareceu a mais justa comigo mesma, tio Augusto tomou as medidas necessárias e logo no dia seguinte minha mãe, conforme o que ele me disse, foi noticiada pelo advogado de que eu exigia receber pela casa, como não era de se esperar ela preferiu sair da casa a me pagar o que era de direito meu.
Com a saída dela preferi vender a casa, meu tio tentou me aconselhar do contrário, mas eu tinha convicção do que eu estava fazendo. Eu não tinha nenhum vínculo emocional com aquela casa, além das lembranças dos anos vividos com minha mãe e o dinheiro da venda me seria muito mais útil do que o do aluguel. Com minha decisão meu tio decidiu compra ele mesmo a casa, acho que ele tinha medo que demorasse a aparecer um comprador e queria me ajudar de alguma forma.
Quando recebi o dinheiro da venda, pouco tempo depois, saí do restaurante, meu tio havia implorado pra que eu fizesse isso, Beca também insistiu, até tia Vânia entrou na história, concordei que era a decisão mais acertada a tomar.
Agora tudo tinha voltado ao normal, dinheiro não era mais um problema e eu tinha tempo novamente pra me dedicar à faculdade, era como se tudo voltasse aos trilhos, o inferno que minha vida tinha virado se tornava em calmaria e tinha gosto de vitória isso. Tinha gosto de escolha certa. A única bagunça que ficou foi a bagunça que o Davi deixou e essa bagunça doía.
Mesmo depois que o tio Augusto quis falar com o Davi eu não tive notícias dele, nem o vi novamente desde o nosso confronto no escritório, Beca não dizia nada e eu nem ousava perguntar, às vezes eu me pegava stalkeando o f*******: dele, mas ele não publicou mais nada desde aquela foto de nós quatro. Eu esperava sem saber exatamente o quê e tinha esperança de que no fim tudo fosse dar certo, mas por dentro um medo de que não desse me tirava o sono.
Quando eu penso sobre tudo que aconteceu entre o Davi e eu só consigo enxergar a poeira do caos. Ele era meu desejo m*l resolvido da adolescência, aquela vontade nunca saciada, de repente ele reaparece e só deu para ouvir o barulho da explosão. Depois da traição do Lucas saber que o Davi me desejava mexeu com a minha carência, fazia bem ao meu ego e mergulhei sem pensar, esse furacão me dominou por completo, corpo, mente e coração, mas não é assim que se resolve um problema de carência, assim é que se cria um problema ainda maior.
- Sabe, Mandis, eu tenho muito orgulho de você. – Beca me dizia olhando para o rótulo do condicionador no corredor do supermercado, ela fazia isso desde que tinha se tornado adapta da técnica que excluía o uso de petrolatos nos fios. – Você mudou muito nos últimos meses e eu me orgulho de verdade de você. – não me olhava ainda.
- E aonde você quer chegar?
- No quanto você mudou. Você é mais forte agora, dá pra ver, parece até que você cresceu.
- Mas...
- Não tem “mas”, é isso, quando eu te vejo eu vejo confiança, você está certa das atitudes que tomou e de como as coisas encaminharam depois, sua decisão sobre a casa exigiu muito pulso firme, você foi muito corajosa.
- E?
- E que é admirável isso! E é como se fosse possível ver estampado no seu rosto todas essas decisões, você mostra na sua cara a sua força.
- Obrigada, Beca, seu apoio sempre foi importante.
- Só que...
- Sabia que tinha um porém!
- Não é isso!
- È o quê então?
- Eu estou feliz por você e pelas suas escolhas.
- Beca, você já disse isso e estava na parte do “só que”.
- Eu sou sua amiga, Mandis. – ela soltava o condicionador e pegava a minha mão. – Eu me preocupo com você e principalmente com aquilo que você já deixou de se preocupar.
- Você está falando do Davi? – ela arregalou os olhos, esse nome não era citado há algum tempo entre nós duas.
- Não! Eu estou falando do brilho dos seus olhos que você não tem mais, eu estou falando do seu coração!
- Eu não tenho tempo e nem cabeça pra me envolver com ninguém, Beca, eu estou bem desse jeito.
- Não venha me dizer que está bem, eu não sou b***a! E não estou falando de relacionamento ou sexo, Mandis, não é o puro prazer que dá brilho no olho da gente não, eu reparo muito bem nos seus banhos de duas horas, das duas uma ou você passa esse tempo todo chorando ou batendo s******a, nunca te vi saindo de lá com olho vermelho, então você está é cansando essa sua mão.
- Rebeca! – olhei ao redor em pânico de alguém ouvir essa louca.
