capítulo 06

1208 Words
Viegas narrando capítulo 06 Patricinha. De salto, unha feita, bem vestida e cara de quem nunca lavou uma roupa na vida. Foi isso que eu vi quando o D levou a garota pra dentro da casa dele . E olha que eu já vi de tudo nesse morro , mula com cara de anjo, policial disfarçado de viciado, traíra disfarçado de amigo. Mas essa dele levar alguém pra casa dele ? Essa é outra novidade. Eu tava com ele na contenção, terminando de desenrolando as paradas com os cria , quando vi ele ir na direção dela pegou ela no colo e levou direto pro barraco dele . Na hora pensei deu r**m. Só que o D, quando resolve alguma coisa, não tem santo que faça ele voltar atrás. - Tu tá doido, D? falei entrando na sala dele , Ele nem levantou da cadeira. Só me olhou de canto, com aquele jeito dele que mistura calma e aviso. -Já começou? ce viu a situação da mina eu também não sou o monstro que o estado diz. - Comecei? Tu nem sabe quem é essa menina? De onde saiu? E colocou dentro do teu barraco . Desde quando tu virou abrigo de madame? Ele levantou devagar, pegou o cigarro de uma tragada . Como se eu não tivesse quase explodindo ali na frente dele. Mas a gente tem história. E história segura palavra atravessada. Conheci o D no tempo que ele ainda era só “Dieguinho ”. Moleque calado, sempre de canto, mas com os olhos atentos. Eu sou mais velho do que ele dois anos , e já tinha uma visão das coisas antes de nois entrar pro movimento, e ele ficava atrás observando. Até que um dia, no meio de uma troca, um vacilão apontou arma pra mim. Foi ele que pulou no meio e me salvou. Com treze anos , eu ja tava com quinze. Desde aquele dia, não desgrudei mais. Vi ele crescer, subir, tomar o lugar que hoje ninguém tem coragem de contestar. E tô com ele em tudo. Só que ser o braço direito também é falar o que ninguém tem coragem. E hoje… eu precisava falar. - D, tu sabe que não é pessoal. Mas essa menina… ela é problema. Cê viu o medo no olho dela? Tá fugindo de alguma coisa. E quando a rua sente cheiro de medo, vira festa pra urubu.Ele encostou a cabeça e soltou a fumaça com calma. -Eu sei de onde ela veio. E sei pra onde ela não pode voltar. Se quiser ficar, vai ter que aprender a viver aqui. E se errar… tu sabe como eu ajo. -E se ela for informante? Ou se o passado dela bater na nossa porta . - Ela não é. E se for, tu vai ser o primeiro a saber. Antes dela pisar de novo na escada. Mas por enquanto… tá sob minha proteção. Respirei fundo. Porque quando ele fala “tá sob minha proteção ”, não tem mais o que dizer. O morro inteiro entende isso como lei. Só que o problema é que eu conheço o D além da máscara de chefe. Sei quando ele tá envolvido. E não é difícil perceber que essa garota balançou alguma coisa nele. - Só me promete uma coisa, irmão . falei mais baixo, chegando perto. -Não deixa tua fraqueza virar buraco no nosso chão. Porque a gente construiu isso aqui com sangue. Com perda. Com lealdade. E se essa mina fizer tu cair, eu caio junto. Mas vou cair xingando, entendeu? Ele riu de leve. Aquele riso curto, que não sai nem da garganta. - Se eu cair, Viegas , é porque eu quis. Mas essa garota … ela tem alguma coisa naqueles malditos olhos azuis que me deixa intrigado . E a gente não nasceu pra julgar, irmão. Nasceu pra sobreviver. E às vezes, ajudar alguém é o que mantém a gente vivo por dentro. Fiquei em silêncio. Porque apesar da bronca, da dúvida eu entendi. E talvez ele também estivesse se salvando com isso. Antes de sair, virei de costas e disse. - Só lembra até flor nasce no esgoto. Mas tem espinho que fere mesmo sem flor nenhuma. Fica esperto, D. Desci pela um . Cada acelerada uma lembrança do tempo em que a gente corria descalço nesse cimento quente. Hoje, o tênis é caro, a camisa é de time europeu, mas o coração ainda bate como o de um moleque que viu mais bala do que festa de aniversário. A Rocinha não dorme. Ela cochicha. Murmura pelas paredes. Diz coisas que só entende quem cresceu ouvindo o barulho da tampa de marmita sendo fechada com força e da sirene avisando operação. E naquele dia, tinha algo no ar. Era o cheiro da rua desconfiada, das antenas ligadas. Passei pelo Largo do Boiadeiro e cumprimentei os moleques na esquina. - Salve, Viegas . disse um deles, encostado na moto com a mão já na cinta. - Fica ligeiro. Hoje o clima tá esquisito avisei, sem parar a moto . Eles só assentiu com a cabeça. Ninguém pergunta por quê. Só acata. Segui em direção ao Valão. No caminho, parei na laje do Rato, que serve de vigia pra parte baixa. De lá, dá pra ver tudo. - Alguma novidade? perguntei pro Biel, que tava com o radinho no ouvido e a arma atravessada no colo. - Teve um táxi subindo mais cedo, motorista nervoso. Disse que errou o caminho, mas ninguém aqui erra a Rocinha por engano. Pegamos placa e já passamos pro pessoal de baixo. - Boa. Mantém o foco. Qualquer coisa, chama direto no canal sete. A cabeça não parava. A garota do D podia até estar quieta, mas o problema nunca é o que a pessoa fala é o que elas esconde. E aqui, quem esconde demais, morre cedo. Voltei pela viela do Posto 13, parando na birosca da Dona Zuleide. Pedi um café. Enquanto ela preparava, vi de longe dois caras sentados num degrau, trocando ideia baixa. Um deles olhou na minha direção e desviou rápido. Gente que não é daqui costuma esquecer que a gente vê tudo, até o que não querem mostrar. -Cuidado com a língua, Zuleide. Tem ouvido demais no beco . falei quando ela voltou com a xícara. - Aqui é só café e oração, meu filho. O resto, deixo pros curiosos.Ela sorriu sem dente, mas os olhos… os olhos diziam que ela também tava sentindo o clima mudar. Subi de novo. Quando cheguei perto da casa do D, parei e fiquei observando. A luz de um dos quarto tava acesa. Sombra andando de um lado pro outro certeza que nao era o D ali , e me deixou intrigado . A Rocinha não é lugar pra alma leve. E se ela veio fugindo, achando que aqui é refúgio… vai ter que entender que aqui ou você aprende a rugir, ou vira eco.Antes de virar a esquina, olhei uma última vez pra casa dele. Tem gente que vem do asfalto e pisa na favela achando que é terra de ninguém. Mas aqui tem dono. E cê já botou teu nome na aposta. Agora… segura. Porque se o morro descer, desce pra todo mundo. 150 comentários....
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