Kadu
Seduzir é leitura de terreno. Não começa na pele; começa no mapa. E mapa é o que mais conheço. Anotei os horários de Anna com a mesma frieza que uso para precificar uma rota: lotação às 17h12, parada em frente ao bar do Seu Neném, subida pela escadaria dos Ipês, dois descansos — um para ajustar a alça da mochila, outro para respirar e observar. Ela não corre do medo; negocia com ele. Essa qualidade, rara, pede prova.
Hoje eu decidi testar.
— Limpa a viela da bica e deixa a luz do poste 12 oscilando — avisei no rádio. — Não quero sombras, quero penumbra. Penumbra deixa a verdade confusa.
Dinho riu do outro lado, curto.
— Romântico, hein, chefe?
— Estratégico — corrigi. — E mantém dois a distância. Se Anna olhar para trás, eu quero que só me veja.
O morro entendeu. Foi-se o ruído desnecessário, ficou o cenário certo. O cheiro de chuva prometida, as vozes sopradas, a cidade lá embaixo como um bicho que se debate na coleira. Na porta do bar, Seu Neném espanava migalhas com a autoridade de quem já viu muito rei virar lembrança. Dei um toque no balcão, pedi dois cafés.
— Deixa prontos — falei. — Uma moça vai chegar. Se ela topar conversar comigo, serve o dela. Se ela recusar, o meu esfria junto.
— E o prejuízo? — ele cutucou, meio brincando.
— O prejuízo sou eu quem pago.
Anna chegou no momento certo. Cabelo preso às pressas, rosto limpo, uma delicada firmeza que destoava do ambiente. Havia vestígios do dia anterior, invisíveis para a maioria, mas claros para quem observava: a respiração controlada, os olhos fixos quando a sirene soava. O beco a ensinou. Eu queria saber o que ela escondia.
— Anna. — Falei o nome como quem destranca cortina.
Ela me avaliou com aquela educação reta que me intrigou no primeiro dia. Não há frouxidão na postura dela; há um eixo.
— Kadu.
— Café? — apontei para o balcão.
— Aceito se não for condição.
Sorri. A lâmina do jogo ganhou brilho.
— É convite. Condições eu deixo para depois.
Sentamos no canto mais aberto. Gosto de deixar saídas visíveis quando quero que alguém permaneça. O primeiro gole veio amargo, no ponto. Eu deixei o silêncio fazer sua dança até que ela se acomodasse nos próprios ossos. Só então comecei.
— Você dormiu?
— Dormi o necessário.
— E o suficiente?
— Suficiente é luxo.
— Aqui a gente aprende cedo a medir o sono — comentei. — E as intenções.
— Medir intenções é trabalho antigo meu — ela rebateu. — Chama-se sobrevivência.
Encostei o cotovelo no balcão, o corpo inclinado em direção a ela, sem invadir. Eu poderia colar a sombra, mas prefiro o campo magnético: aquela distância pequena que aquece a pele sem tocar.
— Ontem você confiou em mim por dez minutos — recordei, na mesma voz em que dou ordens. — Quero saber se confia por quinze.
— Quinze me parecem caros.
— Eu pago.
— Sempre se paga em alguma moeda, Kadu. Qual é a sua?
— Olho por olho. Você me entrega um pedaço de verdade, eu te devolvo um pedaço do mapa.
Os olhos dela estreitaram de leve. Não havia medo, havia cálculo. Era belo, no sentido perigoso da palavra.
— Qual parte do mapa?
— A parte que explica por que o poste 12 falha quando precisa — brinquei, permitindo que o humor aparecesse como trégua. — E a parte que abre caminho quando você disser “preciso passar”.
— Não quero passaporte, quero respeito.
— O respeito você já tem — respondi. — O resto eu negocio.
Seu Neném pousou o segundo café. Anna cheirou antes de beber, gesto quase profissional, como quem identifica perigo pelo vapor. Gosto disso: prudência elegante.
— O que você quer com o meu nome? — ela perguntou, colocando a xícara no pires sem ruído.
— Pesos. — Inclinei-me um centímetro a mais, o suficiente para meu sopro tocar a curva do queixo dela. — Seu nome pesa diferente quando atravessa meus corredores.
— E que peso têm os seus nomes, Kadu?
— Os meus nomes fazem portas. Ou fecham.
O rádio sibila discretamente. Dinho, atento:
— Moto dupla vindo pela Ladeira Nova, sem placa. Cuidado com exibido.
Respondi sem tirar os olhos de Anna:
— Joga o exibido no barulho. Eu quero silêncio nos Ipês.
A moto passou em frente ao bar com aquela arrogância jovem que confunde brilho com poder. Um dos garotos, de boné virado, arrastou o olhar em cima de Anna, lento demais. Eu não desviei. A ação exata, no tempo exato: um gesto com os dedos, dois rapazes atravessaram a rua com a naturalidade de quem vai comprar cigarro, bloquearam a visão, dissiparam o foco do moleque. O morro é meu, e isso significa que o mundo inclina quando eu mando.
— Isso foi para me impressionar? — Anna perguntou, descrevendo com frieza o que acontecera.
— Não. Foi para te poupar de miudeza — respondi. — Quero sua atenção inteira.
— Você é acostumado a tê-la.
— E você é acostumada a não dá-la a quem não merece.
Os dois sorrisos se tocaram no ar entre nós. Não havia plateia, mas havia certo teatro. Eu decidi avançar uma casa.
— Anda comigo — convidei, saindo do banco. — Cinco minutos. Prometo penumbra e jogo limpo.