- Você está se sentindo solitária, Mandis, eu não estou falando isso por causa da siririca...
- Xiu!! – pedi silêncio desesperada.
- Eu não estou falando isso por causa da s******a. – repetiu aos sussurros. – Mas porque nem seus banhos intermináveis tem te devolvido o brilho no olhar e isso me destrói, Mandis.
- Acho que a gente deveria conversar sobre isso em casa. – Beca espalhava aos quatro cantos detalhes sobre minha i********e e nem parecia incomodada, eu é que estava ao ponto de um ataque.
- Eu só quero que saiba, Mandis, que não me importa se o seu brilho depende do Davi ou não, eu só quero que você resolva isso da mesma forma com que você resolveu com sua mãe. Corte o que precisa ser cortado ou restaure o que ainda tiver vida.
Beca e seu talento de me dar tapa na cara sem me encostar.
- E como eu faço isso?
- Você que é a fodona agora, migs.
- Não no que diz respeito ao Davi, nem sei se ele está no Brasil.
- Está sim, chegou ontem. – eu já ia perguntar como ela sabia disso, mas diante da minha cara de espanto a cara dela foi culpa que só. – O Murilo foi buscar ele no aeroporto. – os ombros dela até murcharam, tadinha.
- Tá tudo bem, Beca.
- Sabe, o Murilo é um péssimo amigo, se fosse você a culpada eu já tinha dado uns tapa na sua cara e te arrastado até ele, mas ele é um incompetente. Não acredito até hoje nas coisas que o Davi te disse, como ele pôde? Se ele não tivesse sido tão i****a vocês estariam juntos até hoje, a babaquisse dele que causou tudo isso, já falei pro Murilo jogar umas verdades na cara dele, mas ele não me ouve!
- Beca, não se envolve nisso e nem coloca o Murilo, vocês vão acabar discutindo de novo por minha causa, chega disso!
- De qualquer forma eu não acho que você tenha que correr atrás dele, em nenhum momento ele demonstrou mover uma palha pra se resolver com você, mas que você precisa resolver esse impasse chamado Davi na sua vida ah precisa! Ainda que seja aceitando o fim, qualquer que seja a sua decisão eu vou estar aqui pra te apoiar.
- Vamos embora pra casa?
- Doeu o coração, né? – quando confirmei com a cabeça ela passou o braço pelos meus ombros e deixamos pra trás os corredores do supermercado.
Beca era meu choque de realidade, ela jogava a bomba, mas ficava pra dar o suporte.
Eu precisava dar um fim ao problema Davi, mas de fato não estava nem um pouco disposta a procurá-lo o que tornava a resolução desse impasse uma grande incógnita.
Mas se hoje foi o dia de ouvir amanhã será o dia de pensar, Beca tinha razão, eu posso resolver isso também, só que agora eu precisava apenas de um chocolate quente no calor das noites de fim de setembro, só porque sim.
****
No dia seguinte tio Augusto ligou pra avisar que eu tinha uma série de documentos para assinar na prefeitura e cartório de Vila dos Anjos, minha ida até lá seria inevitável, ele pelo menos abriu a casa dele pra que eu tivesse onde ficar enquanto estivesse lá.
De novo eu voltaria para a cova dos leões.
Quando recebi o dinheiro da venda voltei a malhar, eu sentia realmente prazer em me exercitar, todo aquele papo dos processos químicos que ocorrem quando a gente faz atividade física (liberar endorfina, ocitocina e tal) funcionava pra mim, eu deixava um elefante na academia toda vez que ia até lá, saía muito mais leve. Beca dizia que a academia era o meu “Ricardão”, meu substituto do sexo, ela não estava errada.
No sábado eu ia cedo, aproveitando o ritmo que trabalhar no restaurante tinha me dado, na volta eu comprei algumas coisas para o almoço no supermercado que ficava quase que do lado da minha casa, umas duas casas depois. O choque com os preços não foi nada comparado com o choque de um Davi parado do lado de fora do supermercado, é como ver um fantasma. Eu ia tentar sair dali sem ser vista, mas quando aqueles olhões pretos caíram em cima de mim não tive chance alguma, ele ficou parado lá, me olhando enquanto eu esperava na fila do caixa.
Não fazia ideia do que aquilo significava.
Minha mão suava enquanto a moça passava lentamente e com muita paciência os produtos do casal que estava na minha frente. Com muita paciência também estava o Davi lá fora, parado.
Quando chegou minha vez ensacolei por conta própria minhas coisas, esperei pelo recibo e saí, ele veio na minha direção, suei, ele estava esperando por mim então.
