Capítulo 1

2559 Words
Eu colocava a última foto no quadro acima da minha escrivaninha enquanto o som de Linkin Park preenchia meu novo quarto. Pelo menos isso me trazia uma sensação familiar. Desci da cadeira e dei uma olhada ao redor. Não estava igual ao meu antigo quarto, mas eu tinha feito o máximo que podia para deixar parecido. As duas mesinhas de canto ao lado da cama, que ficava abaixo da janela. A escrivaninha na parede em frente ao guarda-roupa com um quadro repleto de fotos acima. Dois puffs espalhados pelo chão, em cima de um grande tapete laranja. Exatamente igual ao antigo quarto, mas ainda assim... Tudo era diferente. As paredes do antigo quarto eram laranjas, minha cor preferida, e o teto era baixo, típico de uma casa antiga. Esse quarto tinha as paredes todas brancas, o teto alto de uma casa moderna, e janelas grandes e sem grades. Suspirei fundo. Iria demorar algum tempo para eu me adaptar à nova vida. - Querida – ouvi minha mãe chamar e olhei para trás. Ela estava na porta com uma bandeja na mão – Trouxe um lanchinho para você – ela sorriu. Uma das minhas coisas preferidas na vida era o sorriso da minha mãe. Ele era jovem e encantador, assim como ela, que aos trinta e cinco anos, tinha aparência de vinte. Seus olhos incrivelmente azuis contrastavam com sua pele clara e os cabelos negros. Eu sempre me perguntava por que tinha puxado os cabelos pretos em vez dos olhos azuis dela. Em vez disso os meus eram castanhos. - Espero que esteja com fome – ela entrou e colocou a bandeja em cima da cama, se sentando nela logo em seguida e dando uma rápida olhada no quarto – Você fez um ótimo trabalho aqui. Sorri e fui me sentar ao lado dela. Dei uma olhada na bandeja. Havia um copo com suco de goiaba e um pedaço de bolo de cenoura com cobertura de chocolate. - Fiz o máximo que pude para deixar parecido com o antigo quarto – eu disse, tomando um gole do suco e olhando o quarto de outro ângulo. Até que tinha ficado bom. - Não precisa se prender ao seu antigo quarto, querida – ela passou a mão em meu cabelo – Coisas novas não são ruins. Dei um sorriso fraco. - Vou sentir falta de lá – comentei. - Sei que vai. Eu também vou. Desde que eu podia me lembrar, eu morava na mesma casa de sempre junto com minha mãe e meus avós. Ela era simples e confortável, o que era perfeito para mim. Mas não era disso que eu iria sentir falta. Eu sentiria falta do cheiro do café forte e do bolo que minha avó fazia todos os dias para eu ir para a escola bem alimentada. E sentiria falta do meu avô me esperando sentado na cadeira de balanço na varanda toda vez que eu chegava em casa. Do cheiro do charuto dele todos os dias à noite enquanto ouvíamos seu disco preferido dos anos 80... Eram esses pequenos detalhes que estavam me matando. Eu gostava disso. Gostava do estilo de vida da pequena cidade onde eu nasci e cresci em Santa Catarina. Gostava do jeito como as pessoas ainda se reuniam durante a noite na rua para jogar conversa fora. Gostava da calma e do silêncio constante. Mas então tudo mudou. Minha mãe conseguiu o emprego que ela sempre quis depois de anos tentando. Ficamos todos muito felizes, só que tinha um problema: teríamos que nos mudar para São Paulo. Eu fiquei chateada com a notícia, mas não me opus quando ela disse que estávamos de mudança. Havia sido o sonho dela por muito tempo, e eu não tinha o direito de estragar tudo. Olhando para o meu novo quarto agora, eu sabia que sentiria mais falta de casa do que imaginei, mas iria valer a pena. Eu sabia disso porque havia um brilho constante nos olhos da minha mãe que eu nunca tinha visto antes. E para mim isso já era o suficiente. - Vai ficar tudo bem – ela colocou uma mexa de cabelo atrás da minha orelha – Você vai se acostumar logo, logo. Sorri para ela. - Sei que vou... Só estou sentindo saudades do vovô e da vovó. - Também estou sentindo falta deles. Terminei de comer meu bolo em silêncio enquanto olhava meu quarto. Eu não conseguia deixar de olhar para ele um milhão de vezes e pensar que faltava algo ali. A sensação de casa tinha ficado para trás, há alguns milhares de quilômetros de distância. - Seu pai ligou hoje de manhã – minha mãe disse depois de um tempo. Apenas levantei as sobrancelhas, desinteressada, enquanto terminava de beber meu suco – Ele ficou surpreso quando eu disse que estávamos morando em São Paulo – ela ergueu uma sobrancelha duvidosamente – Achei que tinha te pedido para ligar e contar para ele