Dona Celeste
Eu vi muita gente passar por esse morro . Uns chegaram com sede de poder, outros fugindo do mundo. Mas poucos entraram com os olhos da Erika perdidos, feridos, mas cheios de uma vontade silenciosa de resistir.
Cuido da casa do D há mais de anos. Vi esse menino crescer, endurecer, virar homem no meio do caos. Nunca fui de perguntar muito. Meu papel aqui sempre foi manter a ordem, garantir que a casa dele fique em perfeito estado, ele é enjoado com as coisas dele e gosta de tudo no seu devido lugar . Não sou de me meter na vida dos outros. Mas também não sou cega.
Quando ele me ligou pra vir ajudar ele aqui sem dar explicação, e só com aquele olhar dele que não admite discussão, eu entendi, essa menina tinha passado por coisa feia. E o D… ele pode ser o d***o em forma de homem pra quem vacila, mas tem um código. Um senso de justiça torto, mas real. E se ele decidiu proteger, é porque viu algo que vale a pena.
Hoje de manhã preparei o café como sempre. Forte, do jeito que ele gosta. Quando ouvi a conversa deles parecia um passarinho arisco. Fui com calma. Não se invade o espaço de alguém que ainda tá juntando os cacos. Falei com jeito, como minha avó me ensinou primeiro se acolhe, depois se ensina.
A vida aqui não é fácil. Nada é dado. Mas também não é solitária, se você souber andar do lado certo. E é isso que tento passar pra cada um que cruza meu caminho . Cuidar da casa do D é mais do que varrer chão e passar café. É manter o coração da coisa batendo. Porque ele comanda o morro, mas é daqui que vem a força silenciosa que segura tudo de pé.
Tem dias que lavo sangue do batente sem pestanejar. Tem noites que preparo comida pra quem acabou de enterrar um parceiro. Aprendi a separar o sentimento do necessário. Mas com ela… me peguei desejando que encontrasse aqui o que não teve lá fora. Uma chance. Um chão.
Digo pra todo mundo o D é bruto, mas não é injusto. Não aceita mentira, nem fraqueza disfarçada. Se a Erika tiver peito, vai se encontrar. Se tiver humildade, vai crescer. E eu? Estarei aqui. Com meu avental florido, minha chaleira sempre cheia e os olhos atentos. Porque às vezes, tudo que uma alma machucada precisa… é saber que tem alguém que ainda acredita nela.
Conheci o D ainda menino. Corria descalço pelas vielas com o cabelo desgrenhado e uma fome nos olhos que me apertava o peito. Não era só fome de comida. Era de afeto, de segurança, de ser visto. E eu vi. Desde o primeiro dia.
A mãe dele, Deus a tenha, era uma mulher guerreira, mas o destino foi c***l com ela. Partiu cedo demais, e deixou aquele menino com mais cicatriz que proteção. Eu prometi no velório dela que não deixaria ele se perder. Não como tantos outros. E, de certa forma, cumpri. Fiquei por perto, primeiro como vizinha, depois como figura presente. Quando ele começou a ganhar respeito e botar ordem no morro, veio me chamar.
-Tia, quero que tu venha cuidar da minha casa. Só confio na senhora.
Foi assim que vim parar aqui. Com meu café quente, minha voz firme e meu olho que tudo vê.
Já lavei roupa com sangue de inocente, já escondi menino que a polícia queria levar embora sem motivo, já preparei chá pra mulher que perdeu o filho pro tráfico e ainda assim teve que cozinhar no outro dia. Aqui, a gente vive de verdade. Sem filtro.
O D nunca foi santo, e ele mesmo diz isso. Mas tem Visão. E isso vale mais que muitos diploma e terno por aí. Protege quem precisa, pune quem trai. E agora, botou essa menina quebrada dentro de casa. Isso não é pouca coisa.
Ela ainda anda como quem pede desculpa por existir. Fala baixo, olha pros lados, parece sempre esperando o pior. Mas tem algo ali. No jeito que segura a xícara com força, no olhar que tenta entender tudo antes de agir. Vai dar trabalho… mas vai dar certo. Se quiser.
Hoje, enquanto ela comia o pão na chapa, vi nos olhos dela uma centelha que reconheço. A mesma que vi no D quando ele, ainda adolescente, me disse:
“Tia, eu não vou morrer pequeno.”