- Te vi entrando aqui. – respondeu a pergunta que não fiz. – Tudo bem, Amanda?
- Tudo bem e com você?
- Comigo não, a gente pode conversar? – falou de um jeito que estraçalha com qualquer coração.
- Claro, tô indo pra casa.
- Eu te ajudo com as sacolas. – tirou as sacolas da minha mão e por acidente encostou o braço no meu, foi como jogar uma fagulha no mato seco, tudo pega fogo em instantes.
Fomos andando em silêncio, ninguém tinha coragem de abrir a boca, provavelmente ele estava discursando mentalmente assim como eu estava. Abri a porta de casa com o coração na mão, a Beca estava na sala, deitada no sofá com a cara em um livro qualquer, abaixou o livro até a altura do nariz e levantou a sobrancelha quando viu que eu não estava sozinha.
- Alguém largou de ser trouxa, parece. – ela disse sem mudar a expressão desconfiada.
- Oi pra você também, Beca. – ela não respondeu.
- A gente vai conversar no quarto. – avisei.
- Como foi no Ricardão? – ela soltou com o único intuito de provocar, não respondi, segui pelo corredor. – Se precisar é só gritar. – completou.
Entrei e esperei que o Davi entrasse também, fechei a porta do quarto. Ele olhou pra cama por alguns segundos antes de se sentar nela, foram algumas as vezes que ele esteve deitado ali, espero que ele se lembre de cada uma delas como eu me lembro.
- Eu não aguento mais. – soltou feito bomba. – Eu me segurei esse tempo todo pra não vir aqui te pedir desculpas porque achei que você não queria me ouvir. Se você tivesse gritado comigo, me jogado coisas, se você tivesse lidado com raiva, Amanda, eu saberia lidar, mas não, você foi tão fria, tão indiferente que eu me senti um bosta na sua vida, mas já se passaram quase dois meses e eu não consigo parar de querer ser só um bosta na sua vida.
“Eu já te disse o porquê de não ter te contado sobre a Emily, mas eu não te pedi perdão por isso e é pra isso que vim até aqui hoje, pra te pedir perdão. Perdão por não ter te contado e perdão por ter mentido.
Eu fui um i****a infantil quando te disse que ela era a minha secretária, mas eu te sentia tão escorregadia comigo que tive medo de contar. Eu não vou ficar dando mais justificativas, eu só queria pedir desculpas.”
Parou de falar e ficou me olhando.
- Você não vai falar nada? – ele me perguntou, eu continuava parada na mesma posição esperando pela continuação.
- Falar o quê?
- Amanda, eu vim até aqui pra conversar, não começa com esse joguinho infantil agora.
Me mexi inquieta.
- Não sei o que falar, você tem razão, já são quase dois meses e eu não sei mais o que falar. – esperei tanto que ele viesse aqui me dizer isso e agora eu olho pra ele e nada me vem à mente.
- Eu assumo minha culpa, mas se você tivesse conversado comigo antes eu teria te explicado...
- Se você tivesse me falado sobre ela eu não teria motivo nenhum pra fazer nada.
- Então se uma mulher aparecer hoje e te dizer que sou casada com ela é nela em quem você vai confiar?
Primeiro round Amanda sem resposta.
- Eu assumo que agi sem pensar, fui descontrolada e não tem um dia que eu não me arrependa disso, me desculpe.
- E por que você fez isso?
- O que é que tem o por quê? – cruzei os braços desconfiada.
- Tá vendo! Você nunca se revela totalmente, nunca me deixa entrar de verdade.
- Se eu não te deixava antes porque eu deixaria agora?
Segundo round Davi sem resposta.
- Você tem razão, por medo de te assustar eu traí sua confiança, mas eu vim aqui jogar limpo com você, queria que você fizesse o mesmo comigo.
- Você vem e me diz que eu nunca me abri de verdade, mas eu não concordo com isso, você sempre soube do meu ex, você acompanhou meus problemas com minha mãe, mesmo que eu não te contasse tudo você sabia de muitas coisas que rolavam entre minha mãe e eu, você conhecia toda minha rotina, você sabia sobre mim muito mais do que eu sabia sobre você! Não sou um livro aberto, Davi, mas não me fechei pra você. Não venha me dizer que teve medo de me assustar! Você me contou que seu pai te mantinha afastado de mim, o meu próprio tio, isso é muito mais assustador do que ter uma ficante em outro país e ainda assim eu fiquei, ainda assim eu quis você. Você quer saber o porquê do que eu fiz é porque eu não aguento mais ser passada pra trás, eu não aguento mais mulheres loiras surgindo do nada assim como a voz da minha mãe me dizendo “talvez seja uma preferência”, eu não aguento o sentimento que essa desconfiança e dúvida me trazem e todos esses pesadelos em que eu me afogo, fico pra trás ou eu volto a ser criança e todo mundo ri de mim, eu não aguento mais não me sentir o suficiente, eu deixei minha mãe pra trás por isso e vou deixar todo o resto que me fizer sentir assim.