— E sombras?
— As sombras são minhas. Eu as controlo.
Ela veio. Não por obediência, mas por curiosidade. Atravessamos o bar, descemos três degraus, dobramos para a viela da bica — agora sem risco, mas com a luz do poste oscilando como eu pedira. Penumbra é laboratório: revela contornos, disfarça cores, deixa o tato pensar. Eu parei no ponto exato em que a parede faz ângulo e encurta o corredor. Ao invés de bloqueá-la, ofereci duas saídas com o corpo; uma mais próxima de mim, outra mais distante. Escolhas falam.
Ela escolheu a mais perto. Sentiu o campo.
— Você manipula a cidade como se fosse um xadrez — ela disse, estudando minha proximidade. — Onde entram a sedução e os truques?
— Sedução é peça de cavalo — respondi, baixo. — Anda em L, aparece onde não parece possível. Truque eu não gasto contigo. Truques eu reservo para quem mente.
— E o que você faz com quem não mente?
Ergui uma mão, devagar, para pousar dois dedos — apenas dois — na alça da mochila dela. Um toque mínimo, quente. A pele ao redor respondeu no mesmo instante, e o coração dela acusou o movimento em um pulso visível na base do pescoço. Não era medo. Era a fisiologia do campo.
— Eu aprendo o peso — murmurei. — E prometo não derrubar.
— Promessa feita por um rei vale o quê?
— Vale risco. — Inclinei-me, mais um centímetro, suficiente para meu perfume de tabaco frio rodear a respiração dela. — E você, Anna, parece gostar do risco quando ele vem com manual.
— O seu manual vem com letras pequenas.
— Eu leio em voz alta se você quiser.
Ela soltou uma risada curta, nervo e ironia. A luz do poste piscou e firmou. Do alto, o foguetório mandou um sinal de normalidade. A vida retomou seu teatro. Eu afastei os dedos da mochila e ofereci a palma como quem convida para uma dança que não começa.
— Vamos subir — sugeri. — Rua dos Ipês. Faço escolta a dois passos, sem encostar. Quero observar como você caminha quando sabe que pode. É meu teste.
— De quem é a prova?
— Minha.
Caminhamos em silêncio, eu logo atrás dela. Vizinhos nos observaram. Anna subiu o degrau sozinha e hesitou na curva perigosa, mas seguiu em frente. O perigo marca, mas não decide o caminho.
— Você pesa as pessoas como pesa rotas — ela disse, sem se virar.
— Pesos e rotas evitam mortes.
— E criam dívidas.
— Dívidas são outra palavra para confiança que ainda não amadureceu.
— Poeta.
— Administrador.
No alto, paramos ao lado do muro grafitado. O desenho de uma menina com guarda-chuva aberto desafiava a chuva que não vinha. Eu dei mais um passo, e a distância entre nós ficou de dois dedos. Era o meu limite. Intimidação sem toque é arte.
— Última parte do teste — informei. — Eu chego perto o suficiente para você sentir que poderia ir embora, mas escolhe ficar. O que te faz ficar?
Anna respirou fundo. Nenhuma pressa em responder. O pulso no pescoço estabilizou. Os olhos dela, escuros, me mantiveram no lugar como se eu fosse uma pergunta de prova.
— Eu fico quando entendo o jogo — disse. — Você não me trancou. Abriu saídas. E me deu o direito de dizer não.
— E qual é a sua resposta?
— Não te devo nada, Kadu. — A voz veio limpa. — Mas não fujo do que me respeita.
A confissão foi pequena e gigantesca. Eu a aceitei como se aceita a primeira moeda de um acordo que pode virar tesouro.
— Então te deixo mais uma regra — falei, erguendo a mão até quase tocar o dorso da dela, parando antes do contato, apenas o calor entre as peles. — Quando o beco silenciar, me chama. Não por medo. Por prudência.
— E quando você silenciar?
— Eu nunca silencio por acaso.
Recuo é parte do gesto. Dei dois passos para trás, devolvi a ela o espaço, guardei as sombras no bolso. O morro respirou fundo outra vez. Dinho chiou no rádio:
— Tudo em ordem. O poste 12 estabilizou. O exibido sumiu.
— Deixa sumido — respondi.
Anna ajeitou a alça da mochila. A formalidade dela, paradoxalmente, me acendeu. Há pessoas que nos convocam à brutalidade; ela me convoca à precisão. É outro tipo de poder, mais perigoso.
— Obrigada pelo café — ela disse, pronta para seguir.
— O próximo você me deve — retruquei, leve.
— Promessas são caras, lembra?
— Por isso cobro barato: quinze minutos de conversa. — Inclinei a cabeça. — E o direito de aprender seu passo.
Ela sorriu, mínimo, como quem carimba um papel.
— Veremos, Kadu.
Fiquei vendo-a partir pela Rua dos Ipês, uma figura que não se curva às façanhas do meu nome. Atrás, o morro se recompôs em sons: crianças retomando a bola, panela batendo tampa, o bar reabrindo risos. Eu registrei os dados do meu próprio teste: Anna escolheu ficar quando quis, avançou quando leu o manual e devolveu o jogo com regra nova — a dela. Perigoso. Irresistível.
Anotei que a sedução não reside no toque, mas sim na arquitetura de uma ausência deliberada. O que vier depois, virá por sua própria força. E eu, cartógrafo de caminhos, já compreendi: o trajeto até Anna não se apressa, mas se constrói com a penumbra e com a sinceridade das palavras.