sobre a mudança. - É, você pediu – suspirei – Mas eu não liguei. E nem vou ligar. - Ele é seu pai, Ágata. Não pode ficar uma vida inteira sem falar com ele. - Sim, eu posso – cruzei as pernas – E não me olhe desse jeito, mãe. A culpa é dele se nossa relação é assim. - Eu sei que ele errou antes, querida, mas ele está tentando consertar. - Então ele vai ter que se esforçar mais um pouquinho. - Ágata... – minha mãe começou, mas a interrompi. - Mãe! Esse cara te largou grávida de mim só porque não queria assumir as responsabilidades. Você tinha 18 anos! - Eu sei... - Ele fica quinze anos sem dar as caras, e depois volta dizendo que quer recomeçar? – ergui uma sobrancelha – Recomeçar o que, pelo amor de Deus? Ele foi embora, achou outra mulher, fez fortuna e constituiu uma família linda e perfeita que ele ama. Ponto. Fim da história. Não tem espaço para mim no meio disso. - É claro que tem. Ele também te ama. - Não, ele não ama. Se me amasse, não tinha te largado sozinha com uma filha para criar. Ou pelo menos teria vindo atrás de mim antes. - Ele era um menino – ela insistiu – Não sabia o que estava fazendo. Revirei os olhos. - Por que você insiste em defender ele? Se por um lado eu adorava o jeito gentil da minha mãe, eu tinha raiva da imensa compaixão em seu coração. Na minha opinião, certas coisas não tinham perdão. - Porque ele é seu pai e quer consertar um erro do passado – ela disse – As pessoas têm esse direito. Você poderia dar uma chance a ele. Suspirei novamente. Eu sabia que discutir sobre isso não levaria a nada. Era sempre assim. - Tudo bem, mãe. A gente pode falar sobre isso depois? Não estou a fim de discutir com você hoje. Ela me lançou aquele sorriso típico de quem tinha aprontado alguma. - Não acho que isso seja possível. Encarei ela. - O que você fez, mãe? Ela fez uma careta, como se não quisesse me contar. - Não acho que... - Mãe! Pelo amor de Deus, o que você fez?! - Tudo bem – ela suspirou, tirou um envelope debaixo da bandeja e o estendeu para mim. - O que é isso? – perguntei enquanto fitava o envelope branco. - Abra. Abri o envelope cautelosamente e li as primeiras linhas. Meu sangue gelou quando vi que se tratava de uma admissão em uma escola interna. E era eu quem estava sendo admitida. Levantei os olhos do papel e fitei minha mãe. - O que isso significa? – perguntei lentamente. - Te escrevi em um concurso de bolsas em um internato, e você passou com suas notas da última escola. - O que...? – minha voz saiu baixa. Eu não estava absorvendo as informações direito. - É isso mesmo, meu amor – ela deu um sorriso torto. O tipo de sorriso que indicava medo total da minha reação – Te matriculei em uma escola. Isso não é ótimo?! Então finalmente minha ficha caiu. - Mãe! – eu explodi – Você me matriculou em um internato sem minha permissão?! - Eu posso explicar... - Não, você não pode! – levantei da cama em um pulo – Você nem falou comigo, mãe! - Querida, se acalme... – ela se levantou e fez um gesto com as mãos para que eu me acalmasse. - Não vou me acalmar! – eu estava gritando – Eu não quero ir para um internato! - Meu amor... - Como você pôde fazer isso?! – sentei desanimada na cama novamente – A gente vem para esse mundo totalmente desconhecido sozinhas e você me joga em um internato? Eu não acredito nisso! - Ágata, me escuta – ela se sentou ao meu lado – Eu sei que foi uma decisão precipitada, e que foi errado... - Muito errado! - Deixa eu terminar – ela me encarou, como se esperando pelo meu consentimento – Eu só fiz isso sem te falar porque sabia que não iria aceitar se eu tivesse perguntado. - É, mãe, eu não aceitaria. E sabe por que? Porque eu tinha esse direito. - Eu sei disso, querida, mas eu precisava fazer. Você nem daria uma chance para o internato, e eu achei que fosse o melhor. - Melhor para quem?! - Você sabe muito bem que meu trabalho vai exigir muito de mim e quase não vou ficar em casa, isso quando eu não estiver viajando. E eu não gosto nada da ideia de te deixar sozinha aqui. - Mãe, eu tenho dezessete anos. Dezessete! Eu sei muito bem me virar sozinha. Posso cuidar de mim mesma. - Sei que pode, meu bem – ela passou a mão no meu cabelo – Mas não me preocupo com isso. É que eu não quero que você se sinta sozinha, entende? - Por favor, mãe... – levantei novamente e joguei a cabeça para trás – Não acredito que fez tudo isso porque acha que vou me sentir sozinha. Pelo amor de Deus! - Ágata! – ela se levantou também – Lá em