Eu disse tudo sem derramar uma lágrima sequer, eu já era uma Amanda diferente não pude deixar de notar. Davi me olhava com aqueles olhos, ele via as minhas partes feridas, mas não me olhava com dó, ele não tinha aquela cara de querer me curar ou consertar meus problemas.
- Eu fui covarde, quando o Murilo descobriu sobre nós dois a culpa me corroeu, eu já tinha conversado com ele sobre oficializar com a Emily e ele ficou muito puto comigo e eu me senti traindo meu melhor amigo, de verdade, eu não tive coragem de te contar porque eu me sentia culpado e eu me sinto mais babaca agora por te fazer sentir assim, eu não sou o seu ex, Amanda, tudo que eu te disse, menos a parte da secretária, foi real. Eu tenho muito orgulho da mulher que você está se tornando porque é tudo mérito seu, só não me deixa fora da sua vida porque eu nunca te fiz sentir desse jeito quando éramos só nós dois, deixa eu contar pro mundo todo que eu quero você.
Ele havia se levantado e estava em pé de frente pra mim.
- Minha vida está mudando muito.
- Eu sei, meu pai me contou sobre a casa, eu esperei vocês terminarem a transação pra vir aqui.
- Por quê?
- Por que eu acho que esse é um momento que você esperou toda sua vida e por isso é um momento só seu, a força pra enfrentar sua mãe tem que vir de você eu não posso te atrapalhar, mas agora eu já não consigo ficar mais longe, não consigo mais ficar só assistindo, eu preciso fazer parte nem que seja só pra te abraçar no final do dia.
Meu coração já estava completamente derretido pelo homem a minha frente, foi isso que fez querer mergulhar, foi por isso que com ele foi tão diferente dos outros, Davi me via como igual, me tratava como igual, quando via minhas feridas me via como um soldado ferido que lutava por sua honra e não como uma pobre coitada que precisava de alguém pra ser o seu herói, ele me dava o espaço que eu precisava e não havia gentileza maior do que essa.
Dei um passo à frente ficando bem próximo a ele que não se moveu, só me assistia.
- Eu permito que você faça parte, eu quero que você faça parte, eu só não posso te garantir nada sobre como vai ser. Seja honesto comigo e eu serei leal a você. – peguei a mão dele e beijei, quando olhei de volta pro seus olhos ele me abraçou com a força que a gente guarda para os abraços de verdade, aninhou o rosto na curva do meu pescoço e ficou me cheirando ali, a mão descia e subia pelas minhas costas, me sentindo.
- Eu senti falta disso. – me disse ao pé do ouvido.
- Eu senti falta de você.
Me beijou o pescoço, a orelha, não me beijava a boca por cuidado, eu sabia, havia pontas a atar ainda.
- Davi?
- Oi. – me respondeu ainda cheirando meu cabelo.
- Eu preciso saber o que aconteceu depois que eu saí do seu quarto aquele dia. – parou o que estava fazendo e me olhou de frente.
- Você é boa como muitas coisas, mas fazer nós não é uma delas, quando a Emily entrou eu já estava na sala pra sair atrás de você, mas quando eu vi ela lá eu entendi o que tinha acontecido, eu acabei sentando e explicando tudo pra ela.
- Ainda bem. – ri ao imaginar a cena. – Me arrependi mortalmente de te deixar pelado e amarrado pra outra, tão lindo. – ri ainda mais alto.
Davi me puxou pra cama enquanto eu ainda ria, ficou deitado apoiado sobre o cotovelo me olhando rir dele.
- Você fica linda até rindo de mim.
- E você fica lindo até quando pelado e amarrado.
- Eu tenho certeza que você vai arrumar outra oportunidade pra me deixar assim. – antes que eu respondesse do outro lado da porta, nos interrompendo, um som alto tocava “aleluia, aleluia”, Rebeca Bandoli era uma enxerida de marca maior.
- Vai procurar o que fazer, Beca!
- Da pra ouvir vocês rindo do prédio todo. – que exagerada! – Vou ter que sair por causa dessa barulheira.
Saiu mesmo e deixou a gente lá rindo. Davi olhava cada centímetro do meu rosto.
- Namora comigo, Amanda, me deixa contar pro mundo todo que a gente tá junto.
- Deixo. E namoro.