Capítulo 1
Capítulo 1
MILENA NARRANDO
Tem gente que olha pra Rocinha e só vê perigo.
Mas eu vejo casa.
Aqui o corre é pesado, a vida cobra cedo, e a rua não perdoa vacilo.
Mas também tem riso alto na laje, criança brincando de pique entre os barracos e cheiro de feijão com alho subindo pela janela às seis da tarde.
É bagunçado, é apertado, é barulhento.
Mas é meu lar.
E se tem uma coisa que eu aprendi desde cedo é que felicidade não tá no que a gente tem, mas com quem a gente vive.
E eu vivo com o melhor homem do mundo: meu pai.
Minha mãe morreu quando eu nasci.
Parto complicado, falta de estrutura, negligência médica… sei lá.
Só sei que ela se foi, e eu fiquei.
Cresci ouvindo que eu tinha o sorriso dela.
Mas nunca vi.
A única foto que meu pai guarda é uma meio apagada, dobrada no meio, com ela rindo e ele olhando pra ela como se fosse o amor da vida. E era.
Ele nunca mais se casou. Nunca levou mulher pra dentro de casa.
Só me criou.
Com amor.
Com garra.
Com tudo que ele tinha.
A gente não tem muito.
Aliás, a gente nunca teve.
Mas ele sempre fez parecer que a vida era linda.
— Sabe por que você se chama Milena? — ele sempre perguntava.
— Porque é o nome que ela escolheu pra mim — eu respondia.
— Isso. E também porque soa forte. Milena parece nome de mulher que não abaixa a cabeça. Que luta.
Ele me ensinou a lutar sorrindo.
E eu virei mulher do lado dele.
Hoje eu trabalho num point na quadra.
Barzinho de esquina que vira baile sexta e sábado, mas durante o dia vende de tudo: refrigerante, cerveja, marmita, pastel…
Eu faço um pouco de tudo. Atendo, limpo, corro atrás de troco, ajeito freezer.
E por incrível que pareça… eu gosto.
Gosto do barulho, do movimento, do calor das frituras, dos gritos da galera jogando dominó aqui na calçada.
Gosto de observar o morro vivo.
Aqui ninguém passa batido. Todo mundo conhece todo mundo.
E quando eu sorrio, tem gente que sorri de volta.
É pouco? É.
Mas é honesto.
E é meu.
No dia seguinte acordei cedo, como sempre.
Lavei o rosto, prendi o cabelo, fiz um café forte e comi o pão amanhecido que a padaria da esquina me deu de graça ontem.
Meu pai já tava sentado na cozinha, lendo jornal velho como se fosse atual.
Ele é assim. Ama papel, não confia muito em celular.
Disse que quem lê notícia impressa presta mais atenção.
— Vai chover hoje — ele avisou.
— E como você sabe? — perguntei, mordendo o pão.
— Porque meu joelho tá doendo — ele riu. — É o meu termômetro.
A gente riu junto.
Esse tipo de conversa b***a me faz feliz.
Antes de sair, deixei um beijo na testa dele e disse:
— Te amo, pai.
— Também te amo, minha pequena. Vai com Deus.
( ... )
O dia no point foi puxado.
Teve baile no fim de semana e a galera tava de ressaca hoje, querendo coca-cola gelada e pastel pra rebater.
O bar ficou cheio, calor demais, freezer pifando — mas eu tava aqui, firme.
Amo o movimento.
Amo quando as meninas do morro param pra me contar da vida, quando os moleques tentam desenrolar em cima de mim e eu solto um deboche pra cortar.
Amo me sentir parte daqui.
Faz a vida parecer mais leve.
Menos sufocada.
Quando o sol começou a baixar, a quadra foi esvaziando e o bar ficou mais tranquilo.
Lavei os copos, limpei o balcão, fechei o caixa, troquei de roupa e subi o morro no passo leve de quem só quer chegar em casa, tomar um banho e colocar o pé pra cima.
Mas foi só abrir a porta que eu soube.
Tinha alguma coisa errada.
Meu pai tava sentado no sofá, com a TV ligada em volume baixo, e uma cara que eu não via há muito tempo.
Não era dor física.
Era aquele olhar de quem carrega um peso no peito.
— Oi, minha filha — ele falou, tentando sorrir.
— Que foi? — perguntei na hora, largando a mochila no chão. — Tá com dor de novo?
Ele balançou a cabeça.
— Não é isso.
— Então o que é? Tá me assustando.
Ele respirou fundo.
Passou a mão no rosto.
E eu já conhecia aquele gesto. Era o “como é que eu vou contar isso?”
Sentei ao lado dele.
Peguei na mão.
— Fala, pai. Pode falar.
Ele olhou pra mim.
E os olhos dele… estavam molhados.
— Eu fui no médico de novo hoje.
— Tá…
— Peguei os exames.
Meu coração congelou.
— E?
— Eu tô doente, filha. Sério.
A frase bateu como tapa.
— Doente como? — minha voz saiu trêmula.
— O fígado. Já tá comprometido.
— Mas isso tem tratamento, né? Tem jeito?
— Tem.
— Então a gente vai tratar! Eu trabalho, a gente dá um jeito…
Ele me cortou com o olhar.
— É muito caro, Milena.
— E daí? A gente corre atrás.
— Eu não quero te ver se sacrificando por minha causa.
— Eu vou me sacrificar, pai. Quantas vezes o senhor já fez isso por mim?
Ele abaixou a cabeça.
E ali… eu vi o medo.
Não era medo da morte.
Era medo de me deixar sozinha.
— Você é tudo que eu tenho — ele sussurrou.
— E o senhor é tudo que eu sou.
Nessa noite, eu não dormi.
Deitei ao lado dele, no sofá pequeno que mäl cabia nós dois, e fiquei olhando o teto da nossa casinha simples.
Eu pensei em Deus.
Pensei em dinheiro.
Pensei em desespero.
E no meio do silêncio da Rocinha, só uma frase ficou martelando na minha cabeça:
“É muito caro, Milena.”
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