Santa Catarina, você tinha seus avós o tempo todo. Acha que não vai se sentir sozinha agora que não tem ninguém por aqui? - Eu posso me virar – repeti. - Já chegamos à conclusão de que isso é verdade, mas não se trata disso. Te botei no internato para poder ter companhia e fazer alguns amigos. O que tem de tão r**m nisso? De um jeito ou de outro, você nem vai me ver direito durante a semana. - Você sabe que eu sou péssima em fazer amigos. - Eu sei que você é uma garota ótima e que vai se dar muito bem lá. Revirei os olhos. - Fala sério... - Eu estou falando sério – ela me encarou em silêncio e depois veio até mim e me deu um abraço. Meu primeiro instinto foi me desvencilhar. Eu odiava demonstrações de afeto quando estava chateada. Mas não podia fazer isso com ela, então só não correspondi. - Não fique chateada comigo, meu bem – tarde demais, eu pensei – Eu só quero o seu bem. Não quero que entre em depressão por estar sozinha. Suspirei, frustrada. - Eu não vou entrar em depressão porque não tem ninguém em casa para me fazer companhia, mãe – me soltei dela – Isso é ridículo. - Ridículo ou não, eu já fiz e não tem como mudar. Você já está matriculada. - É só você me desmatricular – olhei para ela como se fosse simples e rápido – Simples assim. - Não vou te mudar de escola, e você sabe muito bem disso. Resmunguei e me joguei na cama. Sim, eu sabia disso. Minha mãe era do tipo que quando colocava algo na cabeça não tinha santo que a fizesse mudar de ideia. Ou era do jeito dela ou não era. E era exatamente por isso que nós discutíamos diariamente. Eu era igualzinha. - Você não pode me obrigar a estudar em um lugar que eu não quero. - Eu sou sua mãe, e você é menor de idade. Então, tecnicamente, eu posso sim. Me sentei na cama e a encarei. - O que me impede de fazer algo muito r**m que resultaria na minha expulsão imediata? Dessa vez foi ela quem revirou os olhos. - Não faça drama, Ágata. - Não faça drama?! – eu estava indignada – Você chega aqui me dizendo que me matriculou na d***a de uma escola, sem nem me perguntar antes, e não quer que eu faça drama?! – eu estava quase me jogando no chão. Ela suspirou e cruzou os braços, me encarando em silêncio. Sabia o que ela estava pensando. Não adiantaria nada ficar discutindo por isso, só iria nos deixar uma chateada com a outra. - Um semestre – ela disse enfim – Você fica um semestre no internato e, se não gostar, eu te tiro de lá. Esse é o meu acordo com você. - Um semestre inteirinho...? – curvei uma sobrancelha. Isso era muita coisa. - Exato – ela confirmou. - Será que não dá para ser só durante um bimestre? – ela suspirou impaciente. - Ágata! - Tudo bem! Tudo bem! – eu sabia que não tinha jeito. Barganhar com minha mãe era muito difícil, e eu tinha dado sorte por ela ter oferecido um "acordo" – Eu aceito. Ela suspirou de novo, só que dessa vez de alivio. - Que bom que sim. Não queria levar essa discussão muito adiante. - Você sabe que isso não acaba aqui, não é? – olhei para ela – Eu vou reclamar todos os dias da minha vida até sair de lá. - É, eu sei. Mas eu posso aguentar isso – eu tinha que dizer uma coisa sobre minha mãe: ela era a única pessoa que sabia lidar comigo – A propósito, suas aulas começam segunda feira – e a única que conseguia me tirar do sério também. - O que?! – me levantei da cama de novo – Esta segunda?! - Sim, esta segunda – ela foi em direção a minha cama e recolheu a bandeja. - Mas tão rápido assim? - Infelizmente. - Achei que tínhamos nos mudado nas férias para podermos ter mais tempo para organizar tudo. - Eu sei, esse era meu objetivo, mas infelizmente não vai dar. No internato as aulas começam antes. Eu não podia fazer nada. - Podia não ter me matriculado lá!  Ela suspirou de novo e me encarou. Sabia que estava indo longe demais. Ela já estava perdendo a paciência, e o fato dela já ter parado de me chamar de querida comprovava isso. Mais um pouco e ela começaria a gritar. - Não vamos começar isso de novo, Ágata. Eu fiz o que tinha que fazer, e não vou voltar atrás. Você vai para o internato. E a não ser que queira passar o último final de semana que temos juntas discutindo, sugiro que aceite logo isso. Ela saiu do quarto com a bandeja na mão e fechou a porta com o pé. Me joguei na cama e suspirei. - Ótimo – resmunguei – Agora eu só preciso fazer as malas que acabei de desfazer e me mudar novamente – revirei os olhos – Que maravilha...
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