Ele cresceu, no mundo dele, no jeito dele. E se ela tiver coragem de enfrentar os próprios demônios, vai crescer também. Não do jeito que esperavam dela lá nos lugar chique, mas do jeito que a gente cresce aqui com verdade, suor, e às vezes, dor....
Amanhã vou levar ela até a Iara. Mulher séria, que aprendeu com a vida a se virar. Vai ensinar as coisas, se a menina quiser aprender. E se não quiser, também vai mostrar que aqui ninguém sobrevive à toa.
Eu olho pra Erika e penso nas tantas mulheres que já passaram por aqui. Algumas sumiram, outras viraram história. Mas poucas, muito poucas, tiveram o privilégio de começar dentro da casa do D. Isso é selo. É proteção. Mas também é cobrança. E eu vou estar de olho. Não porque desconfio. Mas porque me importo.
Se ela cair, levanto. Se mentir, não passo pano. Mas se lutar… ah, se lutar, vou estar aqui , no canto da cozinha, com o café quente, a palavra certa e a coragem que a vida me ensinou a dar.
Porque aqui, menina nenhuma precisa se reconstruir sozinha.
Tem gente que pensa que quem mora no alto do morro só conhece tragédia. Mas o que ninguém entende é que, mesmo no meio do desespero, a gente aprende a reconhecer beleza nas pequenas coisas. No cheiro de pão fresco, no barulho de criança brincando na laje, na luz que entra pela fresta da janela quando o sol resolve dar um alô. É nesses detalhes que a gente se segura pra não desmoronar.
Hoje, enquanto trocava os lençóis do quarto ao lado, o que agora é dela, pensei no quanto tudo mudou nos últimos anos. A casa, antes silenciosa, virou abrigo, rota, ponto de comando, às vezes até hospital. Mas o da Erika… é diferente.
Ela é do tipo que não chora alto, mas sofre fundo. Carrega o peso de ter sido enganada, usada, tratada como posse por quem devia protegê-la. E eu entendo. Já fui mulher de homem r**m. Já apanhei, já me calei, já me escondi dentro de mim. Só que um dia… juntei meus pedaços e fui embora. Nunca olhei pra trás.
É por isso que quando olho pra essa menina, vejo uma versão mais nova de mim mesma. Só que com uma vantagem ela tem chance de fazer diferente. De recomeçar cercada de gente que, mesmo dura, ainda sabe cuidar.
O D... Ah, esse menino virou homem antes da hora. E carrega no peito uma dor que ele nunca vai falar em voz alta. Mas eu sei. Cada decisão que ele toma, cada passo que dá, é com peso. E quando ele trouxe Erika pra cá, não foi por pena. Foi por escolha. Uma escolha que ele vai bancar até o fim , ou até que ela prove que não vale a pena.
Vi ele crescer endurecido pelo mundo, mas também vi ele chorar escondido quando perdeu o primeiro amigo. Vi ele passar noites em claro por causa de decisões que não tinham volta. Ele é chefe, sim. Mas ainda é humano. E isso... isso é o que o torna perigoso. Porque quando ele se importa, vira fera. E quem ferir a menina que agora tá sob a asa dele… vai conhecer esse lado.
Amanhã cedo vou levantar ela da cama. Não com grito. Com café e olhar. Porque mulher a gente puxa pro dia com leveza. Vou levar pra Iara, como ele mandou. E vou estar por perto, de longe. Observando. Não pra vigiar… mas pra amparar, se for preciso.
Tem coisa que o D nunca vai entender, porque é homem. Mas eu entendo. Dor de mulher tem cheiro, tem cor, tem jeito de andar. E Erika tá toda cheia desses sinais. Só que também tem o que importa tem fogo no olhar, mesmo apagado. E isso… ah, isso a vida não apaga pra sempre.
Aqui nesse morro, a gente aprende cedo que sobreviver é arte. Mas viver… viver de verdade… é um ato de coragem. E coragem, essa menina ainda vai descobrir que tem de sobra.
Enquanto isso, eu sigo no meu posto. A mulher que segura a casa de pé, que passa café forte e palavras mais fortes ainda. Porque no fim das contas, a gente não é só o que passou… a gente é o que escolhe fazer com o que sobrou.
E eu vejo em Erika alguém que pode, sim, se refazer. Peça por peça. Dia por dia. E se Deus quiser, sem nunca mais aceitar ser tratada como menos do que é.
150 comentários ...... vamoboraaaaa adicionem meus amores .